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ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA E ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA

sexta-feira, maio 15th, 2020

SUBSÍDIOS EXEGÉTICOS PARA A LITURGIA DOMINICAL – ANO B
Subsídio elaborado pelo grupo de biblistas da ESTEF
Dr. Bruno Glaab – Me. Carlos Rodrigo Dutra – Dr. Humberto Maiztegui – Me. Rita de Cácia Ló
Edição: Prof. Dr. Vanildo Luiz Zugno

ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA E ESPIRITUALIDADE FRANCISCNA
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SUBSÍDIOS EXEGÉTICOS PARA A LITURGIA DOMINICAL – ANO C

 

Solenidade de Cristo Rei
Dia 20 de novembro de 2022
Primeira Leitura: 2Sm 5,1-3
Salmo: 122/121,1-2.4-5
Segunda Leitura: Cl 1,12-20
Evangelho: Lc 23,35-43

 

 

 

O Evangelho

No último domingo do Tempo Comum, celebramos “Cristo, Rei do Universo”. Nossa fé nos ensina que a ele foi entregue toda autoridade e poder, no céu, na terra e debaixo da terra.

No evangelho de hoje, vemos Jesus já no alto da cruz, insultado por aqueles que presenciam seu sofrimento. Lucas distingue quatro grupos: o povo, os chefes, os soldados e os malfeitores. No relato das tentações, Lucas diz que o diabo se afastou dele até o tempo oportuno (Lc 4,13). Agora chegou o tal do tempo oportuno.

O povo (v. 35a): No relato de Lucas, as pessoas do povo não passam, param, olham e vão embora (cf. Mc 15,29). Ao contrário, o povo fica parado observando. Este verbo é o mesmo do Sl 22,8: todos os que olham para mim, caçoam mim, abrem a boca e meneiam a cabeça. Mas, ao contrário do salmo, as pessoas que observam Jesus na cruz não zombam nem balançam a cabeça: elas contemplam a cena meditativamente, sem dizer uma palavra.

Os chefes dos judeus (v. 35b): Lucas utiliza o termo “chefes” no lugar de “sumos sacerdotes” e “escribas” (cf. Mt 27,41; Mc 15,31). Ironicamente, o evangelho coloca na boca desses chefes o reconhecimento de que Jesus salvou outros. Eles ainda sugerem que Jesus faça o mesmo para si, se for mesmo o Cristo de Deus, o eleito.

Os soldados (vv. 36-38): A ação dos soldados pode ser interpretada como um cumprimento do Sl 69,22: como alimento deram-me fel, e na minha sede me deram vinagre. Lucas interpreta isso como zombaria. Em vez de vinho misturado com mirra, oferecem-lhe vinagre, a mesma bebida citada no salmo). Lucas não diz se Jesus a aceita ou a rejeita. O evangelista, no entanto, coloca na boca desses soldados palavras muito semelhantes às dos chefes judeus. Os soldados, porém, não usam o título “Cristo”, e sim “Rei dos Judeus”, e igualmente encorajam Jesus a aproveitar tal dignidade para se salvar (v. 37).

Os malfeitores (vv. 39-43). Diferentemente de Mateus (27,44) e Marcos (15,32), Lucas não chama os dois executados de bandidos, guerrilheiros (em grego, lēstai), mas de malfeitores (em grego, kakourgoi). Tanto num como noutro caso, a tradução “ladrões” não é adequada e deve ser totalmente descartada. Para compreender por que “ladrões” é uma tradução incorreta, é necessário entender que tipo de crime era punido com a crucificação. Sob a dominação do império romano, a pena da crucifixão não era aplicada a qualquer tipo de criminoso. Assassinos e assaltantes eram punidos com outros castigos. A cruz, porém, era reservada para os que se levantavam contra o imperador, para os que eram considerados terroristas e guerrilheiros. Por alguma razão, a atuação de Jesus foi considerada subversiva, uma ameaça ao império. Por isso ele foi crucificado. Significa que a proposta de Jesus incomodou alguém importante; significa que o Reino de Deus que Jesus anunciava não agradou a todos. Lucas, como dissemos, não usa bandidos, mas um termo mais genérico: malfeitores. Com tal mudança, Lucas quer que seus leitores leiam a crucifixão de Jesus à luz do Quarto Canto do Servo Sofredor, isto é, Is 52,13–53,12, que afirma “entre os malfeitores foi-lhe dada sepultura (v. 12).

Lucas, porém, dá ênfase à diferença de atitudes entre os malfeitores crucificados com Jesus. Um deles repete a provocação dos chefes e dos soldados e desafia Jesus, caso seja de fato o Cristo, a salvar si mesmo e a eles igualmente (v. 39). O outro crucificado repreende o primeiro por tal conduta, reconhece sua própria culpa e pede a Jesus que se lembre dele (vv. 40-41). Este sabe que Jesus é inocente, que tem um reino no qual logo estará e, já em sua glória, poderá se lembrar dele. Em suas palavras, o segundo malfeitor reconhece Jesus como rei não apenas dos judeus, mas como soberano de um reino que não é deste mundo. Esta fala breve garantiu a este personagem o título de “bom”. Estranhamente, Lucas não nos informa o nome. A tradição cristã posterior dará a ele o nome de Dimas.

Nesta cena exclusiva, Lucas apresenta o contraste entre os que não aceitam a proposta de Jesus, e aquele que, ainda no último momento, percebe que errou.  Sendo um terrorista, o “bom” malfeitor tinha se engajado na luta armada para mudar o mundo. Descontente com o império romano, ele tinha acreditado que deveria mudar o mundo por meio da violência. No alto da cruz, ele percebe que fez uma escolha errada. Ele descobre que a proposta de Jesus era melhor do que a sua, que a justiça é sempre melhor que a injustiça, que a paz é sempre melhor do que a guerra, que a solidariedade é sempre melhor do que a violência, e que a partilha é sempre melhor do que o egoísmo.

33º Domingo do Tempo Comum
Dia 13 de Novembro de 2022
Primeira Leitura: Ml 3,19-20a
Segunda Leitura: 2Ts 3,7-12
Salmo: 98/97,5-9
Evangelho: Lc 21,5-19

 

O Evangelho

A liturgia deste domingo, mais do que assustar, quer mostrar que Deus tem a última palavra sobre a história. Tudo vai passar… os que praticam a injustiça, as grandes estruturas, tudo. Deus, porém, não passa. Ele é o Senhor da história. Cuida até dos cabelos de nossas cabeças.

Lc 21,5-19: No ano 70 d.C. o exército Romano arrasou Jerusalém e o templo construído por Salomão entre 971-931 a.C. (cfr. 1Rs 6). Esta é a segunda destruição, pois em 596-589 a.C. a cidade e o templo haviam sido destruídos pelos babilônios (cf. 2Rs 24-25). Este templo foi reconstruído logo depois do Exílio (Esd 3). A destruição do primeiro templo tinha sido profetizada por diversos profetas (Mq 3,12; Jr 7,1ss, etc.). Agora, Jesus, como os profetas de outrora, profetiza o fim do segundo templo, pois Israel não aceitou o salvador enviado por Deus.

A destruição do templo (70 d.C.), que no tempo de Lucas (80 d.C.) já tinha acontecido, é, para muitos, presságio de guerras, terremotos, pestes. Pensavam eles que o fim chegara, pois a cidade e o templo eram considerados o lugar mais santo do mundo e a morada do Altíssimo. Se Deus permitiu que as tropas romanas entrassem na cidade e arrasassem tudo, só podia ser um aviso: o fim chegou. Mas, uma leitura atenta do texto, mostra justamente que este não é o caso.

Em linguagem apocalíptica se mostra que o sistema religioso vigente nos tempos do NT não é absoluto e que os cristãos não devem dar ouvidos a falsos anunciadores. Devem saber que ainda resta muita história: “Antes disso tudo, porém, sereis presos e perseguidos” (v.12). Em outras palavras, o que acontece, a começar pela destruição do templo, é um sinal de que aquele sistema não era absoluto. Tudo cai e a história continua. Por isto, os discípulos devem resistir, não temer os tribunais. Se nos anos 70 da era cristã, diante da ocupação romana em Israel, diante da destruição da cidade e do templo, algumas pessoas julgavam que o fim estivesse próximo, o evangelho que lembra ainda não é o fim da história. Os discípulos devem permanecer firmes, sem medo.

Sempre, através da história, houve falsos profetas que queriam marcar uma data para o fim do mundo. Já nos tempos de Paulo (1-2Ts) havia tal crença e mais tarde, os milenaristas fixaram datas do fim do mundo em diversas ocasiões. No nosso tempo, em diversas denominações religiosas, há tentativas de prever o fim. Mas isto é perda de tempo. Só Deus sabe (Mc 13,32). Todos estes fatos apenas mostram que tudo passa, até os maiores sistemas políticos e religiosos. Ao longo da história do cristianismo houve muitas guerras, perseguições, fenômenos da natureza, pestes. O fim ainda não veio, apesar das muitas previsões.

O texto de hoje quer incutir ânimo no povo, apesar das dificuldades: “É preciso que essas coisas aconteçam primeiro, mas não será logo o fim” (v.9). Em outras palavras: perseguições, guerras, pestes, fenômenos naturais, tudo isto aflige, mas não quer dizer que o fim está próximo. Se assim fosse, o mundo já teria acabado há muito, pois basta abrir um livro de história e perceber que sempre teve guerras, perseguições, pestes e fenômenos cruéis da natureza.

Relacionando com as outras leituras

Ml 3,19-20a: o profeta Malaquias é do período pós-exílico (séc. V a.C.). O povo que sofreu as agruras do Exílio pensava que, uma vez de volta à pátria, teria só paz e harmonia. Mas não foi assim. As injustiças continuaram a ser praticadas, agora pelos próprios irmãos, em seu país. Pior, parece que as profecias de novo céu e nova terra não se cumpriram. Os maus prosperavam, os justos sofriam e Deus não estava vendo. Malaquias quer animar a comunidade. A última palavra é de Deus. O bem vencerá.

2Ts 3,7-12: pensavam alguns tessalonicenses que o fim estivesse próximo, por isto mesmo não valeria mais trabalhar. Com a vinda do Filho do Homem tudo seria transformado. Paulo condena esta fantasia. Todos devem trabalhar e comer o pão, fruto do seu trabalho. A história continua. Por isto é preciso avançar com confiança.

 

Domingo de Todos os Santos
Dia 06 de Novembro de 2022
Primeira Leitura: Ap. 7,2-4.9-14
Segunda Leitura: 1Jo 3,1-3
Salmo: 24/23,1-4b. 5-6
Evangelho: Mt 5,1-12ª

 

O Evangelho

Neste Domingo há duas datas importantes na tradição da Igreja: o “Dia de Todos os Santos e Santas” (1º de Novembro) e dia das pessoas falecidas (“Finados”, dia 2 de Novembro). O Evangelho das Bem-Aventuranças oferece o sentido da vida em santidade, tanto em sua dimensão histórica, quanto em sua dimensão eterna. A lista é um resumo de diversos ensinamentos de Jesus que sempre inicia com a palavra macariosMacarios significa, em grego, “felizes, pessoas portadoras do favor de Deus” o que se relaciona diretamente com a palavra sanctus, que em latim, significa “santos, pessoas separadas para Deus”. O Evangelho da comunidade de Mateus reflete a dolorosa experiência da perseguição, da violência e da morte, em 64 a 67 d.C. (quando morrem os apóstolos Paulo e Pedro em Roma) e em Jerusalém após a revolta judaica (em 70 d.C., quando outras testemunhas da revelação de Cristo são mortas ou obrigadas a fugir).

O marco do “Sermão do Monte”.

Mt 5,1-2. Estes primeiros dois versículos são a introdução geral ao chamado “Sermão do Monte” quando Jesus “ao ver aquela multidão de povo (…) subiu ao monte” e ali “sentou-se, os discípulos de aproximaram dele (…) e começou a ensinar”. Estes discursos encerram em 7,28-29 (“Ao terminar estes discursos a multidão do povo se admirava de sua doutrina, pois ele os ensinava como quem possuía autoridade e não como os escribas” (Bíblia Sagrada Vozes). O sentido, então, de todo este conjunto e mostrar qual é a diferença entre a interpretação do ensinamento de Moisés entre Jesus e as autoridades da religião oficial de sua época (como também se diz na crítica ao escribas e fariseus em Mt 23,2-3).

O caminho da felicidade na santidade (Mt 5,3-12).

As “bem-aventuranças” tem um “princípio” e um “fim” bem evidentes. São aquelas que se referem as pessoas que “possuirão o Reino dos Céus”. Estas são as pessoas que tem “espírito de pobre”, em grego “hoi ptoxoi tô pneúmati” (“os pobres do espírito” e não “de espírito”) em 5,3 e as pessoas perseguidas em 5,10-12). Todas as outras bem-aventuranças se derivam destas ou levam a estas. O espírito de pobre é que faz feliz quem chora, porque sabe que terá consolação (5,4), que leva as pessoas humildes, coletivamente, cooperativamente, a possuir a terra (5.5), que faz com que as pessoas tenham sempre fome e sede de consciência e serem saciadas (5,6), que faz com que seja vivida a misericórdia solidária que nos habilita para receber misericórdia (5,7), que nos faz pessoas de coração puro e aberto e vemos, no rosto das pessoas pobres, o rosto de Deus (5,8), e que capacita para promover a paz que emerge da justiça, do amor, da solidariedade, e da misericórdia que nos iguala como filhos e filhas de Deus (5,9). E tudo isso faz que, como os antigos profetas e profetisas, soframos perseguição e enfrentemos a violência de quem se apropriou do poder (seja este econômico, político ou religioso) em benefício próprio.

Relacionando com as outras leituras

A primeira leitura, do Livro de Apocalipse, mostra também um contexto de perseguição das comunidades que, ao abraçar a santidade e a felicidade de viver o Evangelho com espírito de pobres, vivenciaram a violência e a morte. As 144.000 pessoas são 12 vezes 12, vezes 1000, quer dizer as 12 tribos originárias, as comunidades dos 12 apóstolos, multiplicadas infinitamente, o que ser reforça na segunda parte desta leitura, quando afirma “depois disto vi uma multidão que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas” (Ap 7,9), isto é a Comunhão de Todas as Santas e Santos. O mesmo refere a leitura da 1ª Carta de João 3, quando diz que “o mundo não nos conhece, porque também não conheceu o Pai” (v. 1b). Conhecer o “Pai” comum, é ter o espírito de pobre da santidade que vive a felicidade do compromisso as pessoas pobres, excluídas, injustiçadas, tristes, perseguidas, e nos faz irmãs e irmãos.

 

 

31 Domingo do Tempo Comum
Dia: 30 de outubro de 2022
Primeira Leitura: Sb 11,22―12,2
Salmo: 145/144,1-2.8-9.10-11.13cd-14
Segunda Leitura: 2Ts 1,11―2,2
Evangelho: Lc 19,1-10

 

O Evangelho

O episódio de Zaqueu é intencionalmente colocado em contraste com o do “homem importante” em 18,18-23. Ambos são influentes, ambos ricos. O primeiro sempre observou todos os mandamentos e pode até ser considerado justo. Mas não foi capaz de fazer “o que lhe faltava”, que consistia em colocar a sua vida à inteira disposição do Messias, assinalando este compromisso com o gesto de vender todos os seus bens e distribuí-los aos pobres. Zaqueu, por outro lado, era considerado um “pecador”, por causa de sua profissão de chefe dos cobradores do imposto. Mas ele está ansioso para receber o Messias com grande alegria e declara sua vontade de compartilhar suas riquezas com os pobres, não com um único ato donativo, mas por um compromisso habitual. E longe de ser “ávido”, caso descubra que obteve lucros ilícitos, ele quer devolver o máximo estabelecido pela Torá (Ex 21,37; Lv 6,5; Nm 5,6-7).

A lição moral mais óbvia a ser tirada da justaposição dessas histórias é que as aparências enganam. A atitude do notável fazia pensar em uma pessoa piedosa e observadora; mas ele estava surdo ao chamado do Messias. A profissão de coletor de impostos sugeria corrupção; mas ele faz se mostra correto em seu trabalho; ele é, como Jesus declara, um “filho de Abraão”. Na estrutura da história de Lc, no entanto, a lição transmitida por esta justaposição não é simplesmente moral. Os episódios em sucessão mostrarão o Messias a caminho da morte e as pessoas que estão se reunindo ao seu redor. A boa nova continua a alcançar os pobres e os marginalizados, aqueles que se perderam são “procurados e salvos”. O Messias acolhe todos e eles o aceitam. É nesta hospitalidade feita de fé que vem a salvação, e a salvação é acolhida “glorificando a Deus com alegria”.

Lucas recorda mais uma vez para seus leitores/as que a disposição do coração é simbolizada pelo grau de apego às posses. Quanto mais apegado às suas riquezas, mais surdo ao chamado do Messias. Quanto mais generosamente uma pessoa compartilha com os pobres, com mais entusiasmo ela acolhe o Messias.

A narrativa se articula em dois momentos: v.1-6, a conversão de Zaqueu; v.7- 10, a reação negativa dos presentes escandalizados e a resposta de Jesus.

Jericó era uma cidade de fronteira, passagem obrigatória para as rotas de caravanas que iam a Jerusalém desde as regiões da Transjordânia, da Arábia e do vale do Jordão.

Zaqueu, “chefe dos cobradores de imposto” é chamado de architelōnēs (a única vez no NT). Lucas traça um paralelo com o archōn de 18,18. Como o personagem anterior, este cobrador de impostos também é rico (plousios). O nome Zaqueu aparece apenas aqui no NT e em outros lugares da Bíblia apenas em 2Mc 10,19. É um nome grecizado (Zakchaios) do hebraico Zakkay (da raiz zk’ “ser puro”. Ironia de Lc?). “Cobradores de impostos”: tradução do termo telōnai. Nesse período na Palestina parece que eles eram responsáveis ​​pela coleta de impostos indiretos em bancas especiais (cf. o telōnoin ou repartição de impostos em Lc 5,27) sob o controle de certos “chefes”, como Zaqueu (architelōnēs 19,2) e da administração imperial. O desprezo que sofriam é demonstrado por pessoas religiosamente empenhadas (cf. 15,1-2; 18,10-11). Mas estes constituem um dos grupos que aceitam tanto João quanto Jesus (cf. Lc 5,27.29-30; 7,29-30,34; 15,1-2; 19,2).

“Procurava ver Jesus”. A tradução de zéteó como “procurava” é perfeitamente em consonância com o contexto, mas deve-se notar que Lucas com este termo estabelece um jogo verbal com a conclusão do episódio: o Filho da humanidade veio “procurar e salvar o que estava perdido”. Zaqueu, procurando ver, não sabe que ele mesmo é encontrado e salvo.

“Hoje devo ficar em tua casa”. Uma declaração aparentemente trivial. Lc evoca os temas literários e religiosos mais amplos de seu evangelho. O termo “hoje” (sēmeron) será repetido solenemente em 19,9 com relação à salvação. O verbo impessoal dei (é preciso) é usado para indicar pontos de inflexão importantes na história ordenada por Deus (à guisa de comparação, veja 17,25). Nas instruções dadas aos missionários Jesus sublinha a importância de “parar, permanecer” (menó) na casa que os acolhe (9,4; 10,7). A palavra aqui, portanto, implica que Zaqueu tem a oportunidade de acolher o Messias e sua mensagem do reino de Deus.

“E o recebeu com alegria”. Mais uma vez a nota de hospitalidade é destacada. Lc usa o mesmo verbo (hypodechomai) já empregado para as boas-vindas mostradas a Jesus por Marta. O particípio chairōn é traduzido como se fosse um advérbio: “com alegria”. Observe-se em particular como o motivo da “alegria” está associado à conversão em.

“Todos começaram a resmungar”. Reação atribuída aos discípulos/as, à multidão e aos adversários que Lc sempre apresenta na companhia de Jesus nesta sua jornada a Jerusalém. No relato de Lc, os “pecadores” respondem positivamente a Jesus (5.30.32; 7.34.39; 15.1-2.7.10; 18.13; 19,7).

“Dou metade dos meus bens aos pobres”. Zaqueu usa o presente, didōmi, que não deve ser entendido como um ato isolado e/ou futura de generosidade, mas como uma prática repetitiva e habitual. Zaqueu dá esmolas, o que para Lc é um verdadeiro sinal de retidão (6,30-31,38; 11,41; 12,33; 16,9; 18,22,29). Ambos os verbos estão no tempo presente (eu dou”, eu restituo”). A multidão não acredita nele, mas Jesus o reconhece como um “filho de Abraão”.

“Hoje a salvação entrou nesta casa”. A construção da frase (com egeneto: literalmente “aconteceu”) é bastante estranha. Esta é a primeira vez desde a história da infância (1,69.71.77), que o termo “salvação” (sōtēria) é usado; embora a forma verbal “salvar” tenha sido frequentemente usada em relação às maravilhas de Jesus (6,9; 7,50; 8,12.48,50; 9,24.56; 17,19; 18,42). Neste caso, a salvação “acontece” na aceitação da visitação do Messias e na distribuição dos bens aos pobres.

“Porque também este é um filho de Abraão”. Observe a mudança de sintaxe na frase. Jesus diz a Zaqueu diretamente que a salvação veio para esta (tua) casa, mas a explicação “porque também este” está na terceira pessoa em vez da segunda. Devemos imaginar Jesus que, ao pronunciar a segunda parte do ditado, se volta para os expectadores.

“Veio procurar e salvar o que estava perdido”. A linguagem de buscar o que foi perdido lembra ao leitor/a, em particular, as parábolas da conversão em 15,3-32.

Relacionando com as outras leituras

A primeira leitura (Sb) é colocada ao lado da página do encontro de Jesus com Zaqueu. “Hoje a salvação entrou nesta casa”, diz Jesus depois de olhar para ele. Este é um modo original de traduzir a expressão da Sabedoria: “fechas os olhos aos pecados das pessoas” (11,23), mas entras nos corações.

 

 

30º Domingo do Tempo Comum
Dia 23 de outubro de 2022
Primeira Leitura: Eclo 35,15b-17.20-22a
Salmo: 34/33,2-3.17-18.19.23
Segunda Leitura: 2Tm 4,6-8.16-18
Evangelho: Lc 18,9-14

 

O Evangelho

No evangelho de hoje, para falar da necessidade da oração, Jesus conta uma parábola do tipo “conduta exemplar”. Ela apresenta dois personagens em extremidades opostas. Trata-se de uma característica do evangelho de Lucas, como se pode ver na parábola dos dois filhos (15,11-32) e na parábola do rico e do pobre Lázaro (16,19-31). Na parábola de hoje, o primeiro personagem é um fariseu, um observante escrupuloso da Lei, que se considera justo e despreza os outros. O segundo personagem é um publicano, ou seja, um cobrador de impostos, a serviço do Império Romano.

Nos v. 11-12, o fariseu reza como um crente satisfeito consigo mesmo. Sua oração é uma ação de graças baseada em três motivos. O primeiro motivo de sua oração de “ação de graças” é de “justiça comparada”. O fariseu afirma a sua virtude depreciando a dos outros: “este publicano aí”, designação de desprezo por aqueles que considera globalmente pecadores: não sou como os demais homens: trapaceiros, injustos, adúlteros, nem como este coletor de impostos (v. 11). A seus próprios olhos, ele se considera o único bom e pensa que Deus concorda com tal juízo. O segundo motivo da “ação de graças” é sua prática de jejum (v.12a). É importante entender que a Torá fala pouco do jejum. Esta prática estava prescrita no Levítico 16,29-31, mas como uma ação excepcional ou solene, obrigatória apenas uma vez por ano, por ocasião do Dia da Grande Expiação. Coletivamente, era praticado em momentos excepcionais de calamidade: fome, peste, ameaça de invasão por um inimigo etc. Na seita dos fariseus, porém, era feito duas vezes por semana (segunda-feira e quinta-feira). Ao exaltar sua própria virtude de jejuar não uma vez por ano, mas duas vezes por semana, o fariseu está dizendo: “Estou além do que a Lei pede e, portanto, sou extremamente justo”. O terceiro motivo da “ação de graças” do fariseu é sua oferta do dízimo: pago o dízimo de tudo quanto adquiro (v. 12b). Igualmente é preciso ver o que diz a Lei sobre o dízimo: ele era pago pelos agricultores sobre certos produtos do solo, como o grão, o vinho e o óleo (Lv 27,30; Nm 18,27; Dt 12,17;14,22). O fariseu, como consumidor, não tinha obrigação de pagar dízimo, mas afirma pagá-lo mesmo quando isso já tinha sido feito pelo produtor. Novamente, o fariseu quer se destacar no zelo extremo, como no caso do jejum: ele está além do que a Lei pede e, portanto, é mais justo.  A oração do fariseu é a falácia de uma pessoa que se basta a si mesmo, pode tornar-se justo sem Deus e, de certo modo, substitui Deus por sua confiança em si mesmo, e não em Deus.

Na extremidade à oração do fariseu está a oração do publicano. Este segundo personagem tem a atitude de alguém que está desnorteado e se sente indigno de estar no Templo: ficando longe, não queria nem levantar os olhos para o céu (v. 13a). Ele não assume a postura habitual do orante, isto é, de pé, com os olhos e as mãos voltadas para cima (Sl 123,1; Jo 11,41). Ao contrário, sua atitude indica a vergonha que deriva do sentimento de culpa (Esd 9,5-6). Além disso, ele batia no seu peito (v. 13b). Tal gesto é sinal de extremo tormento ou contrição (Lc 23,48), como indicam as palavras da sua oração: Ó Deus, sê indulgente comigo, o pecador! (v. 13c). O publicano mostra uma humildade muito maior: ele se reconhece pecador e necessitado da misericórdia divina.

Jesus não crítica o exibicionismo religioso e moral do fariseu nem questiona se há atividade fraudulenta na ação do publicano, mas finaliza a parábola de forma desconcertante e inesperada: Eu vos digo: este desceu para a sua casa justificado, ao contrário daquele. Porque, todo o que se exalta será humilhado, mas quem se humilha será exaltado” (v. 14). O fariseu espera que Deus e todos os presentes ouçam suas palavras de satisfação e autojustificação; o publicano abre-se ao juízo de Deus e de todos os que o ouvem e aceita este veredicto. Em outras palavras, o publicano se entrega totalmente à graça divina para curar as rupturas com Deus e receber a salvação.

A parábola, no entanto, tem uma reviravolta inesperada: aquele que é justificado – declarado justo diante de Deus – é o publicano, pois se abriu a Deus pedindo misericórdia, e não o fariseu, que ostenta sua própria justiça em comparação com outros. Diante de Deus, não pode haver ficção nem comparações depreciativas, apenas a honestidade.

A parábola lança um desafio sobre a atitude e o conteúdo da oração, tanto individual como coletiva: ela nos convida a abrir-nos a Deus sem pretensões de sermos melhores ou mais santos do que os outros.

 

29º Domingo do Tempo Comum

Dia 16 de Outubro de 2022

Primeira Leitura: Ex 17,8-13

Segunda Leitura: 2Tm 3,14-4,2

Salmo: 120,1-8

Evangelho: Lc 18,1-8

 

O Evangelho

A oração é a alma da vida cristã. Sem ela, a missão se torna estéril. O cristão comprometido não pode apenas contar com suas forças, pois a oração é parte integrante da missão. No entanto, percebe-se muita confusão no que diz respeito a ela. Na piedade popular se faz novenas, promessas, correntes de oração, romarias… Em tudo isto há vestígios de uma religiosidade de barganha: “se Deus me der o que peço, eu lhe darei tal outra coisa”.  Claro, nem tudo nestas práticas é viciado, mas em muitos casos, de fato se encara a oração desta forma.

A parábola do juiz iníquo (Lc 18,1-8) é um texto exclusivo de Lucas. Comparar Deus com um juiz mau é um tanto estranho. Nos anos 80, tempos de Lucas, alguns fiéis desanimavam, havia muitos problemas insolúveis. As comunidades rezavam (Lc 11,1ss), mas mesmo a assim os problemas persistiam. Parece que Deus não ouvia. A parábola reflete este povo cansado e sofredor que esperava justiça. Para muitos não havia nenhuma esperança a não ser apelar para Deus, outros desanimavam. Foi então que Lucas, ou sua comunidade lembrou o ensino de Jesus para animar estas comunidades.

A situação das viúvas era trágica. Elas eram pessoas socialmente abandonadas. Mesmo tendo bens, não os podiam administrar, caindo desta forma nas mãos de administradores perversos que as exploravam (Mc 12,40). Como na época não havia previdência social, muitas delas viravam mendigas, ou até prostitutas para não morrer de fome.

Um juiz sem escrúpulos ficava alheio aos sofrimentos de uma viúva, pois ela não tinha como suborná-lo. Ela não tinha nenhuma saída a não ser apelar com persistência. Ele, insensível diante de Deus e dos pobres e sofredores, foi tocado, não pela fé, nem por um sentimento de caridade, mas justamente pela insistência. Para se ver livre, atendeu à viúva, fazendo-lhe justiça contra seu adversário, provavelmente um mau administrador de seus bens.

Ora, se até um juiz mau, diante da insistência, cedeu e fez justiça, quanto mais Deus que é infinitamente bom, não atenderia seus filhos que lhe pedem com perseverança? (Lc 11,13).

Como o povo do deserto, frágil, como a viúva sem saída, mas persistente, assim também deve agir o cristão de todos os tempos. Se dependesse unicamente das próprias forças, o povo do deserto teria perecido antes mesmo de passar o Mar Vermelho (Ex 14,1ss), teria morrido de fome (Ex 16,1ss), de sede (Ex 17,1ss) e derrotado pelos amalecitas (Ex 17,8ss). Mas com seu empenho, mais a súplica, Deus o conduziu à vitória superando todos os obstáculos. Se a viúva só contasse com seu poder pessoal, seu adversário a teria ignorado. Mas a súplica persistente lhe deu vitória. Assim também, os discípulos de todos os tempos, não devem apenas fazer uma novena quando têm algum problema e depois de resolvido parar a oração. Nem sequer desanimar quando parece que Deus não os ouviu. Devem rezar sempre, com persistência. Deus os atende, pois ele é, acima de tudo, bondade e amor.

Relacionando com as outras leituras

Ex 17,8-13: no processo de libertação do povo hebreu e na conquista da Terra Prometida, aconteceram muitas dificuldades: passagem pelo mar (Ex 14), fome (Ex 16,1ss), sede (Ex 17,1ss), combates com adversários (Ex 17,8ss). O povo não teria vencido com suas próprias forças. Javé foi a solução dos problemas quando o povo suplicava. Amalec queria impedir este processo de libertação que conduzia à vida. O povo, por suas próprias forças não podia vencer, mas pela oração de Moisés, conseguiu continuar o processo de libertação. Poder-se-ia dizer: a vitória não veio apenas pela luta de Josué, mas esta luta foi abençoada pela oração de Moisés. As duas coisas foram necessárias: empenho e oração.

2Tm 3,14–4,2: quase todas as pessoas dizem ter fé. Porém qual é a fé das pessoas que nunca se aprofundam na revelação de Deus? É uma fé sem base. Paulo deixa a seu discípulo uma regra: a Bíblia (Escrituras Sagradas). Por meio dela se chega a Jesus Cristo, pois ela é inspirada por Deus. Ela é a base sólida de uma fé verdadeira.

 

 

28º Domingo do Tempo Comum
Dia 9 de Setembro de 2022
Primeira Leitura: 2Rs 5,14-17
Salmo: 98/97,1-4
Segunda Leitura: 2Tm 2,8-13
Evangelho: Lc 17,11-19

 

O Evangelho

Lembremos que o Evangelho segundo Lucas, ou para Teófilo, é uma obra com objetivo evidentemente catequético. Sendo assim, toda sua organização, e a forma como as narrativas são apresentadas, quer ensinar algo sobre o sentido do projeto libertador de Jesus, apresentado em Lc 4,18-19. A passagem dos “dez leprosos” está dentro da viagem de Jesus entre a Galileia e Jerusalém que inicia em 9.51-52, onde o povo samaritano é mencionado ao Jesus enviar mensageiros para preparar o caminho. Lucas quer demonstrar que o Evangelho de Jesus destrói as barreiras, derruba os muros, supera os ódios e inclui todas as pessoas excluídas. A inclusão não é uma concessão de Jesus, mas se revela na forma como as pessoas, antes excluídas, acolhem o Evangelho. No Evangelho deste Domingo, Jesus esta perto de Jerusalém, tanto que os homens curados – até por serem homens – poderiam se apresentar aos sacerdotes (v. 14). Só depois do milagre, dado a todos, se revela que a única pessoa que acolhe plenamente o Evangelho é um samaritano ou estrangeiro.

A dinâmica da narrativa e seus acentos

v.11 – Lucas mostra que Jesus não evitava o caminho através da Samaria, para ir da Galileia a Jerusalém, diferente de outras pessoas preconceituosas que não iam por ali.

v.12-13 – “Entrando numa ‘certa’ aldeia” (tina komen), coloca a ação em um lugar qualquer, porém pequeno, possivelmente da periferia, onde há um bom número de homens leprosos – pode que expulsos de outros lugares – que gritam por misericórdia, ou piedade (eleison).

v.14 – O simples reconhecimento de sua petição, e o fato de se tornar visíveis para o sacerdotes, já os “limpa” da doença (como se falava em relação à lepra).

v.15-16 – Só um deles, ao ver-se curado, volta para agradecer, e este era um samaritano (isto é, duplamente excluído por ser leproso e samaritano).

v. 17-19 – Jesus apresenta o ensinamento catequético ao perguntar, “onde estão os outros nove?” e “não houve quem voltasse para dar glória a Deus a não ser este estrangeiro?”. Declarando finalmente a salvação – inclusão e libertação – de quem antes foi excluído.

Resumo catequético da narrativa

a. A opção de Jesus de passar pela Samaria dirige seu projeto em direção às pessoas excluídas e discriminadas.

b. Jesus anda pelas periferias, pequenas aldeias, indo ao encontro das pessoas excluídas – discriminadas ou expulsas – dos centros de poder.

c. Jesus provoca a visibilidade daquelas pessoas que a religião e o poder dominante não quer ver ao mandar os homens se apresentarem aos sacerdotes, este é o princípio da cura da sociedade,

d. Jesus mostra que as pessoas mais discriminadas, dupla ou triplamente, por causa da sua condição social, física e étnica, são as mensageiras preferenciais da fé libertadora.

Relacionando com as outras leituras

Na narrativa do 2º Livro dos Reis vemos a quebra das barreiras da guerra e do ódio. A cura de estrangeiro (o Sírio Naamã) pelo profeta Eliseu, fez com que este guerreiro se humilhasse ao tomar banho no barrento rio Jordão, e que – sob a oposição do Rei de Israel – aceitasse a dádiva de Deus através de seu antigo inimigo. Na 2ª Carta a Timóteo se fala de que assumir o Evangelho implica em assumir os sofrimentos das pessoas excluídas e discriminadas, fazendo que as pessoas que o anunciam sejam vistas como criminosas ou malfeitoras. No entanto, nem mesmo quando falhamos em nossa fidelidade – nos omitindo – Deus permanece fiel.

27º Domingo do Tempo Comum
Dia: 02 de outubro de 2022
Primeira Leitura: Hab 1,2-3; 2,2-4
Salmo: 94,1-2.6-7.8-9
Segunda Leitura: 2Tm 1,6-8.13-14
Evangelho: Lc 17,5-10

 

O Evangelho

Nos textos imediatamente anteriores Jesus se dirigiu a “seus discípulos” (v.1.3). Agora (v.5-10) os interlocutores são os apóstolos. Portanto, é uma palavra do Senhor válida também para a comunidade. Eles expressam sua perplexidade com o radicalismo do ensino proposto pelo Senhor. É tão difícil conceder o perdão de forma ilimitada como Jesus exige, e por isso pedem-lhe que aumente a sua fé. Somente com uma fé forte e autêntica é possível se adaptar às exigências do evangelho.

Em sua resposta, Jesus não se refere à quantidade da fé, mas à sua autenticidade. “Aumente nossa fé!”, literalmente: “Aduze-nos fé”. O dito paralelo em Mt 17,20 vem depois que os discípulos falharam em expulsar um demônio (Mt 17,14-18), e refere-se à sua falta de fé (17,19). É a primeira vez que se fala dos apóstolos depois de 9,10 (cf também 11,49) e da intervenção de Pedro em 12,41. Para o pedido nenhuma explicação é dada. Para o uso de “Senhor” (Kyrios) nesta passagem está em linha de continuidade com 10,1.41; 11,39; 12,42; 13,15.

Se tivésseis uma fé do tamanho de um grão de mostarda”: Como em 13,19, o termo de comparação é uma coisa muito pequena. A primeira parte nos coloca na expectativa de um discurso hipotético direto: se isso, então aquilo. Em vez disso, a construção da apódose é a de uma condição irreal, “planta-te no mar”, o que sugere que na verdade os apóstolos não possuem tal fé.

Diríeis a esta amoreira”: Uma vez que a construção aqui assume que eles não têm a fé necessária, a conclusão “e ela vos obedeceria” é muito menos forte do que nos textos paralelos, nas quais se promete a capacidade de mover montanhas com fé (cf. Mt 17,20; 21,21; Mc 11,22-23).

Quem de vós, tendo um escravo”. Mais uma vez encontramos a analogia cara a Lucas das relações patrão/servo (cf. 12,35-40,42-48; 13,25-27; 14,16-24; 16,1-13). É adequado traduzir o termo doulos como “escravo”, pois indica a dureza da ordem social e das atitudes apresentadas nesta anedota, que só pode ser encontrada em Lc. A escravidão vigorava em Israel, embora mitigada por certos dispositivos (Lv 25,8-10; Dt 15,12-14). Contudo, não estavam definidos os limites para os serviços dos escravizados, muito menos se pensava que tais serviços poderiam ter algum direito à recompensa.

Por acaso, fica o senhor devendo…?”. A expressão echei charin significa “agradecer”. Não se trata de boas maneiras, mas de obrigações e comportamentos social. Em grego temos literalmente: “Deve ele favor ao escravo?”. A forma grega da questão requer a resposta “não”.

Assim, também vós”. Lc usa houtōs como em 12,21; 14,33; 15,7.10 para trazer à tona a moral de história.

Somos escravos inúteis” Mt 25,30 fala de um servo que é “preguiçoso” (achreion), porque ele não fez uso do dinheiro que lhe foi confiado em depósito. Aqui em Lc, o mesmo termo é usado em senso de “inútil” ou “de escasso valor”, significa alguém a quem “nada se deve” por ter feito o que se esperava que fizesse.

O reino é um dom gratuito de Deus. Com a parábola Jesus se contrapõe a una mentalidade meritocrática. A fidelidade à Lei, a prática de boas obras não é comporta de per si o direito de receber recompensas da parte de Deus. O discípulo e a discípula de Jesus, tendo cumprido o que lhes foi ordenado, deve considerar-se um servo/a à disposição completa do senhor; ele/ela não pode reclamar direitos em relação a Jesus. Certamente Jesus não pretende negar a importância das boas obras em adquirir a vida eterna (cf. Mt 5,16). No entanto, a recompensa que Deus concederá ao servo/a fiel não deve ser considerada uma recompensa devida, mas um presente gratuito. A participação na vida eterna consiste na comunhão de vida com Deus, transcendendo todo desempenho humano e não pode ser aviltada com uma concepção terrena do salário devido.

A parábola, dirigida aos Doze (v.5), não visa decerto projetar uma imagem distorcida de Deus como um autoritário desrespeitoso de seus servos. Não é esta a lição de similitude, centrada unicamente na atitude que o/a discípulo/a deve assumir para com Deus. Atitudes que se aplicam também à responsabilidade da comunidade cristã. Jesus inculca soberania de Deus em todo o evangelho.

Toda a perícope insiste na fidelidade e trabalho árduo do discípulo e da discípula na vida cotidiana; sem, no entanto, reivindicar nenhum direito perante Deus.

Relacionando com as outras leituras

O profeta Habacuc, (1ª. Leitura), acentua a fidelidade que leva a pessoa a cumprir as leis de Deus. Os LXX traduziram emunah “fidelidade” por pistis “fé”, donde as citações de Paulo. Tanto a fidelidade em Hab como a  no NT, mostram que a estabilidade da vida está no compromisso atitudinal com Deus. Ressoa forte a admoestação do Sl 94: “Não endureçais o vosso coração!”.

 

 

 

 

26º Domingo do Tempo Comum

Dia 25 de 09 de 2022

Primeira Leitura: Am 6,1a.4-7

Salmo: 146/145, 7-10

Segunda Leitura: 1Tm 6,11-16

Evangelho: Lc 16,19-31

 

 

O Evangelho

No Evangelho de hoje, Jesus continua seu ensinamento sobre o perigo das riquezas e a necessidade de cada um comprometer-se pessoalmente com os valores do Reino de Deus. A parábola tem duas partes: o que acontece aqui neste mundo (vv. 19-21) e o que acontece no outro mundo (vv. 22-30).

Nos vv. 19-21, Jesus exagera na descrição do rico, para mostrar que ele é alguém muito nobre e importante na sociedade: rico, vestes de púrpura e linho fino, baquetes todos os dias (v. 20). Jesus também exagera na descrição do pobre, para mostrar que ele está na extremidade oposta do rico, alguém considerado descartável: pobre, chamado Lázaro, coberto de feridas e passa fome todos os dias (v. 21). Nosso olhar vai da extrema riqueza à miséria extrema. Portanto, a realidade apresentada pela parábola é um contraste escandaloso.

O pobre se chama Lázaro. Este nome em hebraico – ‘El’azar’ – significa “Deus socorreu”. Desprezado pelo rico, o pobre será socorrido por Deus. Em outras palavras, o nome do pobre é o resumo da parábola! É importante observar que o rico conhece o pobre por seu nome (vv. 23.24), manifestando assim que o conhecia bem e que, portanto, sua omissão era consciente.

Na época de Jesus, havia uma mentalidade segundo a qual a pobreza era o castigo por algum pecado e a riqueza era a recompensa por uma vida honesta e exemplar. Jesus rompe com esta mentalidade. Pobreza e riqueza não podem ser vistas como a retribuição em troca de um comportamento. Há riquezas injustas, assim como há sofrimentos não merecidos.

Nos vv. 22 e 23 continua o contraste, mas agora invertido. Antes, nos vv. 19-21, Lázaro está jogado, comendo o que cai da mesa do rico; agora o mesmo Lázaro é levado pelos anjos para o seio de Abraão. Diferentemente, o rico agora é rebaixado e sepultado e está na mansão dos mortos, atormentado por uma visão: Abraão com Lázaro no seu seio (v. 23). A frase “no seio de Abraão” pode ser entendida em dois sentidos. Em primeiro lugar, em sentido familiar, afetivo, da mesma forma que o Filho Unigênito está no seio do pai, em Jo 1,18. O segundo sentido é o honorífico, isto é, um lugar de honra em um banquete, como o discípulo amado, que se reclina no seio de Jesus, em Jo 13,23. Os dois sentidos não são excludentes. Ou seja, Lázaro, que durante sua vida foi excluído dos banquetes do rico, agora ocupa o lugar íntimo e de honra no banquete do pai Abraão.

O rico faz três solicitações a Abraão. No v. 24, ele clama por piedade e pede água em meio à sua aflição nas chamas. O que mais deve nos preocupar nesta parábola é que ela não diz que o rico é um explorador ou um criminoso. O que a parábola denúncia é modo de vida estravagante de alguém que nem percebe o pobre que jaz à sua porta. Esta é a injustiça indireta causada pelo egoísmo.

Na segunda solicitação, o rico quer que Abraão envie alguém à casa de seu pai (v. 27). O pedido do rico é em benefício dos irmãos (v. 28). A resposta de Abraão é curta e grossa: Eles têm Moisés e os profetas. Que os ouçam! (v. 29). Não é fácil imaginar cinco milionários consultando a Bíblia, na busca da mensagem social da legislação do Pentateuco e dos profetas!

O rico insiste e sua terceira solicitação repete a segunda: Mas, se alguém dentre os mortos for até eles (v. 30). A resposta de Abraão – Se eles não ouvem Moisés nem os profetas, eles não serão persuadidos nem mesmo se alguém dos mortos ressuscitar – corrige os que estão na Igreja à espera de uma intervenção extraordinária e se esquecem da seriedade das prescrições da revelação relativa ao amor, ao serviço ao próximo e à partilha com os pobres.

Em resumo, o contraste entre o esbanjamento do rico e a extrema penúria de Lázaro mostra que Jesus quer alertar seus discípulos sobre o perigoso poder que a riqueza tem: ela deixa o ser humano cego e indiferente ao sofrimento dos outros. O rico é condenado porque as riquezas o tornaram insensível ao próximo e o distanciaram do verdadeiro Deus. A ilusão da autossuficiência, que faz o homem e a mulher não sentirem necessidade de Deus, constitui uma forma de impiedade.

Nem mesmo os milagres mais espetaculares – como a suposta volta de um morto à vida – são capazes de abrir o coração de quem faz da riqueza o seu deus.

 

 

25° Domingo do Tempo Comum
Dia 18 de Setembro de 2022
Primeira Leitura: Am 8,4-7
Salmo: 112,1-2.4-6.7-8
Segunda Leitura: 1Tm 2,1-8
Evangelho: Lc 16,1-13

 

O Evangelho

A prática religiosa que apenas se ocupa com belos rituais, liturgias extravagantes, vestes sacras pomposas, incenso, mas não pratica a justiça, não é verdadeira. Portanto, antes de todas estas preocupações, conta a justiça, a partilha e o compromisso social: econômico e político. Sem justiça, o culto se torna desagradável a Deus.

A parábola de Lc 16,1-13 parece difícil. Numa leitura superficial, poder-se-ia supor que o administrador elogiado foi infiel, pois doou o que não era seu. No entanto, hoje muitos biblistas creem que este administrador foi infiel, sim; mas a infidelidade ocorreu ao estabelecer altas taxas de juros aos empréstimos e não na hora de abdicar destas mesmas taxas. Neste momento ele apenas abriu mão do seu egoísmo. Ao emprestar os bens de seu patrão, estabeleceu taxas exorbitantes das quais tirava seu salário com muita usura, fora do que foi estabelecido pelo dono. De fato, ele emprestou cinquenta barris, ou talvez menos que isto. Os outros cinquenta eram o ganho ambicionado pelo administrador.

Na iminência de ser demitido, ele reconheceu seu erro e abdicou de sua parte, ou seja, renunciou à ganância, isto é, aos seus lucros exagerados. Ele passou do sistema de usura para o sistema de partilha. Favoreceu os endividados sofridos. Em vista dos problemas da vida, abriu mão de sua ganância, de seus ganhos astronômicos e ilícitos. Ele soube relativizar os bens, pois ninguém pode servir a Deus e ao dinheiro (Mt 6,24b). Logo, o elogio do patrão não se refere a quem abusou de propriedades alheias manipulando taxas de juros previamente estabelecias pelo dono, o que não lhe cabia fazer. O elogio se refere ao fato de saber renunciar à própria ganância, isto é, abrir mãos do egoísmo, para assim favorecer os endividados em sua penúria.

Relacionando com as outras leituras

Am 8,4-7: O profeta Amós atuou entre os anos 780 a 740 a.C. no Reino do Norte. Nos santuários de Guilgal e Betel se praticava vistosas liturgias, observando festas, sábados, etc. (Am 4,4ss). Porém, esta liturgia falava de Deus, mas não tocava em assuntos de justiça. Os ricos comerciantes roubavam a balança, extorquiam o pobre. Amós mostra que Deus jamais aceitará estas injustiças. Em outras palavras, Deus não aceita culto quando se pratica a injustiça (Is 1,10ss; Is 58,1ss).

1Tm 2,1-8: Paulo exorta os cristãos a rezarem por todos: reis, autoridades, pela paz, pois Deus quer a salvação de todos. Portanto, a verdadeira oração cristã, é sempre pela coletividade e não apenas por interesses pessoais, ou particulares. As liturgias da Igreja, também, hoje, são antes de tudo, universais (por ex.: orações eucarísticas), num segundo momento também tocam em interesses pessoais ou particulares.

A mensagem na atualidade

Hoje, é comum, entre muitos cristãos, buscar uma religião com vistosas liturgias, mas que só olhe para o céu, sem se importar com os problemas da vida real, dizendo que o mundo econômico e político não é da competência da Igreja. Segundo tal visão, a César compete a economia e a política; à Igreja compete o mundo espiritual. De forma fundamentalista, citam: “A César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mc 12,17). Geralmente agem assim porque não querem que a fé questione suas riquezas e seus privilégios.

Até há os que criticam a Campanha da Fraternidade anual, quando a Igreja convida seus fiéis à conversão que necessariamente passa pela economia e política, dizendo que isto não é religião, mas apenas política. Dizem, alguns: “Queremos quaresma sem Campanha da Fraternidade, religião sem política”. Foi exatamente isto que Amós denunciou no seu tempo, é isto que Jesus denuncia com seu ensino. Desfazer-se da usura para servir a Deus, deixando o excesso de lucros para favorecer quem geme sob o peso das dívidas e assim firmar novas relações. No caso da parábola, a renúncia ao excesso do administrador foi alimento na mesa dos endividados. Isto agrada a Deus, mais do que liturgias pomposas. As liturgias que agradam a Deus, são a celebração da justiça que se vive.

 

 

24º Domingo do Tempo Comum

Dia 11 de Setembro de 2022

Primeira Leitura: Ex 32,7-11.13-14

Segunda Leitura: 1Tm 1,12-17

Salmo: 50,3-4.12-13.17.19

Evangelho: Lc 15,1-32

 

O Evangelho

Este Evangelho está situado no chamado de “Caminho de Jerusalém”. É o caminho final de Jesus, portanto carregado de grande dramaticidade. Neste capítulo 15 o ponto de partida é a parábola que aparece também em Mt 18,12-14. Depois há um material próprio que ilustra e aprofunda a parábola original (a mulher e a moeda perdida, v.8-10, e a parábola do filho perdido e seu irmão, v. 11-32).

A mulher está no centro, o que levanta a questão das fontes femininas neste Evangelho (as mulheres que apoiavam financeiramente a missão de Jesus e outras discípulas em Lc 8,1-3; Marta e Maria em Lc 10.38-42).

A releitura da fonte de Mateus e suas ênfases (15,1-7).

v. 1-3 – De um lado “publicanos e pecadores” que se aproximam sendo acolhidos na mesa da refeição; do outro fariseus e escribas “resmungavam” ou “murmuravam entrementes, ou entre si” (diagogguxo), por causa de que Jesus “acolhe os pecadores” (os recebe pessoalmente – prodexomai) e ainda “come com eles” (comungava com esta gente). A parábola da “ovelha perdida” se coloca entre a atitude acolhedora de Jesus e a reação de “fariseus e escribas”.

v. 4 – 7 – No lugar da imagem genérica do “homem” usada em Mateus, Lucas vai se dirigir diretamente aos seus contendores: “Quem de vocês…”. A ovelha perdida justifica que outras noventa e nove sejam deixadas no campo (“deixadas para trás” – kataleipó). O que é “deixado para trás”? Seria a teologia da exclusão que impedia comungar com pecadores e publicanos? Finaliza com a alegria de que estas pessoas sejam reintegradas ou reincorporadas, mais do que as outras noventa e nove que “justas”. Seria que a atitude acolhedora sempre trará mais alegria no céu (isto é, para Deus)?

v. 8 – 10 – A pequena parábola da mulher e sua moeda perdida, parece estar ofuscada pela dramaticidade da ovelha perdida e a longa narrativa do filho perdido. Mas, sua importância é estar no centro. O público e a polêmica permanecem iguais. Como reagiriam os fariseus e escribas ao exemplo de uma mulher? No tratado Menachot 43b, que faz parte do Talmud da Babilônia, está escrito: “O homem deve recitar três bênçãos cada dia, e elas são: Que me fizeste (do povo de) Israel; que não me fizeste mulher; que não me fizeste ignorante”. Jesus afronta a teologia excludente dos murmuradores ao colocar o exemplo da mulher e suas companheiras. As mulheres também teriam lugar na mesa de Jesus? Agora a alegria é “entre os anjos” – que defendem as mulheres! (v.10a)  – quando um pecador se converte (algo que era impossibilitado pela exclusão a priori da comunhão).

v. 11 – 30 – Esta grande parábola também tem de um lado publicanos e pecadores sentados à mesa com Jesus, e do outro fariseus e escribas manifestando seu descontentamento. O filho perdido peca em todas as formas imagináveis: primeiro porque pede a herança fora de tempo, prejudicando a família; segundo porque a gasta numa vida dissoluta, desregrada, irresponsável e, terceiro, no por ter querido comer a comida dos porcos (uma imagem que pode se aproximar do que estes fariseus e escribas pensavam de Jesus comer com publicanos e pecadores).O pai acolhe e marca uma festiva refeição, assim como Jesus com os pecadores, usando o argumento de que o filho “estava morto e voltou a vida, perdido e foi encontrado” (v. 24). Uma alusão ao sentido da morte e ressurreição de Cristo, acolhendo todas as pessoas pecadoras. O irmão mais velho, que não aceita este acolhimento, argumenta nunca ter desobedecido uma ordem (v.29a). Isto é, quem exclui segue a “lei”, mas não entende a festa acolhedora que encontra o que se perdeu e traz para a vida o que morreu (v.31).

Relacionando com as outras leituras

Na leitura do livro de Êxodo, a traição do povo faz com que Deus proponha eliminar todos e começar de novo apenas com Moisés. Mas ele mesmo intercede em favor da misericórdia e “Javé desistiu do mal”.

Também o apóstolo Paulo sabia quanto Cristo tinha lhe perdoado por ser “blasfemo, perseguidor e violento”, por isso, superando a ignorância e incredulidade, proclamava a misericórdia divina (1 Tm 1,13-14).

 

 

 

23º Domingo do Tempo Comum

Dia: 04 de setembro de 2022

Primeira Leitura: Sb 9,13-18

Salmo: 89,3-6.12-14.17

Segunda Leitura: Fm 9b-10.12-17

Evangelho: Lc 14,25-33

 

O Evangelho.

Na jornada do Messias a Jerusalém, Lc constantemente segue o padrão de alternar entre ditos sobre rejeição, convites para a conversão e ensinamentos sobre a condição de serem discípulos. Depois de ter apresentado a parábola da rejeição dos líderes (14,16-24), na qual um exagerado apego às posses e aos próprios interesses torna os convidados surdos ao chamado de Deus, Lc apresenta Jesus dirigindo-se à multidão (14,25) e repete as mesmas advertências para aqueles que estão dispostos a segui-lo. A necessidade de relativizar todas as relações é expressa em 14,26 e o pedido de renúncia a todas as posses é expresso em 14,33.

Entre estes rígidos pronunciamentos, Lucas insere as duas parábolas (específicas deste Evangelho) dos atentos calculadores. A lição em ambas é a mesma: não comeces se tu prevês que não serás capaz de terminar. E, como premissa para essas parábolas, a necessidade mais fundamental de todas: o que é necessário para ser discípulo/a é assumir a cruz e seguir o caminho do Messias (v.27).

A parábola do banquete e as condições para poder ser discípulo/a exprimem a mesma ideia: o chamado de Deus anunciado pelo Messias deve relativizar qualquer outra necessidade, mesmo vital. A parábola mostra como o apego às pessoas e coisas pode, na verdade, ser uma rejeição ao convite. As indagações afirmam claramente que a escolha de querer ser discípulo/a se traduz exatamente na escolha de renunciar ao apego aos bens e às pessoas. O/A discípulo/a que concorda em segui-lo deve fazê-lo com compromisso e de uma forma incondicional.

O evangelista propõe agora uma pequena catequese sobre o discipulado, marcada por uma expressão repetida três vezes: ou dynatai einai mou mathētēs, “não pode ser meu discípulo” (v. 26.27.33). Note-se o agrupamento textual consistindo em duas articulações: v.26-27, duas sentenças concernentes às condições radicais para o seguimento; v.28-33, duas parábolas que ilustram a ponderação necessária para seguir Jesus.

Jesus dirige essas palavras às multidões (v.25), portanto, devem ser entendidos como dirigidos a todos e todas. Para participar do grande banquete messiânico  são necessárias três condições, destacadas pelo refrão “não pode ser meu discípulo”: é preciso relativizar até mesmo os mais ternos afetos (v.26), carregar sua cruz atrás dele (v. 27), renunciar aos bens terrenos (v.33). Essas exigências radicais são válidas para todo seguidor de Jesus.

v.26: “…não odeia o pai e a mãe…”. A linguagem é muito forte; Mt 10,37 atenua-o em “quem ama pai e mãe mais do que a mim”. O termo “odiar”, (misei) é o oposto de “amar” (agapaó). Os termos em questão denotam atitudes e comportamentos, não emoções. O que Lc enfatiza não são os sentimentos que alguém nutre pelos familiares, mas o modo de comportar quando se trata de escolhas que interessam o Reino; o tipo de escolha implícito nos termos é especificado em 16,13.

“e até mesmo sua própria vida”: Lc usa o termo psyché (literalmente “alma”) com o mesmo significado atribuído em 12,20-24.

v.27: “Quem não carrega a própria cruz”: a versão de Lucas quer sublinhar dois aspectos. O uso do termo “carregar” (bastazó) em vez de “tomar” (lambanó) de Mt 10,36 acentua o caráter contínuo da condição do discípulo: “sua cruz de cada dia” 9,23. Analogamente, Lc usa heautou (“dele próprio”) para sublinhar a necessidade de uma aceitação pessoal da responsabilidade.

“Não pode ser meu discípulo”. Mt 10,3 traz “não é digno de mim”; Lc ao invés, quer enfatizar o fato de “ser discípulos/as”. Observe-se o uso do termo mathētēs em 9,14.16.18.40.43.54; 10,22.23; 11,1; 12,1.22.

v.28-30: “desejando uma torre edificar”. Esta parábola encontra-se somente em Lc. O cálculo dos custos está perfeitamente de acordo com o conceito do ditado anterior: se tu não tiveres vontade de comprometer tudo o que tens, inclusive a própria vida, nem precisas começar.

31: “Qual rei, partindo em guerra contra outro rei…” Esta parábola também é exclusiva de Lc e lembra a “luta entre os dois reinos” sugerida por 11,17-20. O conceito aqui é um pouco diferente: calcule a possibilidade antes mesmo de começar.

v.32: “uma embaixada pela paz”. Literalmente: “pede as condições para a paz” (eiréné). v.33: “não renuncia a todos os seus bens: o verbo usado - apotassó - literalmente significa “dar adeus” como em 9,61. A necessidade de renúncia é inculcada aos bens terrenos. O versículo está ligado ao v.27: depois de pedir a renúncia aos laços familiares e a disponibilidade para carregar a cruz, agora Jesus pede também a renúncia de bens. O verbo no tempo presente sugere, mais do que um ato, uma disposição de renunciar a tudo para seguir Jesus.

Relacionando com as outras leituras.

A 1ª. Leitura joga luz sobre a distância entre os pensamentos humanos e aqueles divinos, destacando a grandeza da sabedoria que vem de Deus. Esse texto relaciona-se complementarmente com as condições para seguir Jesus. A precariedade da pessoa encontra suporte no Santo Espírito enviado do alto (9,17).

 

22º Domingo do Tempo Comum
Dia 28 de agosto de 2022
Primeira Leitura: Eclo 3,19-21.30-31
Salmo: 68/67,4-7ab.10-11
Segunda Leitura: Hb 12,18-19.22-24a
Evangelho: Lc 14,1.7-14

 

 

O Evangelho

O evangelho de hoje mostra Jesus na casa de um dos chefes dos fariseus. É a terceira vez, no evangelho de Lucas, que um fariseu o convida Jesus para uma refeição (Lc 7,36; 11,37 e 14,1). Parece que Jesus teve muitos amigos fariseus, mas nem sempre eles concordavam com as opiniões de Jesus.

Os fariseus buscavam sinceramente cumprir a Lei de Deus em tudo. Mas esse desejo virou uma obsessão, a ponto de fazer deles pessoas orgulhosas e intransigentes, que achavam que não precisavam mais se converter.

No texto de hoje, Jesus observa como os convidados escolhiam as primeiras cadeiras (v. 7b). No tempo de Jesus, conseguir um lugar de destaque era importante porque dava a possibilidade de comer o que havia de melhor, uma vez que era gigantesca a diferença entre o que era servido na mesa principal o que era servido nas outras mesas.

Nos vv. 8-10, Jesus se dirige aos convidados e retoma regras de etiqueta ou de boas maneiras em uso na sociedade. São as mesmas sugeridas pela tradição sapiencial: Não ocupe o lugar dos grandes. É melhor que digam a você: “Suba até aqui”, do que ser humilhado na presença de uma autoridade (Pv 25,6-7; cf. Sr 31,18). Poderíamos concluir, com razão, que esse ensinamento sapiencial de Jesus é absolutamente trivial, um pequeno conselho dentro de um sistema cultural estabelecido. Porém, Jesus não está interessado em fazer recomendações sobre como se comportar durante uma refeição. Ele usa a circunstância como ponto de partida para um ensinamento sobre o Reino de Deus: para entrar no Reino, é necessário humildade.

Jesus adverte seus ouvintes acerca do perigo de um comportamento viciado pela soberba e pelo egoísmo: quem dá um alto valor a si mesmo pode passar pela humilhação de ser declarado alguém comum e igual aos outros. A falta de humildade é um perigo constante na Igreja. Muitos irmãos e irmãs de nossas comunidades começam bem sua caminhada, mas aos poucos vão ficando como os fariseus: orgulhosos e intransigentes, e acabam se achando os melhores.

Ao anfitrião, Jesus recomenda uma atitude de gratuidade: Quando deres uma festa ou um banquete, não chames teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem teus vizinhos ricos, para que eles não te convidem também e assim haja retribuição para ti (v. 12). Mesmo por trás do gesto generoso de receber convidados pode se esconder um sentimento de orgulho e egoísmo: convidar somente pessoas que, de algum modo, podem retribuir ao convite.

A escolha dos convidados pode ser motivada pelo interesse e por quais vantagens aquele convite pode render ao anfitrião. Para incentivar seus ouvintes a evitar este comportamento interesseiro, Jesus aconselha a convidar os pobres, estropiados, coxos e cegos (v. 13c). No ambiente judaico de Jesus, estas categorias de infelizes não podem participar de nenhuma cerimônia religiosa no Templo (cf. Lv 21,17-21). Mais ainda, tais pessoas nem sequer podiam fazer parte da comunidade religiosa dissidente que habitava Qumran.

No v. 14, Jesus profere uma bem-aventurança: e serás bem-aventurado, porque eles não têm com que te retribuir. Mas terás tua retribuição na ressurreição dos justos. Este desafio aos esquemas convencionais de reciprocidade é destacado pela condenação de Jesus ao hábito de convidar aqueles que podem retribuir (vv. 12-14). À luz de um julgamento humano, o que Jesus recomenda é uma ação sem compensação; mas o fiel sabe que será recompensado na vida futura, na qual resplandecerá a “justiça” ou a santidade daqueles que lutam por fraternidade, vida, direito etc. Jesus ensina que o bem deve ser realizado mesmo sem reconhecimento. Não obstante, tudo será compensado, pago. Desta vez o autor do Evangelho de Lucas não fala do banco celestial onde os tesouros estão seguros (cf. 12,33), mas ressalta o trabalho cristão à luz da vida após a morte. Esse é o critério do Reino. O evangelho é anunciado aos despossuídos, cegos, coxos e pobres (7,22). Os cristãos devem ser “misericordiosos, como o Pai é misericordioso” (6,36) para que sejam recompensados por Deus em vez de receberem a recompensa de outros homens.

Em nossas comunidades, as duas atitudes estão bem presentes: tanto a busca dos primeiros lugares como a falta de gratuidade. Ambas são atitudes egoístas e Jesus nos convida a combatê-las primeiramente em nós mesmos. Mas precisamos também estar atentos: não devemos confundir “buscar o último lugar na comunidade” com “sentar-se no último banco da igreja”. Buscar o último lugar é uma atitude de serviço e compromisso; sentar-se no último banco muitas vezes é uma atitude de oposição e indiferença.

 

Domingo da Assunção de Nossa Senhora
Dia 21 de gosto de 2022
Primeira Leitura: Ap 11,19a; 12,1.3-6a.10ab
Salmo: 45/44,10bc.11.12ab.16
Segunda Leitura: 1Cor 15,20-27a
Evangelho: Lc 1,39-56

 

O Evangelho

Ao celebrar a Assunção de Nossa Senhora, a Igreja nos apresenta uma perícope lucana do Evangelho da Infância (Lc 1-2). O texto se divide em duas partes: 1) O encontro das duas mães grávidas: Isabel e Maria; 2) o Magnificat.

1) O encontro das duas mães grávidas (Lc 1,39-45). Isabel traz em seu ventre aquele que é o último profeta do AT (Lc 16,16; Mt 11,13), que agora desemboca em Jesus que inicia seu percurso no ventre de Maria. Portanto, a alegria de Isabel, bem como a alegria da criança em seu ventre apontam para a transição do AT para o NT, pois no ventre de Maria está aquele que realizará a plenitude da Revelação de Deus, isto é, Jesus. Assim, Isabel traz em seu ventre o AT e Maria traz no seu seio o NT que realiza o que foi preparado pelo AT.

2) O Magníficat (Lc 1,46-55). Trata-se de um cântico da primitiva comunidade cristã que ganhou sua versão atual através da pena de Lucas. Melhor dizendo, a Igreja dos anos 80, inspirada pelo Espírito Santo, apresentou Maria desta maneira. Ao meditar o Magnificat os fiéis de todos os tempos têm uma imagem de como o Espírito Santo, que inspirou os textos bíblicos, queria que se entendesse a figura da mãe de Jesus. Ou ainda, Como Deus, através do Espírito Santo, apresenta Maria para a Igreja.

O texto é inspirado no Cântico de Ana (1Sm 2,1-10) e em outros textos do AT. Exalta o lugar das pessoas humildes, pequenas e desprezadas. É nelas que se realizam os desígnios de Deus. Maria, por excelência encarna o papel dos que não contam na sociedade: em primeiro lugar, por ser uma moça pobre de aldeia, em segundo lugar, por ser uma virgem, que na cosmovisão dos povos bíblicos, valia pouco. Assim sendo, a comunidade de Lucas, pobre, pequena, desprezada (Lc 12,32) vê nesta mulher o protótipo de sua própria realidade. Maria é figura que representa a verdadeira Igreja onde Deus realiza sua ação na história. Ela é o mais belo exemplo da Igreja de todos os tempos.

Olhando para Maria, a agraciada por Deus, e meditando seu cântico que o Espírito Santo inspirou, teremos um retrato falado de como deve ser a Igreja. Como Maria, há mais de dois mil anos, se colocou humildemente nas mãos de Deus e gestou o salvador do mundo, assim também a Igreja, espelhada nela, deve gestar Jesus para que todos os povos conheçam o salvador. A Igreja, depois de Jesus, tem em Maria, seu melhor exemplo.

Relacionando com as outras leituras

A Igreja, representada em Maria, é visualizada em Ap 12,1ss (1ª leitura). Ela, assim como Maria, tem o papel de gerar Jesus para os povos, ou seja, pregar Jesus a todas as nações. Nesta missão, em meio às dificuldades, a Igreja se identifica com a humilde e ameaçada mulher, perseguida pelas forças do mal, mas que, apesar das dificuldades, mesmo na clandestinidade, torna Jesus presente no mundo. Não há, aparentemente possibilidade de lutar contra as forças do dragão, porém, Deus ampara esta senhora grávida e sofredora diante do mal. A Igreja, através dos milênios, em sua missão de anunciar Jesus, enfrentou e enfrenta forças adversas, aparentemente invencíveis. Mas, como a mulher de Ap 12 recebe amparo de Deus, também a Igreja, em todos os tempos, é protegida pelas forças divinas.

Por isto, a liturgia de hoje coloca o texto de 1Cor 15,20ss, pois nela está o cumprimento da promessa da ressurreição. Maria é a mais próxima do ressuscitado e nesta figura, aparece o destino de toda Igreja.

Com base em tudo isto, bem como na Tradição, a Igreja, em 1950, depois de longa pesquisa, no pontificado do Papa Pio XII, proclamou o dogma da Assunção de Nossa Senhora de corpo e alma ao céu. Em Maria se realizou o que está prometido para todos os membros da Igreja, da qual ela é protótipo. Assim, celebrando a Assunção de Maria, a Igreja celebra sua própria esperança escatológica.

 

20º Domingo do Tempo Comum
Dia 14 de Agosto de 2022
Primeira Leitura: Jr 38,4-6.8-10
Salmo: 40/39,2.3.4.18
Segunda Leitura: Hb 12,1-4
Evangelho: Lc 12,49-53

O Evangelho

Um contexto comum aos Evangelhos Sinóticos é o da perseguição, embora o Evangelho dedicado a Teófilo, ou da Comunidade de Lucas, tenha sido sistematizado em um tempo de relativa calmaria (após a destruição do Templo de Jerusalém em 70 d.C. e antes da grande perseguição de 94 d.C.). Neste caso Lucas faz uma versão própria da tradição, sendo esta muito mais universal e dramática. Para construir sua versão, Lucas cita literalmente,  no centro (v.51), o texto que também aparece de Mateus 10,34a: “Não pensem que vim trazer paz à terra”. Assim, sempre com sua preocupação catequética, quer advertir que o projeto de Jesus e fortemente antagônico em relação ao sistema econômico, político e social vigente da “Pax Romana” (isto é a “paz” mantida pela força militar e repressiva, tendo a cruz como um dos seus símbolos).

O tecido de Lucas

Podemos dizer que Lucas parte do fogo e chega à espada! Nessa construção, a terra (que aparece nos vs. 49 e 51) e a divisão (que aparece no versículo 51 e 52), conectam o antagonismo entre o projeto de Jesus e a “pax romana”.

v.49 – “Fogo na terra (palavra-chave: gostaria – telo – “é meu objetivo”).

v. 50 – “Um batismo” (palavra-chave:  angustiado – sunexomai – “oprimido, aflito, preocupado”).

v. 51 – “Não vim trazer paz na terra, mas divisão” (palavra-chave: contrário – ouxí – “negativamente, de jeito algum”)

v. 52 – “A casa de 5 pessoas dividida” (palavra-chave: contra – epi – “sobre, por cima de”).

v. 53 –  “pai x filho, filha x mãe, sogra x nora”.

Desta forma, Lucas adverte que o sistema da “pax romana”, ou da “casa patriarcal” ou “patrícia” (que era outra estrutura comum no Império Romano) não corresponde ao projeto do batismo de Jesus, que se manifesta na denúncia da angústia opressiva. O poder que domina a terra precisa queimar a partir das novas relações sistémicas e familiares transformadoras (figura que aponta para ação do Espírito Santo, cf. Lc 3,16). A divisão, não é uma proposta do projeto de Jesus, mas a consequência da não superação do poder dominante na terra.

Relacionando com as outras leituras

Jeremias, muito mal compreendido pelos governantes de sua época que o jogaram na cisterna para morrer, defendia que a superação do poder opressor babilônico não seria com as mesmas “armas” (Jr 38,4-6.8-10). O seguimento de Jesus, que enfrentou o sistema de morte na Cruz, nos capacita a não desistir, mas resistir (Hb 12,3-4).

19º Domingo do Tempo Comum
Dia: 07 de agosto de 2022
Primeira Leitura: Sb 18,6-9
Salmo: 33/32,1.12.18-19.20.22
Segunda Leitura: Hb 11,1-2.8-19
Evangelho: Lc 12,32-48

 

O Evangelho

As instruções pela busca do reino de Deus são acompanhadas, nesta perícope, com as palavras sobre o retorno de Jesus. Aqui temos uma pequena catequese sobre a diligente vigilância à espera do Filho da Humanidade para o julgamento final. Uma vez que a data da referida vinda não pode ser conhecida, Jesus nos convida à vigilância e à  fidelidade no caminho.

v. 32 “pequeno rebanho”: aqui temos uma familiaridade semelhante a de “meus amigos” em 12,4. A imagem do rebanho lembra a descrição de Israel como um rebanho conduzido pelo Senhor (Ez 34,11-24). Os discípulos representam aquele “pequeno rebanho” que constitui o núcleo do novo povo que se reúne em torno do Messias; Segue o texto: “o Pai achou por bem” (eudokeó) usado como uma expressão de vontade divina.

E ainda: “dar-vos o Reino”. Em Lc 11,2 os discípulos foram exortados a orar pela vinda do reino do Pai; aqui Jesus lhes diz que já foi dado (achou por bem) a eles. Compare isso com 22,29-30, onde Jesus prepara “um reino” (basileia) para os Doze. A premissa é que o Pai já estabeleceu seu domínio sobre eles (deu-lhes “o Reino”), para que não vivam mais em um mundo caótico imprevisto, mas em um mundo governado pelo dom gratuito de Deus.

v.35. Com as cinturas cingidas: Encontramos a mesma expressão em Ex 12,11, descrevendo o estado de alerta para estar pronto a viajar: a longa túnica é puxada para cima e apertada na altura dos quadris para poder andar rapidamente (cf. Elias fazendo o mesmo para escapar da chuva: 1Rs 18,46 e o ​​desafio lançado a Jó em 38,3).

v.36. Esperar pelo seu senhor: A passagem tem semelhanças (lâmpadas/casamento/serviço/espera/noite) com a parábola das dez virgens em Mt 24,42-51.

v.39.  Depois do v. 37, este é o décimo primeiro macarismo no texto de Lc, que será imediatamente seguido pelo décimo segundo no v.43.

v.40. “o Filho da Humanidade virá”. Exceto pelas passagens de 9,26 e 12,8, a maior parte dos ditos sobre o o “Filho da Humanidade” em Lucas se referia ao ministério de Jesus (5,24; 6,5.22; 7,34; 9,56.58; 11,30; 12,10) ou seu sofrimento (9,22.26.44). Deste ponto em adiante predomina a futura vinda do Filho da Humanidade como juiz (17,22.24.26.30; 18,8; 21,27.36; 22,69).

v. 41. “para nós… ou para todos?”: Esta intervenção de Pedro encontra-se apenas em Lc, e tem uma importante função redacional ao assegurar que a parábola se aplique aos futuros líderes do povo, apresentando a imagem do administrador da casa como uma metáfora de autoridade (cf. 9,12-17).

v.42.44 “que o Senhor porá à frente… confiará a administração”: O verbo kathistémi (constituirá) é utilizado por Lc no futuro acenando para o papel dos apóstolos como líderes do povo. “A porção de alimento”: em vez de “comida” (trophé) de Mt 24,45, Lucas usa sitometrion, mais raro (literalmente “medida de grão”). Como ele faz em sua escolha de therapeia (servidão) para descrever os servos ou escravos da casa, Lc usa termos deliberadamente mais refinados.

v.43. “Feliz o escravo que…”: O despenseiro (oikonomos) é frequentemente traduzido como “administrador”. Ele próprio é um escravo (doulos), como aqueles que estão abaixo dele; apesar da autoridade relativa de que goza, ele está igualmente sujeito à autoridade do senhor (kyrios). Esta linguagem não pode deixar de evocar o tipo de relação que existe entre cristãos e seu mestre, o Kyrios ressuscitado.

v.45: “Mas se o escravo… começar a espancar os criados e as criadas…”. É típico de Lc apontar ambos os gêneros gramaticais; Mt 24,49 traz “companheiros”.

v.46. ​​“o dividirá ao meio” (dichotomeó). Não há perspectiva de realmente cortar o servo em dois, mas sim uma punição severa. Ele é contraposto ao “fiel e sensato” do v. 42; O contraste é entre aqueles que são “dignos de confiança” e aqueles que “não são dignos de confiança”.

v.47. “O escravo que, conheceu a vontade do senhor”: Estas palavras explicam o grau de responsabilidade devido à consciência. O termo para “vontade” é thelēma, que também significa “desejo”.

v.48. “a quem muito se deu…, a quem muito se entregou…”: Os dois termos sugerem a atribuição de autoridade e servem como moral da parábola anterior: os líderes da comunidade serão julgados mais severamente pela posição de responsabilidade que ocupam.

Toda a existência cristã é, portanto, caracterizada por uma contínua expectativa. Seu cumprimento é certo, mas a hora permanece desconhecida. Uma atitude de alerta vigilante é, portanto, necessária, mesmo que o retorno do senhor possa parecer “retardado” (12,45). A realidade do julgamento, somos levados a entender, não é simplesmente temporal, mas existencial. Deus julga os seres humanos em qualquer momento e ele sabe se eles distribuíram “a porção de alimento no tempo devido”, ou se, por outro lado, se entregaram a espancar os criados.

O papel de administrador corresponde bem ao conceito que Lc tem sobre a autoridade na comunidade. O papel do administrador é o de gerir os outros servos, para que cada um faça o seu trabalho, mas também atender às suas necessidades. É responsável ante o senhor e diante dos seus pares. Não pode ser fiel a um sem respeitar os outros.

Vemos que a autoridade é apresentada na forma de serviço aos outros. Se todos os servos devem estar prontos para receber o senhor em seu retorno e fazer o seu trabalho de forma satisfatória, o administrador é responsável não só pelo seu próprio trabalho, mas também pelo trabalho da comunidade como um todo.

Relacionando com as outras leituras.

A 1ª. Leitura nos ensina que a vigilância da pessoa justa é uma expectativa orante. Porém, expectativa feita também de serviço, o serviço alegre de quem espera o Senhor.

 

 

 

 

18º Domingo do Tempo Comum
Dia: 31 de julho de 2022
Primeira Leitura: Ecle 1,2; 2,21-23
Salmo: 89,3-6.12-14.17
Segunda Leitura: Cl 3,1-5.9-11
Evangelho: Lc 12,13-21

 

O Evangelho

A primeira parte deste capítulo 12 de Lucas é composta por uma série de ensinamentos de Jesus à multidão. No trecho de hoje (Lc 12,13- 21), Jesus é interrompido por alguém da multidão que o desafia, como mestre da Lei, a resolver uma disputa de herança familiar: Mestre, dize a meu irmão que reparta comigo a herança (v. 13). A resposta de Jesus talvez nos pareça desconcertante: Homem, quem me constituiu juiz ou mediador sobre vós? (v.14). Jesus deixa claro que ele não veio para resolver tais questões legais. Jesus rejeita o papel de juiz em disputas familiares sobre herança, mas aproveita para alertar sobre o perigo da ganância.

O v.15 expõe a cobiça por trás do pedido de intervenção jurídica. Jesus adverte contra esse tipo de ganância: E guardai-vos de toda avareza (v.15c). O termo grego pleonexia é normalmente traduzido por “avareza”. Esta tradução é possível, mas não diz tudo. Pleonexia indica o vício de desejar ter mais do que é merecido, a insaciedade da pessoa obcecada por adquirir e acumular dinheiro. Não é à toa que Paulo, em Cl 3,5, qualifica a avareza como idolatria.

Na continuação de sua resposta, Jesus afirma: Porque a vida de alguém não está naquilo que sobra das suas riquezas (v.15d). Jesus estabelece uma distinção fundamental bastante clara entre a vida e as riquezas: a vida é um dom de Deus; nenhuma posse, por mais abundante que seja, pode torná-la maior nem mais segura. Muito mais importante ter, é ser: ser alguém que ouve a Palavra de Deus e age de acordo com ela, é mais importante do que viver em uma abundância desnecessária.

Nos vv.16-21, Jesus conta uma parábola: um homem muito rico, que por sua boa administração se torna ainda mais rico. Mas a inteligência para os negócios não faz deste homem um sábio. Jesus não fala de pecado e não diz que é pecado ser rico. Jesus fala de ser sábio e ser insensato. Para o mundo, é sábio quem tem a capacidade de ganhar dinheiro e enriquecer. Mas Jesus não pensa assim. Aquele homem foi insensato, não porque buscou administrar bem sua riqueza, e sim porque se esqueceu que, diante da morte, a riqueza é inútil. Ele queria desfrutar as riquezas só para esta vida: descansa, come, bebe, regala-te (v.19). Mas não pensou em aproveitá-las para garantir também a outra vida. Em outras palavras, ele acumulou riquezas só para si mesmo (cf. v.21).

Relacionando com as outras leituras

Na mesma linha da parábola do evangelho, o sábio do Antigo Testamento afirma: Há quem trabalhe com sabedoria, ciência e êxito, mas deixará a sua porção a alguém não se esforçou em nada. [...] Sim, todos os seus dias são dores, e sua ocupação é só sofrimento; nem de noite seu coração descansa (Ecl 2,21.23).

Ao contrário de Qohélet, Jesus não fala do homem rico como alguém que sofre e não consegue dormir; em vez disso, conta a história de alguém que conseguiu enriquecer graças a uma superprodução agrícola. Na parábola de Jesus, a dureza nos trabalhos no campo não tem nenhuma relevância. Diferente de Qohélet, Jesus não critica o esforço do dono do campo (latifundiário?) para atingir tal sucesso. O que Jesus condena é a ilusão daquele homem de aproveitar de modo egoísta seu capital e sua riqueza: descansar, comer, beber e festejar. Não obstante, Jesus concorda com Qohélet: nenhum deles será capaz de manter sua riqueza pois, antes ou depois, a morte fará com que ela passe para descendentes ou outra pessoa.

As duras reflexões de Qohélet: a alegria de usufruir dos bens do sucesso e das conquistas não se prolonga além da morte. Nisso, Jesus não discorda de Qohélet: a morte põe fim a todos os projetos. Mas sua conclusão é bem diferente: Assim é aquele que entesoura para si mesmo e não é rico diante de Deus (v. 21). Em outras palavras, Jesus aconselha uma atitude prática e positiva: enriquecer-se aos olhos de Deus.

17º Domingo do Tempo Comum
Dia 24 de Julho de 2022
Primeira Leitura: Gn 18,20-32
Segunda Leitura: Cl 2,12-14
Salmo: 138/137,1-3.6-8
Evangelho: Lc 11,1-13 

O Evangelho

Quando o assunto é oração, nem sempre os cristãos e as cristãs têm clareza do que se trata. Para muitas pessoas oração é algo mágico que se faz para atrair as benesses divinas, ou para espantar os males que ameaçam a vida todos os dias. Assim, muitas pessoas só se lembram de rezar quando têm algum problema, quando necessitam de algo: acendem velas, fazem novenas, procissões, etc. Em muitas comunidades se percebe que tem mais afluência de fiéis nas novenas de quarta-feira, do que nas missas de domingo. É que nas quartas-feiras se faz novenas para pedir graças especiais. Nos domingos se celebra a fé comprometida, o que para muitas pessoas, não interessa.

Lc 11,1 nos diz que antes de ensinar a rezar, o próprio Jesus rezou. Por que ele precisava rezar, se podia fazer milagres? A oração não é mágica. Ele rezava para estar em comunhão com o Pai e conhecer sua vontade. Aliás, os evangelhos atestam que Jesus rezou muitas vezes (Mt 14,23; 26,39; Lc 6,12, etc.).

Jesus ensina que o orante chame a Deus de Pai (Lc 11,2b), o que requer uma atitude de filho por parte do orante. Trata-se de um novo relacionamento com Deus, diferente daquele do AT, onde ele é visto apenas como amigo de Abraão e de outros personagens, outras vezes, até como o terrível Javé (Ex 19,12). Santificar o nome do Pai é assumir um compromisso: empenhar-se pela justiça e fraternidade. O reino vem quando os cristãos se abrem ao projeto de Jesus, isto é, vida para todos. Pedir o pão é mais do que esperar recebê-lo pronto de Deus, mas partilhá-lo (cfr. At 2,42ss; 4,32ss), para que haja pão para todos. O perdão, mais do que apenas ofensas, envolve o bolso, pois Lc 11,4 diz: “perdoa-nos nossos  hamartias (pecados), pois nós também perdoamos a todo o que nos ofeilonti (deve). Não cair na tentação é não se desviar do projeto do Reino (Lc 4,1-13). Como se vê, oração, mais do que pedir coisas, é comprometer-se com a proposta do reino.

A insistência na oração (vizinho impertinente) não é para mudar Deus, mas é para mudar o coração do orante. Se a oração não for constante, o discípulo não sintoniza com Deus, pois isto leva tempo e só acontece com quem se dirige a Deus com insistência e perseverança. Deus é melhor que todos os pais deste mundo, que dão coisas boas a seus filhos. Ele sempre dá o Espírito para sintonizar com Jesus e com o reino por ele instaurado.

Relacionando com as outras leituras

Gn 18,20-32: O texto quase parece uma anedota. Deus aqui é apresentado de forma humana: ele precisa descer para verificar a maldade dos moradores de Sodoma, como também na Torre de Babel (Gn 11,5). Além do mais, ele muda de opinião diante da insistência de Abraão, que é impertinente. Ele dialoga com Deus, mas de forma pouco comum entre amigos. Mas, note-se bem, é uma oração a favor de uma cidade. Não é uma oração decorada e repetida de maneira mecânica, mas é espontânea. Ele não pede nada para si, mas intercede pela comunidade. Está aqui uma imagem de oração persistente e a de um Deus que se deixa demover de seu intento, pela oração do patriarca.

Cl 2,12-14: na cruz de Jesus aconteceu a superação da situação pecadora. Os batizados receberam vida nova nele. Ninguém foi justificado por méritos próprios, mas tão somente pelo sacrifício de Cristo. Logo, a oração deve nos manter sintonizados com esta vida nova oriunda de Cristo.

A mensagem que a liturgia de hoje nos deixa é que, somos agraciados por Deus em Jesus Cristo, não porque nós merecemos algo, mas porque Deus em seu infinito amor assim o fez por seu filho. A nós, cabe, agora, por meio da oração constante, sintonizar com esta graça. Assim, a oração, mais do que pedir benesses, ou nos livrar das dificuldades da vida, deve ser uma constante sintonia e compromisso com o Reino de Deus que Jesus trouxe na história para culminar na eternidade. Quem reza de verdade, experimenta a antessala do céu, ou seja, já saboreia aqui na terra, de forma limitada, o que se vive no céu. Por isto, toda oração deve ser um espaço de alegria e de gozo.

 

16º Domingo do Tempo Comum
Dia 17 de Julho de 2022
Primeira Leitura: Gn 18,1-10a
Salmo: 15/14 ,2-3a.3cd-4ab.5
Segunda Leitura: Cl 1,24-28
Evangelho: Lc 10,38-42

 

O contexto deste Evangelho

O texto deste Domingo é exclusivo do Evangelho de Lucas. Ele aborda a tradição sobre Marta, Maria. João – posterior a Lucas – também trata o tema e acrescenta a referência a Lázaro (irmão de Marta e Maria, cf. Jo 11,1.19). Jesus entra em “um povoado/aldeia” (kómen) onde morava uma mulher chamada Marta que “lhe tinha sido apresentada” ou que “tinha uma casa” (conforme alguns manuscritos). Tudo indica que se trate de uma “igreja doméstica” onde as mulheres tinham um papel importante de liderança. Lucas resgata a Igreja da casa de Lídia (At 16,15), de Maria, mãe de João (At 12,12) e possivelmente de “Tabita/Dorcas” (At 9,36).

O texto e sua discussão

Sempre devemos considerar na obra de Lucas a preocupação didática na descrição de um conflito “intracomunitário”. O fato de ser uma discussão envolvendo duas mulheres tem a ver com o papel que era e ainda é atribuído à mulher na Igreja. A mulher é facilmente vista como serva, administradora, coordenadora, mas dificilmente é valorizada como teóloga.

v.38 – “Certa mulher de nome Marta o hospedou na sua casa”. Há versões que mencionam “na sua casa” e outras não. Embora hoje todas as versões incluam isso, mostra que houve, em algum momento, a dificuldade de atribuir, no contexto judaico, a chefia de uma casa (família/igreja doméstica) a uma mulher.

v. 39 – “uma irmã chamada Maria, assentada aos pés do Senhor, ouvia suas palavras”. Enquanto Marta tem um “nome” (onómati), Maria é apenas “chamada” assim (kaloumén). Isto indica que seria uma “irmã menor”, com menos “hierarquia na casa”. A palavra “assentada” (paraketesteisa) só aparece neste texto em toda Bíblia. Em grego, a palavra para significa “sentar-se abaixo” ou como geralmente é traduzido, “sentar-se aos pés”. Maria está ouvindo suas palavras (logon autou). Uma atitude de aprendizado, de extrema atenção e reconhecimento.

v.40 – “Marta”, seguindo o sentido literal grego, ficava “andava em volta”, fazendo muito “serviço” (diakonian). “Diaconia” é o serviço para o bem comum. Será que se refere a uma situação injusta em que uma “serve” à comunidade e outra apenas “disfruta” do aprendizado de Jesus? Ou se discute a primazia do serviço (diaconia) sobre o sentido da missão e pastoral (teologia)? Ou se discute, diante do Senhor, o papel das mulheres na “igreja”, onde além de servir e coordenar, podem teologar?

v.41 – “Marta, Marta, estas preocupada/ansiosa (merimnas) e atrapalhada/confusa (torubaxe) na volta de tudo”. Aqui se remete a Lc 12.22-26 “não se preocupem por si mesmo, ou pela comida (…) se nada podem fazer em relação a estas coisas, por que se preocupam pelas outras?”  (cf. Mt 6,25-34.19-21). Assim devemos entender a “crítica” a Marta como uma crítica ao “senso-comum” que diz que as necessidades primárias são mais importantes que o sentido da vida como um todo.

v.42 – “Maria escolheu a melhor parte e não lhe será retirada”. Assim se conclui que o papel da mulher “na igreja doméstica” é preferencialmente teológico! A mulher que escolheu ser teóloga, escolheu a melhor parte e ninguém poderia negar isso a ela.

O texto reafirma ambas atribuições das mulheres na igreja doméstica: chefiar a casa/igreja no sentido diaconal, e refletir teologicamente a partir do Evangelho de Jesus. No entanto, a segunda que podia ser “retirada” pelo poder patriarcal é preservada e reafirmada.

Relacionando com as outras leituras

O “senso-comum”, combatido no texto de Lucas, está presente na narrativa de Sara e Abraão. Sara “serve”, prepara a comida; Abraão fala com Deus. No entanto, como poderia isso acontecer sem Sara? De fato, as três pessoas divinas perguntam: “Onde está Sara, a tua mulher?” (Gn 18,9a). Da mesma forma devemos interpretar a “Igreja Corpo de Cristo” e toda pessoa a quem é confiado o ministério dela, como sendo igualmente mulher e homem, em igual dignidade e importância.

 

15º Domingo do Tempo Comum
Dia: 10 de julho de 2022
Primeira Leitura: Dt 30,10-14
Salmo: 69/68,14.17.30-31.33-34.36ab.37
Segunda Leitura: Cl 1,15-20
Evangelho: Lc 10,25-37

 

O amor de Deus que se traduz no amor ao próximo (v. 25-37) é condição essencial para herdar a vida eterna. Esta seção lucana representa uma pequena catequese centrada no duplo mandamento do amor, que constitui o coração do ensino de Jesus. À controvérsia com um doutor da Lei (v.25-28), Lc faz seguir como exemplo a parábola do bom samaritano (v.29-37). O verbo poieó “fazer” (v.25,28,37bis) é um termo chave que confere unidade literária à composição, centrada na prática cristã.

Lc faz uso deste diálogo entre Jesus e um doutor da Lei para apresentar a parábola do samaritano. Em Mt (22,34-40) e Mc (12,28- 34) o episódio é relatado no final da vida de Jesus.

v.25. “Levantou-se um doutor da Lei e, para testá-lo, perguntou…”. No relato de Mc, o escriba parece bem-intencionado, pede esclarecimentos sobre um problema profundamente sentido no judaísmo, dado o exorbitante número de mandamentos classificados pelos rabinos: eram 613. Em Mt e Lc o doutor da Lei faz a pergunta com uma intenção capciosa para com Jesus, (ekpeirazó) “para colocá-lo à prova”. O diálogo didático de Mc se transforma em Mt e Lc em uma polêmica, denotando a tensão entre a igreja e a sinagoga. No entanto, o episódio demonstra a concordância entre o ensino de Jesus e as Escrituras. Em Lc, a questão do escriba não é tanto sobre o conhecimento do mandamento mais importante, mas sim o procedimento a ser seguido a fim de obter a vida eterna: um problema de casuística farisaica é transferido para o nível da vida concreta dos seguidores de Jesus.

v.27. O escriba menciona o início do Shemá (Dt 6,5), que todo israelita piedoso recitava de manhã e à noite; então segue imediatamente o mandamento de amar o próximo, embora derivado de outro texto (Lv 19,18). Os dois preceitos, combinados em uma única frase, resultam mais intimamente ligados. Para Lc eles são inseparáveis, porque a verdadeira religiosidade deve se materializar nas relações interpessoais da vida diária. Não é relevante para o evangelista se foi Jesus quem os associou, porque ao contrário de Mt e Mc, ele apresenta a resposta na boca do doutor da Lei.

v.28. “Respondeste bem. Faze isso e viverás”. Jesus aprova a resposta do escriba: não basta teoria, é preciso prática. O acento recai sobre “fazer”, que será repetido na conclusão da parábola de bom samaritano (v.37), formando uma inclusão.

A parábola está ligada ao mandamento do amor ao próximo. Não era fácil estabelecer no ambiente judaico quem deveria ser considerado “próximo”: certamente cada membro de Israel o era, mas também o estrangeiro que vivia entre os judeus (Lv 19,34), mais tarde também o prosélito pagão. O âmbito do preceito constituía um problema controverso nas escolas rabínicas. Em nenhum caso um judeu devia se preocupar em salvar um samaritano.

Jesus, ao invés de insistir em questões teóricas, prefere dar um exemplo concreto, para ilustrar em que consiste o verdadeiro amor ao próximo. O conto é um exemplo parabólico, que constitui uma verdadeira joia do evangelho e tem inspirado muitas pessoas a fazerem o máximo pelos necessitados, acima de qualquer discriminação.

v.30. O cenário da narrativa tem um alto grau de verossimilhança, o suficiente para dar a impressão de que Jesus se refere a um fato que realmente aconteceu. Quem vai para a Cidade santa “sobe”, quem volta de lá “desce”. A estrada de Jerusalém (cerca de 750m acima do nível do mar) desce para Jericó (300m sob o nível do mar Mediterrâneo), tinha 27 km de extensão e cruzava a área desértica da Judeia com uma série de serpentinas entre ravinas e barrancos íngremes: um lugar ideal não só para rebeldes políticos, mas também para malfeitores, saqueadores, que atacavam os viajantes, despojando-os de tudo e espancando-os descontroladamente.

v.31-32. Em Jericó viviam muitos sacerdotes e levitas e iam a Jerusalém todos os anos para sua semana de turno no serviço litúrgico. Talvez Jesus especialmente escolha um sacerdote e um levita, homens religiosos, ao contrário de um samaritano, que era odiado e desprezado porque considerado herege. O amor não precisa conhecer barreiras raciais ou mesmo religiosas. Segundo outros comentadores, a escolha é motivada pela condenação de um ritualismo vazio e inútil, porque desprovido de amor. Para não se contaminar, era preciso evitar o contato com cadáveres ou “homem meio morto” (cf. Lv 21,1). Os dois, entre o amor ao próximo e pureza legal para o serviço do culto, não hesitam. Por isso, não se aproximam do homem ferido.

v.33-35. O samaritano se aproxima do infeliz, independentemente da nacionalidade a que pertença; provavelmente era um judeu, porque vinha de Jerusalém. É conhecido o ódio antigo que dividiu os samaritanos dos judeus, que os consideravam da mesma maneira que os pagãos. O bom samaritano não se importa com rancores nacionalistas ou desacordos religiosos, mas ele teve compaixão (esplanchnisthē, um verbo que na Bíblia indica frequentemente a compaixão de Deus) do homem ferido e que precisa de ajuda. Ele faz o possível por ele, trata de suas feridas, cuida dele e o transporta para uma hospedaria. Ele oferece ao hoteleiro duas moedas de prata, o que correspondia aproximadamente a dois dias de trabalho. O sentimento de compaixão prevaleceu sobre o preconceito, fazendo triunfar o amor. Nos personagens opostos, a preocupação com a pureza ritual extinguiu a caridade nos corações de dois homens que deviam encarnar o mandamento do amor de Deus.

v.36. “Na tua opinião, quem destes três se tornou próximo?…”. Jesus não responde à pergunta do seu interlocutor, sobre quem deve ser considerado próximo, mas pergunta a ele qual dos três se comportou como um próximo para o infeliz viajante. Ele elude as sutis discussões rabínicas sobre quem é o próximo, nem mesmo teoricamente afirma que o próximo é toda pessoa necessitada de ajuda, mas responde com um exemplo prático, para mostrar como é preciso se comportar para se tornar verdadeiramente próximo, ou seja, cumprir o mandamento do amor. Jesus não está interessado na definição exata de “próximo”, mas sim a prática do amor relacionada a quem precisa de ajuda, independentemente de qualquer distinção cultural, racial, social, religiosa.

v.37. Quem ouviu a palavra deve passar para a ação: “Vai e faze tu o mesmo”. O centro doutrinal do discurso da planície, expresso no mandamento de amor, vertia sobre a imitação da misericórdia do Pai celestial. Com o exemplo do bom samaritano Jesus ensina como o preceito do amor deve ser traduzido na vida cotidiana. Só quem escuta suas palavras e “as faz” constrói a casa espiritual na rocha.

A liturgia ao associar a 1ª. Leitura ao Evangelho, põe em situação de proximidade a palavra de Deus e o amor fraterno.

 

Solenidade de São Pedro e São Paulo
Dia: 03 de julho de 2022
Primeira Leitura: At 12,1-11
Salmo: 34/33,2-9
Segunda Leitura: 2Tm 4,6-8.17-18
Evangelho: Mt 16,13-19

 

O trecho do evangelho de hoje apresenta o famoso diálogo em que Jesus constitui e confirma a Pedro como princípio de união da comunidade dos discípulos. Após questionar os discípulos sobre o que o povo diz a seu respeito, Jesus pergunta o que os próprios discípulos pensam. Em nome de todos os discípulos, Pedro responde: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo (v. 16). Em outras palavras, Pedro proclama sua fé: “Tu és o Filho do Deus da vida. Tu és aquele que vai nos ensinar o caminho para a vida”. As palavras e as ações de Jesus demonstram não só que ele é poderoso, o Filho de Deus, mas também que o poder de Jesus está direcionado para a vida e não para a morte.

Quem descobre e professa que esta é a verdadeira identidade de Jesus não pode mais ficar sem se comprometer com ele. É uma descoberta que chama ao discipulado e à missão. Não basta ser discípula/o, é necessário também ser missionária/o. Não basta descobrir para si mesmo que Deus é bom e que Jesus é a salvação encarnada. É necessário também dar um passo a mais e participar do projeto de Jesus.

Em reação à profissão de fé de Pedro, Jesus lhe diz: Tu és Pedro (Kefa’) e sobre esta rocha (kefa’) edificarei a minha Igreja, e as portas da mansão dos mortos não prevalecerão sobre ela (v. 18). A afirmação de Jesus confirma Pedro em uma missão. Mas o que torna Pedro capaz de cumprir tal tarefa não são as palavras de Jesus, mas as palavras do próprio Pedro, isto é, aquela mesma fé que ele acaba de professar. É como se Jesus dissesse: “Muito bem, Pedro. Você concluiu que eu sou o Cristo, e agora você pode ser ‘pedra’ para eu edificar minha Igreja”.

Em hebraico e aramaico, “rocha/pedra” se diz kefa’. Este termo significa uma gruta natural ou escavada nos rochedos, algo muito comum na Palestina. Estas grutas sempre serviram para abrigo de pastores e viajantes, peregrinos surpreendidos pela noite ou pela chuva encontravam nelas um local seguro de espera e pernoite. Elas eram igualmente usadas pelos pobres sem casa e sem teto e perseguidos em tempos de guerra; em algumas regiões, eram a moradia regular de famílias e grupos. Este uso é citado algumas vezes no Antigo Testamento. Apenas dois exemplos: toda a cidade fugiu: foram para os bosques ou subiram para as grutas (Jr 4,29); para habitar nos barrancos dos vales e nas cavernas da terra e das rochas (Jó 30,6). Estas rochas também eram usadas como sepultura.

Estas informações sobre a palavra kefa’ ajudam a repensar a teologia sobre a Igreja e sobre o papa, não só porque Jesus dá a Simão o apelido de kefa’, mas também porque a própria história de Jesus é marcada pela imagem da gruta. Jesus nasceu numa kefa’ e foi sepultado em outra kefa’. Ambas lhe foram emprestadas: a primeira por pastores; a segunda por José de Arimateia. É o destino do pobre: não tem onde nascer, nem onde cair morto! É para isso que ainda hoje servem as grutas da Palestina e do Oriente Médio.

Portanto, o kefa’ de Mateus não é uma rocha maciça, onde se constrói por cima um edifício. O kefa’ a que o evangelista se refere é uma gruta protetora, que cobre, protege e defende. Esta deve ser a vida e a missão da Igreja.

Em nossa casa, em nossa comunidade, em nossa sociedade, em todos os ambientes e situações que vivemos: é a coerência com nossa fé que nos faz “grutas/ kefa’” que servem de abrigo para Jesus trazer a salvação e o Reino de seu Pai, o Deus da vida.

No versículo que conclui a leitura de hoje – Eu te darei as chaves do Reino dos Céus (v. 19a) –, a imagem da porta e das chaves nos faz pensar nos grandes portões das antigas cidades. Por eles, saíam os exércitos para a guerra. Por eles, entrava o povo para encontrar proteção e abrigo em momentos de perigo e medo. Pedro tem as chaves: é ele quem vai encabeçar os que querem continuar a missão de Jesus, os que querem lutar para defender os que Deus ama, socorrer e acolher os que sofrem.

E Jesus continua: o que porventura ligares na terra estará ligado nos céus, e o que porventura desligares na terra estará desligado nos céus” (v. 19b). A imagem de “ligar” e “desligar” pode ser compreendida no sentido de reconhecer que alguém está em comunhão com Deus ou, ao contrário, que alguém se afastou dele. Como discípulas/os e missionárias/os, todas/os nós somos chamadas/os a ter a mesma fé de Pedro e a nos empenharmos para que a morte não vença a vida, para que as forças do inferno não esmaguem e sufoquem as forças da vida.

 

 

13º Domingo do Tempo Comum
Dia 26 de Junho de 2022
Primeira Leitura: 1Rs 19,16b.19-21
Salmo: 16/15,1-2a.5.7-8.9-10.11
Segunda Leitura: Gl 5,1.13-18
Evangelho: Lc 9,51-62

 

O Evangelho

A liturgia deste domingo reflete a radicalidade que se exige dos discípulos em vista do Reino. Em Lc 9,51 começa a subida para Jerusalém, onde se realizará a condenação e morte de Jesus. Por isto mesmo, quem quer ser discípulo do mestre, não pode titubear: ou assume todos os riscos da cruz, ou nada feito. Entre os seguidores não tem lugar para pessoas indecisas, ou que ainda tenham outros interesses a defender. Alguns estudiosos creem que este radicalismo era próprio de seguidores forasteiros que, como os apóstolos, abandonaram tudo, mas que nem todos os discípulos praticavam tudo isto. Havia muitos discípulos e discípulas que mantinham suas casas, suas famílias e, mesmo alguns bens. Percebe-se isto no relato de Ananias e Safira, quando Pedro lhe diz que ele poderia ter guardado seu patrimônio (At 5,4).

Em Lc 9,51 inicia a caminhada para Jerusalém. Esta jornada culmina em Lc 19,28 quando se inicia o conflito que o leva à cruz. Mais do que pensar num caminho geográfico, deve-se ver na narrativa um percurso teológico. Jesus vai resolutamente ao encontro da cruz (Lc 9,51b), por isto, quem o seguir, deve abrir os olhos. Agora se desenha a radicalidade da opção por Cristo, ou contra ele. Com isto Lucas indica que os discípulos devem ter a mesma firmeza do mestre, ou então, não podem ser discípulos. Quem tem outros interesses não segue um mestre que vai ao encontro da cruz.

No texto de hoje pode-se colher três lições fundamentais para quem quer seguir Jesus: 1) a questão com os samaritanos: havia velhas rixas entre judeus e samaritanos (2Rs 17). Jesus pede hospedagem na Samaria, o que um bom galileu não faria, pois os samaritanos eram considerados impuros. Ele não alimenta o preconceito racial. Diante da negativa dos samaritanos, proíbe a vingança desejada por Tiago e João. Nada de racismo, nem violência ou vingança; 2) a questão do teto: ninguém que queira seguir Jesus deve esperar mordomias. “O Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”. Logo, seguir Jesus requer assumir todas as consequências; 3) romper com o passado: enterrar os pais e despedir-se da casa. O verdadeiro seguidor de Jesus não deve ter outras preocupações, a não ser o Reino. Esta também era uma ética de andarilhos. Os discípulos comuns, permaneciam em seus lares, cuidavam dos pais, enterravam seus mortos. Portanto, o texto reflete a radicalidade de certos grupos que, literalmente abandonaram tudo, como mais tarde fez São Francisco, Santa Clara e tantos mais.

Quem, como Eliseu (1ªleitura) estiver com a mão no arado, não pode olhar para trás. Este sacrificou seu passado: bois e arado. E começou vida nova. Quem segue Jesus deve sacrificar o passado, isto é, seu mundo pessoal, seus próprios interesses e assumir a proposta do mestre que passa pela cruz. Os cristãos precisam colocar os interesses do Reino acima de todas as demais preocupações.

Relacionando com as outras leituras

1Rs 19,16b.19-21: nos tempos do Rei Acab (874-853 a.C.) o Reino do Norte (Israel) mergulhou na idolatria. O profeta Elias tem a árdua missão de chamar o povo de volta para o culto a Javé (1Rs 18,1ss). Porém, o profeta tem seu tempo. Ele não fica sempre. Por isto, ele precisa achar um continuador, pois sua missão continua. No gesto de Eliseu se percebe a disposição de responder de forma radical ao chamado. Ele rompe com seu passado: beija os pais e imola os bois. Pode-se dizer que o profeta mudou seu foco: seus interesses até então, isto é, sua família e sua roça onde lavrava, ficaram para trás. Agora, ele se põe a profetizar. Só quem deixa seu mundo é digno de viver uma verdadeira vocação.

Gl 5,1.13-18: quem optou por Cristo é livre, pois nele a velha lei caducou (Ef 2,15). Isto, no entanto, nunca deve ser entendido como liberdade para fazer o mal, ou libertinagem. Quem é de Cristo, faz as obras do espírito, e não as da carne. Em outras palavras, evita o mal e faz somente o bem. Relativiza tudo, como os andarilhos do evangelho e como o profeta Eliseu e vive somente para o Reino.

 

 

12º Dom. Tempo Comum
Dia 19 de Junho de 2022
Primeira Leitura: Zc 12,10-13,1
Segunda Leitura: Gl 3,26-29
Salmo: 63/62,2-6.8-9
Evangelho: Lc 9,18-24

 

O Evangelho

No Evangelho segundo Lucas, o autor diz que pretende apresentar: “uma narrativa organizada” (Lc 1,1a). Por causa disso, mesmo nos trechos já narrados nos outros “sinóticos”, o faz de forma mais compreensível paras as pessoas de matriz não-judaica. O Evangelho deste Domingo tem paralelos em Mc 8,27-31 e Mt 16,13-21. Isto não significa que Lucas leu e propositalmente modificou a narrativa, mas pode ter acessado boa parte deste material de forma indireta, a partir do uso nas comunidades, em especial a de Antioquia (cf. At 11,26).

O momento da pergunta: “Quem as multidões dizem que eu sou?”

Enquanto Mc e Mt colocam esta pergunta no caminho, Lc o faz na “oração” – “enquanto Jesus estava aparte/em particular, orando”. A pergunta emerge de um diálogo “intra-trinitário”. Algumas traduções dizem que Jesus orava “sozinho”, mas o próprio texto diz que, bem próximos dele, estavam os discípulos, o que o torna um momento “intra-comunitário”. Jesus vive sua relação pessoal com Deus no meio da comunidade do discipulado. É deste contexto que emerge a pergunta.

A dialética das perguntas: “Quem as multidões/vocês dizem que eu sou?” (v.18b e 20b).

A palavra grega para “multidão” é óxloi (multidões, massa de gente) se refere ao que hoje chamaríamos de “população de massa”, e o que as “massas” pensam ou dizem é frequentemente aquilo que se entende como “senso-comum”, isto é, “possíveis verdades” aceitas pelo conjunto da população. A pergunta a “vocês” (umeis), isto é, à comunidade do discipulado, mostra a diferença substancial entre o “senso-comum” e “senso-comunitário”. Não pergunta sobre o que “pensam”, mas, o que “comunicam” ou “dizem” para outras pessoas.

Quem que eu sou?

O “que” indica uma função social e não apenas identidade pessoal. No entanto, as respostas do “senso-comum” não conseguem distinguir entre uma coisa da outra. João Batista ou Elias (Mateus mencionará Jeremias), confundem a identidade pessoal com a função social. O senso-comum fala de algum profeta “ressuscitado”(para evitar a ideia de “reencarnação”; cf. Lc 9,19b; Mc 8,28b e Mt 16,14b). O “senso-comum” aponta para o passado. Pedro, então, representa o grupo que, sinodalmente ou comunitariamente, afirma, na versão de Lucas: “O Cristo de Deus” (Tón Xriston tou Teou). Lucas apresenta uma comunicação direta, clara, do “princípio messiânico”, mais completa que a de Marcos que não menciona Deus (“Tu és o Cristo”) e mais simples que a de Mateus (“Tu és o Cristo o Filho de Deus Vivo”). Lucas, comunica o sentido sócio-político-teológico de Jesus numa fórmula com duas partes “Cristo” (aquele ungido por Deus para levar adiante o projeto de libertação, vide Lc 4,18-19) e de “Deus” (a presença transcendental que une tudo em todos).

A advertência: quando e como comunicar?

Lucas segue a mesma linha de completar Marcos e simplificar Mateus. Marcos, e coloca a advertência, indo além do “que não dissessem isso a ninguém” (Mc 8,30), e não entrando nos meandros de Mateus que estabelece a liderança de Pedro sobre a “Igreja” (Mt 16,18-19). A preocupação de Lucas é dar a base material para afirmar que Jesus é o Cristo de Deus. Esta base é a Cruz e Ressurreição. A Cruz, em toda sua crueldade repressora, assassina, violenta, como instrumento de pessoas que agem em nome do mesmo Deus (anciãos, sacerdotes, escribas) e Ressurreição como vitória sobre tudo isso. É sobre esta base que o senso-comum pode virar senso-comunitário, ou senso-sinodal. Sobre esta base não se volta ao passado, mas é possibilitada a construção de um novo presente e de um futuro para as pessoas antes excluídas (cf. Lc 9,22b).

Relacionando com as outras leituras

A profecia de Zacarias supera o senso-comum através da figura do “transpassado”, e lamento do povo (Zc 12,10) que, longe de ser motivo de desânimo, ao igual que no Evangelho, é memória e desafio, que gera uma identidade popular capaz de resistir à violência. Já em Gálatas se supera o senso-comum que separa e exclui, e não iguala e inclui as pessoas em toda sua diversidade.

 

Santíssima Trindade
Dia: 12 de junho de 2022
Primeira Leitura: Pr 8,22-31
Salmo: 8,4-9
Segunda Leitura: Rm 5,1-5
Evangelho: Jo 16,12-15

 

O Evangelho

Os versículos do evangelho de hoje exprimem a consciência da comunidade joanina: o conteúdo do evangelho, que é fruto da ação do Espírito Santo, é “toda a verdade”. Vem esclarecido o papel do Espírito como um guia para assimilação plena da verdade, revelada por Jesus.

v. 12: “Muitas coisas ainda tenho para dizer-vos, mas não as podeis compreender agora”. Este é um v. de transição. Na passagem seguinte, o Espírito é apresentado em sua função de guiar os discípulos e discípulas. O ensino de Jesus durante o ministério público permaneceu, por vezes, obscuro e enigmático devido à incapacidade dos/as discípulos/as em apreender o sentido profundo da sua revelação, ligada à identidade humano/divina da sua pessoa. O Espírito, como mediador da revelação completa e definitiva, após a elevação de Jesus ao céu, revelou o mistério e o significado de sua missão.

v.13: “Quando vier o Espírito da verdade, ele os guiará em toda a verdade”. Vem aqui enunciada a função específica do “Espírito da verdade”, que consiste em fazer os/as discípulos/as assimilarem a revelação de Jesus e habilitá-los para sua missão. No Antigo Testamento, YHWH foi descrito como um pastor e guia do povo de Israel no Êxodo do Egito; Jesus se proclamou o bom pastor que conduz (agó) suas ovelhas (10,16); agora é o Espírito da verdade que é apresentado como o guia (hodégeó) dos/as discípulos/as à plena verdade. O Espírito não se encarrega de anunciar coisas novas, isto é, integrar ou expandir o conteúdo da verdade, mas reanunciá-la. Trata-se da compreensão mais plena das palavras reveladoras de Jesus, nas quais os eventos pascais estão incluídos.

A verdade (alētheia), à qual o Paráclito conduz os discípulos e discípulas ou na qual ele os guia, não pode ser entendida senão como é compreendida no resto do Evangelho segundo João: é a prometida revelação da vida, que Jesus Cristo trouxe. Não deve ser limitada à ação moral, mas nem mesmo interpretada em um sentido gnóstico. Se trata da penetração profunda no conteúdo da revelação e também de sua aplicação ao comportamento da comunidade em meio ao mundo.

O Espírito “não falará de si mesmo”, afirma Jesus, “mas do que ouvir, e vos anunciará as coisas futuras” (v.13b). O ensinamento do Espírito virá da própria revelação de Jesus ele ouvirá (akousei) e anunciará (anangelei) as coisas que virão, ou seja, fará com que as pessoas entendam os acontecimentos relativos ao drama da cruz e à glorificação de Jesus à direita do Pai. O anúncio das coisas futuras consiste em interpretar em relação a cada geração futura o significado contemporâneo daquilo que Jesus disse e fez. Assim como Jesus possui o escopo de conduzir os seres humanos ao Pai, o Espírito irá iluminá-los e guiá-los para Jesus.

v.14-15 “Ele me glorificará, porque receberá do que é meu e vos anunciará”. Jesus teve a missão de glorificar o Pai, anunciando e implementando seu plano de salvação; assim, o Espírito Santo irá “glorificar” Jesus, manifestando a sua grandeza ao lado do Pai. Jesus foi o revelador e o guia para com o Pai (1,18) por sua união íntima com ele. Assim o Espírito guiará os que creem a Jesus, porque está intimamente unido a ele, e anunciará o que recebeu dele. Dada a perfeita reciprocidade subsistente entre as Pessoas divinas pela comunhão total de vida, o Pai comunica ao Filho “tudo o que ele tem” (v.15) e o Filho compartilha ao Espírito, que o transmitirá em plenitude aos discípulos e discípulas de Jesus.

Relacionando com as outras leituras

A vida nova em Cristo que doa paz e esperança (2ª. Leitura) é expressão do Verbo encarnado e espírito de sabedoria prenunciado no hino de Pr 8 (1ª. Leitura).

Toda a Igreja, através do Paráclito, está ligada à revelação de Jesus Cristo, e também orientada em seu aprofundamento mediante as situações históricas requerem posicionamentos e decisões novas. Graças à ajuda do Paráclito, a verdade do evangelho está disponível aos discípulos e discípulas de Jesus e sua mensagem se torna sempre uma nova força. No e pelo Espírito a Igreja conhece o que foi dito, dado e prometido por Jesus. Por mais que seja difícil descobrir a verdade, vale aquilo dito em 1Jo 3,24: “Pelo Espírito que nos deu, sabemos que ele permanece em nós”.

 

Domingo de Pentecostes

Dia: 05 de 06 de 2022

Primeira Leitura: At 2,1-11

Salmo: 103, 1ab e 24ac.29bc-30.31.34

Segunda Leitura: 1Cor 12, 3b-7.12-13 ou Rm 8,8-17

Evangelho: Jo 20,19-23

 

O Evangelho

O evangelho deste domingo se encontra nos relatos pascais do capítulo 20 de João. Segundo Jo 20,19-23, Jesus dá o Espírito Santo no mesmo domingo da ressurreição.

Literalmente, o v.19 diz: quando já tinha anoitecido, desse mesmo dia, o primeiro da semana, pondo-se no meio deles. A referência ao horário – quando já tinha anoitecido – é uma referência a Ex 12,42: “Aquela foi a noite durante a qual o Senhor velou para os fazer sair do Egito”. A ênfase ao primeiro dia da semana indica que a ressurreição de Jesus é uma nova criação. O ressuscitado cumpre o que fora prometido em 14,18: não vos deixarei desamparados. Há de se notar que Jesus caminha desde a porta: ele simplesmente aparece no meio. Não é tanto uma presença física, e sim espiritual: Jesus está presente quando a comunidade está reunida.

O Senhor Ressuscitado vem para ficar com os seus e trazer-lhe a paz: “Paz a vós!” (v. 19). É esta saudação que provoca o reconhecimento: Jesus está presente no meio deles (14,27-28) e sua vitória (16,33) elimina o medo e a incerteza citados no início do texto hoje lido.

No v. 20, Jesus mostra “as mãos e o lado”, isto é, os ferimentos. Deste modo, os discípulos podem comprovar que o ressuscitado é o mesmo que fora crucificado. Os sinais da cruz permanecem: isso indica que o amor que levou Jesus à cruz também permanece. A mesma missão de Jesus agora é dos discípulos: como o Pai me enviou também eu vos envio (v. 21). E eles devem cumpri-la do mesmo modo como Jesus a cumpriu, com o amor até o fim, isto é, até as últimas consequências.

O v. 22 – Soprou sobre eles… recebam o Espírito Santo –, o verbo usado pelo evangelista é o mesmo de Gn 2,7, quando Deus criou o homem. Lembremo-nos: a ressurreição de Jesus é uma nova criação. Por isso, ao contrário do Jesus de Lucas, que faz o Espírito esperar cinquenta dias até Pentecostes, o Jesus do Quarto Evangelho sopra o Espírito no mesmo dia da ressurreição: não pode haver criação sem o Espírito de Deus (Gn 1,2; 2,7).

O arremate do v. 23 – aqueles a quem perdoardes, serão perdoados… – leva a perguntar: A quem Jesus dá essa missão? Alguns afirmam que se trata dos apóstolos (e seus sucessores): um grupo reduzido e privilegiado. Mas devemos notar que o Quarto Evangelho fala de “discípulos”, sem especificar o grupo dos Doze. Em todo caso, a missão de perdoar, isto é, de transmitir a todos a misericórdia de Deus, é agora estendido à comunidade cristã. Somos, portanto, a comunidade da salvação, que denuncia e se opõe ao pecado. No Quarto Evangelho, pecar equivale a negar a Luz e, portanto, não aderir à verdade e ao amor.

Um acontecimento, duas versões diferentes

Na liturgia da Igreja, a manifestação do Espírito Santo é comemorada não no mesmo dia da Ressurreição, mas na Solenidade de Pentecostes. Nisso, o calendário cristão segue o relato de Lucas, que relata a vinda o Espírito Santo cinquenta dias depois da ressurreição. Tradicionalmente, tal opção lucana é interpretada à luz do calendário judaico: Páscoa e Pentecostes são festas agrárias, ligadas, respectivamente, à semeadura e à colheita dos primeiros frutos. Ao escolher Pentecostes como o dia da manifestação do Espírito, Lucas quer que leitor compreenda que o Espírito Santo é o primeiro fruto que a comunidade colhe da ressurreição do Senhor.

Logo se vê que a opção teológica de João é bem outra. Para ele, a Ressurreição de Jesus é uma nova criação e, por isso, na tarde do primeiro dia da semana, é necessário que o Espírito venha e fecunde a comunidade, que está vazia e sem esperança.

Esta diferença de teologias nos faz compreender que cada evangelista responde às necessidades de sua comunidade, mas o Espírito é o mesmo, com seus muitos dons de vida, força e luz.

 

 

 

 

Domingo do Ascensão
Dia 29 de maio de 2022
Primeira Leitura: At 1,1-11
Segunda Leitura: Ef 1,17-23
Salmo: 47/46,2-3.6-9
Evangelho: Lc 24,46-53

 

O Evangelho

Para maior clareza seria oportuno ler o texto mais amplo, isto é, Lc 24,36-53, depois comparar com At 1,1-11 e anotar todas as diferenças: o local, o gesto de Jesus e o tempo não conferem, embora os dois textos sejam do mesmo autor: Lucas. Por que ele modificou o relato? Nem At 1,1-11, nem Lc 24,36-53 são crônicas históricas, mas teológicas. O que é a ascensão? Qual seu sentido teológico?

A ascensão é a culminância de toda missão de Jesus. Agora tudo está consumado. O Pai deu razão a seu Filho sobre todos os poderes deste mundo. Depois da ascensão de Jesus, os discípulos voltam para Jerusalém, cheios de alegria. A Igreja que crê no Ressuscitado, vivendo em meio aos conflitos deste mundo, mesmo sem ter a presença física de Jesus, tem todos os motivos de estar alegre, pois ele envia o que o Pai prometeu: o Espírito Santo.

A fé testemunhada por quem experimentou a ressurreição, confirmada pela vinda do Espírito Santo (At 1,6-8; 2,1-13) é a base de toda ação evangelizadora da Igreja. Crer no Cristo vivo, sentado à direita do Pai é o motivo que lança homens e mulheres para a missão através dos séculos e milênios. Esta certeza do Cristo vivo se expressa também na certeza da vitória da vida sobre a morte de todos os seguidores do mestre. É também a certeza da vitória do bem sobre o mal. Este mesmo Senhor vivo não se afastou da comunidade. A fé diz que ele continua presente em todas as pessoas que se reúnem em seu nome (Mt 28,20).

Relacionando com as outras leituras

Entre a Páscoa e a Ascensão se vão quarenta dias (At 1,1-11). Nem Mc 16,16ss, nem mesmo Lc 24,46ss afirmam isto. Mateus e João não narram a ascensão de Jesus. Os quarenta dias não são relatos históricos, mas teologicamente lembram os quarenta anos do Povo de Deus no deserto (Ex 16ss), bem como os quarenta dias de Moisés no Monte Sinai (Ex 24,15-18); lembram também os quarenta dias de chuva do dilúvio (Gn 7,4); Elias caminhou por quarenta dias até o Horeb (1Rs 19,8); Jesus, antes de iniciar sua vida pública, foi para o deserto, onde rezou, jejuou por quarenta dias (Mc 1,12s; Mt 4,1ss; Lc 4,1ss). Quarenta significa tempo de preparação. Assim os escravos libertos, Moisés, o dilúvio, Elias e Jesus se prepararam para uma nova realidade deixando para trás um estilo de vida para assumir outro. Uma vez que, agora Jesus não estará mais fisicamente presente na Igreja, os discípulos se preparam por quarenta dias para depois ir ao mundo e anunciar o Evangelho. Quem vai evangelizar precisa ter experiência do Cristo Vivo. A mensagem da paixão, morte e ressurreição é central no anúncio dos pregadores. Por isto, agora eles têm base para testemunhar. Ainda hoje, a Igreja se prepara durante quarenta dias (quaresma), todos os anos, para celebrar a Páscoa.

E por fim, o que dizer da ascensão? A arte sacra representa Jesus subindo como um foguete para o céu. Mas vale dizer: o mistério da Ascensão escapa da observação física. Já a arte sacra, e mesmo os textos bíblicos representam este mistério de forma palpável, para que se possa entender. Certamente Jesus foi ao céu, mas isto não deve ser visto como fenômeno observável pelos sentidos, até porque o céu não está lá encima, ou seja, não é um lugar geográfico. Este mistério só pode ser abarcado pela fé. A verdade é que, Ele, o Ressuscitado está vivo junto ao Pai e é o Senhor da história. Não é mais visível como foi quando vivia aqui na terra. Agora, a realidade é outra. Jesus está vivo, mas não está mais dentro dos limites físicos: geográficos e temporais. Os discípulos o experimentaram vivo e agora devem continuar a obra iniciada por Jesus, para isto se requer seu firme testemunho sob o impulso do Espírito Santo (At 1,6-8; 2,1-13). Eles não devem ficar olhando para céu com saudades do passado, esperando sua volta, mas devem ir ao mundo, evangelizar. Seu compromisso é anunciar o Cristo vivo a todos os povos.

Ef 1,17-23: é preciso pedir a sabedoria a Deus para conhecer o mistério realizado na pessoa de Jesus Cristo, quando o Pai o ressuscitou dos mortos.

Sexto Domingo do Tempo Pascal
Dia 22 de Maio de 2022
Primeira Leitura: At 15,1-2.22-29
Segunda Leitura: Ap 21,10-14.22-23
Salmo: 66,2-3.5.6.8
Evangelho: Jo 14,23-29

O Evangelho

Esta parte do Quarto Evangelho encontra-se no chamado “Livro da Hora” (13,1-20,9) ou do caminho de volta para o Pai. No capítulo 13 a “hora” é marcada por Jesus reunido com sua comunidade, pano de fundo de todo o “discurso de despedida” que vai do capítulo 13 ao 17. Este “testamento” de Jesus resume seu legado de diferentes formas: “a primazia do serviço” no lava-pés (13,12-20), o “novo mandamento” de amar como ele amou (13,21-35), o lar místico de Jesus e quem lhe segue seguindo os mandamentos nas “muitas moradas” (14,1-15), chegando ao sentido da continuidade da missão de Jesus através do “Paráclito”, “Consolador”, ou “Espírito da Verdade” (14,16-31). Neste domingo se dá a transição entre o Tempo Pascal e o tempo do Pentecostes. O Lecionário pinça uma parte da perícope para conseguir este objetivo. Qual é, então, o possível sentido que a “tradição” da igreja (lecionário) dá à leitura do Evangelho de hoje?

O amor: ponto de partida e gerador de sentido (14,23): Começa com a resposta de uma pergunta que aparece em 14,22. Judas – não o Iscariotes –  pergunta por que ele se manifesta para a comunidade e não ao mundo. A resposta condiciona tudo ao amor: quem ama recebe amor, quem ama guarda a Palavra, quem ama habita com Deus em Cristo. No “mundo” está “quem não me ama” (14,24).  O seguimento da “palavra” (logos) é o seguimento do próprio Cristo. A tradição viu que, no amor, tudo tem seu ponto de partida, lembrando de Santo Agostinho: “ama e faz o que quiseres”.

O Consolador que ensina o sentido (14,26): Também aqui temos que voltar para a primeira parte da perícope, quando em 14,16 se anuncia que o Pai vai enviar este “Consolador” (em grego paráclitos que quer dizer “advogado”, “aquele que fica do lado da pessoa”). O “Espírito da Verdade” (pneumas tes aletéias) concretiza a presença amorosa de Deus na vida das pessoas que amam e levam amor ao mundo através da Palavra, e isto é recebem a Verdade.

A Paz, sentido da presença divina na vida de quem ama (14,27): A Paz (em grego eirene) deve ser lida no sentido hebraico/aramaico de shalom. No sentido grego “paz” é “tranquilidade de espírito”; mas, no sentido hebraico/aramaico é fartura, felicidade e plenitude. Jesus não vai para nenhum “limbo”, mas para junto do Pai (14,28), que por sua vez permanece junto à comunidade que ama através do Espírito da Verdade/Santo que lhe defende e ampara no caminho da missão no mundo.

Aviso para que creiam (14.29). O Quarto Evangelho é escrito por volta do ano 100 d.C. Nessa época havia muita gente sentindo falta de Jesus. Muitas das pessoas que lhe seguiram tinham morrido. Será que nos abandonou? Este aviso quer lembrar que Jesus está na comunidade que vive o amor através da ação do Espírito da Verdade/Santo, que entende a dor, que a fortalece. A amor é, como quer nos mostrar a tradição, o ponto de partida capaz de superar frustrações e exclusões, e dar sentido a ser comunidade de amor em um mundo que clama por amor e paz.

Relacionando com as outras leituras

A leitura de Atos nos fala da inclusão das pessoas não judias que se convertiam à fé cristã. Dois critérios se confrontaram: impor a elas as exigências da lei bíblica (circuncisão) ou admitir que a presença do Espírito da Verdade/Santo, do amor vivendo nelas, era suficiente. A sentença final diz: “na verdade pareceu bem ao Espírito Santo não lhes impor mais nenhuma carga, exceto o essencial” (At 15,28). Não era uma “concessão” de quem tinha mais dignidade ou autoridade institucional, mas o reconhecimento de uma ação amorosa do Espírito Santo, capaz de curar divisões e exclusões. Assim também podemos interpretar a visão da Nova Jerusalém no Livro de Apocalipse, com 12 portas abertas para os quatro pontos cardiais da terra, que não são algumas portas, mas todas as portas para todas as pessoas que desejam entrar, 12 tribos, que não são apenas um povo, mas expressão de todos os povos, 12 alicerces desse mundo novo onde há moradas para todas as pessoas que amam (Ap 21,10-14). Um mundo do Cordeiro que se entrega por amor e que se torna luz para todas as pessoas em todos os lugares (Ap 21,22-23).

 

Quinto Domingo do Tempo Pascal
Dia 15 de maio de 2022
Primeira Leitura: At 14,21b-27
Salmo: 145/144, 8-13ab
Segunda Leitura: Ap 21,1-5a
Evangelho: Jo 13,31-33a.34-35

 

Na passagem dos v. 31-35 João associa a partida de Judas do Cenáculo com início do drama da Paixão de Jesus, que levaria à sua glorificação em céu. Jesus mesmo dá o anúncio aqui para os discípulos em tom alegre, porque já era iminente voltar para o Pai. Os discípulos não deviam afligir-se pelo seu afastamento momentâneo, mas permanecer unidos em seu amor, amando-se como irmãos e irmãs, para expressar sua pertença à comunidade messiânica fundada por ele.

vv. 31-32: “Agora o filho da humanidade foi glorificado, e também Deus foi glorificado nele”. Jesus retoma um tema anunciado na vinda dos gregos posteriormente à sua entrada em Jerusalém (12,23.28). A chegada dos pagãos preludiava sua morte-glorificação; agora a saída de Judas dá início à paixão e representa sinal do processo que leva Jesus à morte e, por meio dela, à glorificação. O título “filho da humanidade” refere-se sobretudo à figura humana histórica de Jesus, solidária com o destino humano, enquanto o “filho” absoluto na passagem paralela 14,13, enfatiza sua divindade. “Foi glorificado” (edoxasthē) expressa o momento decisivo da missão de Jesus e se refere de forma global à sua paixão-morte e ressurreição-ascensão, isto é para a elevação na cruz e para a glória do céu (cf. 3,14; 8,28; 12,32). É Deus quem glorifica o Filho, mas ele a si mesmo é glorificado na entrega voluntária do Filho para cumprir seu plano de salvação. No v.32 a glorificação de Jesus aparece subordinada à do Pai e se expressa no futuro: “Deus o glorificará”, com referência ao segundo momento de glorificação, que em breve aconteceria em sua ressurreição e exaltação no céu, em seu retorno ao Pai no primeiro dia da semana (20,1), ou seja, no domingo de Páscoa. Sob o ponto de vista confiante do evangelista, exatamente a hora mais obscura na vida terrena de Jesus se revela como a hora da glorificação.

v.33: “Filhinhos, só por pouco tempo estarei convosco, … para onde eu vou, vós não podeis ir”. Jesus se dirige aos discípulos com este título (teknia) cheio de ternura, usado apenas aqui em Jo (sete vezes na primeira carta). Ele evoca a pregação feita anteriormente aos judeus (7,33-34; 8,21). Mas enquanto eles não o encontraram por causa de sua incredulidade, os discípulos/as o seguirão mais tarde (v. 36), para estar sempre com ele, porque conheciam o caminho (14,3-4).

v.34-35: “Eu vos dou um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros…”. Jesus no contexto do tempo pascal pretende sancionar a Nova Aliança, que terá como estatuto fundamental o mandamento do amor. Ele resume a Lei mosaica em um único preceito, que será a marca registrada de sua comunidade. Os profetas haviam predito uma nova aliança, não mais escrita em tábuas de pedra, mas colocado no coração (Jr 31,31-34; Ez 36,24-28). Lv 19,18 também prescreveu amor ao próximo. Mas a novidade do mandamento de Jesus está na segunda parte do v.34: “Assim como eu vos amei, [Eu ordeno!] amai-vos também uns aos outros”. “Como” (kathōs) indica o fundamento do qual brota e sobre a qual esse amor repousa, que se expressa no serviço aos irmãos e irmãs com a disposição de um sacrificar até a própria vida, imitando seu exemplo. Jesus torna-se norma e fundamento, fonte e modelo do amor cristão autêntico. A nova Lei é o próprio Jesus, como sinal elevado que manifesta e exprime o amor de Deus. Essa relação amorosa mostrada por Jesus desafia o mundo e leva as pessoas a fazer sua escolha em favor da luz.

Dado o caráter particular da “hora de Jesus”, não se pode compreender interpretar em um sentido estritamente temporal os tempos dos verbos usados na perícope, ou seja, os aoristos dos primeiros versículos e os tempos futuros das últimas linhas. O aoristo edoxasthē é certamente escolhido em relação à saída do traidor. Precisamente com ela Jesus foi glorificado, a hora começou. Se, então, nos últimos versos fala-se da glória de Deus para o futuro, isso é explicado pelo caráter de correspondência que tem seu ato. É quase um futuro lógico (veja a frase introduzida por ei v.32), mas não exclusivamente; na verdade, esta ação é colocada no futuro e nele se prolonga. O ponto de vista principal é aquele da recíproca glorificação do filho da humanidade e Deus.

No v.32 euthys, imediatamente, volta a sublinhar que a glorificação operada pelo Pai retorna na ora na qual o filho da humanidade glorifica a Deus no modo mais elevado. Mas a glorificação não consiste apenas em retomar no céu a glória que lhe pertence, mas sobretudo na transmissão da salvação, no dom da vida para todos os que creem. Esta finalização da “glorificação” de Jesus em função daqueles que lhe foram confiados e das pessoas que no futuro se juntarão a ele, nunca será suficientemente destacada.

O “novo mandamento” do amor mútuo, que Jesus dá aos seus discípulos e discípulas como uma disposição testamentária e atribui-lhes como uma marca de seu seguimento (v.35), pode-se compreender e interpretar muito bem, colocado como está imediatamente após as palavras da separação iminente: nas dificuldades em que os/as discípulos/as virão a encontrar-se devem manter o relacionamento com ele, voltando seus cuidados para outros, como ele fez.

Este amor constituirá verdadeiramente a característica essencial da comunidade cristã (1ª. Leitura). Note-se a evidente relação entre o “novo céu e a nova terra” (Ap 21,1) como frutos da ação amorosa de Deus e do compromisso cristão.

 

 

 

Quarto Domingo do Tempo Pascal
Dia 08 de maio de 2022
Primeira Leitura: At 13,14.43-52
Salmo: 100/99,2.4.5.6.11.12.13b
Segunda Leitura: Ap 7,9.14b-17
Evangelho: Jo 10, 27-30

 

O Evangelho

No capítulo 10 do Evangelho de João, Jesus usa uma comparação tirada do ambiente rural e pastoril: as ovelhas e o pastor. Jesus se apresenta como o pastor que conduz e protege o rebanho.

As minhas ovelhas ouvem a minha voz, eu as conheço e elas me seguem v.27. Este versículo 27 tem seu realce no versículo 26 quando diz que os que não creem, não pertencem ao seu rebanho. Jesus diz que as ovelhas que são dele o conhecem, não só de forma teórica, mas por adesão: me seguem, comprometendo-se com o seu projeto de vida que todos tenham vida e tenham de sobra (Jo10,10). Essas ovelhas nele encontram a vida eterna. A vida eterna não significa em primeiro lugar o céu e o paraíso. Significa a força e a coragem que nos fazem caminhar com segurança no dia a dia, diante do que nos ameaça, entristece e amedronta. Portanto, não basta escutar, é necessário seguir, é necessário confiar e arriscar-se. Sabemos se escutamos e seguimos observando nosso comportamento, nosso compromisso, nossa entrega.

Por isso Jesus diz que as ovelhas a quem ele deu vida eterna nunca perecerão e nunca serão arrebatadas de sua mão (v. 28). Com esta afirmação, Jesus quer encorajar seus discípulos: quem escuta e segue a sua voz não enfrentará sozinho as dificuldades e os perigos, porque Jesus é o pastor que defende os seus e lhes dá a vida.

Hoje há muitas vozes que querem nos desviar da voz de Jesus: o consumismo, o prazer, a ganância, a vingança, o poder. Mas estas vozes são vozes dos ladrões, dos violentos que querem nos arrebatar da mão de Jesus. Para sabermos qual voz estamos escutando e seguindo, é necessário observar se encontramos uma vida, uma alegria e uma paz que são firmes, que são “eternas”, ou se somos pessoas cada vez mais tristes e amargas. A vida que Jesus nos oferece é um novo nascimento, que faz com que sejamos pessoas novas, mais comprometidas com a verdade, a justiça e a paz. A vida que Jesus nos oferece não é um dom para ser aproveitado de modo egoísta e individualista. É um dom que deve ser partilhado. Portanto temos vida eterna quando levamos a vida eterna para os outros.

Jesus diz que seu Pai é maior do que tudo e todos e ninguém pode arrancar as ovelhas de Jesus da mão do Pai (v.29). Quem escuta e segue a voz de Jesus conta com a força e a proteção do próprio Deus. A vida que Jesus promete é a vida do Pai. A vida que Jesus promete é maior do que a vida que as vozes do mundo podem oferecer. Mas somos nós que escolhemos qual voz queremos escutar e seguir. As ovelhas que pertencem ao rebanho de Jesus reconhecem a sua voz. É por Jesus, com Jesus e em Jesus que encontramos vida, e vida em abundância, vida eterna. Por isso, podemos repetir o que tantas vezes rezamos em nossa liturgia eucarística: “Por Cristo, com Cristo e em Cristo, a vós Deus Pai, todo-poderoso, toda honra e toda glória, agora e para sempre. Amém.”

Eu e o Pai somos um (v.30) Jesus é expressão perfeita do Pai (12,45). Esta união faz de Jesus a presença do Pai no mundo (14,9), o seu santuário: o Verbo tornou-se carne e armou sua tenda entre nós (1,14). Seu ser e sua atividade são a explicação do que é o Pai: amor, doação. É nas atividades de Jesus que faz presente o amor do Pai para com a humanidade. Por Jesus e em Jesus que o Pai nos ama como amou a Jesus, e demonstrou comunicando-nos o Espírito por seu intermédio (Jo 17,32.26; 19,30).

Relacionando com as outras leituras

Na unidade do Pai e do Filho, o Salmo 99 recorda o Deus altíssimo, mas ele é, acima de tudo, o Deus da Aliança que olha com misericórdia e justiça para com o seu povo. Sua Santidade é a Santidade daquele que estabelece a justiça e o amor.

Na oração dominical do “Pai nosso” pedimos: santificado seja o teu nome, pedimos que todos reconheçam a Santidade de Deus, que esse reconhecimento se torne denúncia contra todas as tentativas de menosprezar ou manipular a imagem de Deus e seu projeto para que todos tenham vida e tenham de sobra (Jo10,10). Assim como oração do “Pai nosso” e o Salmo 99, confessamos Deus como soberano e pedimos que venha seu Reino.

O Deus Pai, soberano do universal justo e misericordioso é o nosso Deus!

 

 

Terceiro Domingo do Tempo Pascal
Dia 01 de maio de 2022
Primeira Leitura: At 5,27b-32.40b-41
Segunda Leitura: Ap 5,11-14
Salmo: 30/29,2.4-6.11-12a.13b
Evangelho: Jo 21,1-19

 

O Evangelho

Pode-se destacar dois grandes temas no Evangelho de hoje: o Cristo ressuscitado e a vocação de Pedro. Ele, e não o discípulo amado, é chamado a apascentar o rebanho, mas para isto, assume os atributos deste outro discípulo: o amor três vezes exigido.

O capítulo 21 do quarto evangelho é visto pelos estudiosos como acréscimo posterior e, embora tenha proximidade com Jo 1-20, reflete também os evangelhos sinóticos. É também conhecido como Atos dos Apóstolos de João, pois conta os primeiros passos da Igreja depois da ressurreição, quando Jesus já não está presente de forma física.

O relato parece um tanto estranho, pois os apóstolos que abandonaram tudo para seguir Jesus (Mc 10,28), agora, depois da crucificação, voltaram a pescar na Galileia. Teriam, eles, esquecido sua opção? Não. O texto é simbólico. A pesca é figura da Igreja na árdua tarefa de evangelizar. Sete pescadores representam a missão universal. Todos estão agindo sob a chefia de Pedro (é bom lembrar que no quarto evangelho não se destaca muito a liderança de Pedro como nos sinóticos). Alguns estudiosos julgam que este capítulo foi acrescentado tardiamente para harmonizar as comunidades joaninas com a Igreja dos sinóticos, onde Pedro era figura proeminente.

Aqui se realiza o que Jesus prometeu: “vos farei pescadores de homens” (Mc 1,17; Lc 5,10). O número de peixes que abarrota as redes demonstra a missão universal: todos os povos fazem parte da Igreja e ela se mantém una, não rompe. A Igreja deve acolher judeus e gregos, escravos e livres; homens e mulheres (Gl 3,28).

Como também em Lc 5,1-11, eles passam a noite sem nada pescar. Sem a presença do Ressuscitado, a Igreja se torna estéril. Clareando o dia, vem a Luz. Jesus é a alma da evangelização. Reconhecendo o Ressuscitado a pesca será abundante. O sucesso da missão depende da experiência do Ressuscitado que os discípulos devem testemunhar e da obediência à sua palavra.

Trata-se de uma cena de refeição da Igreja primitiva (cf. At 2,42ss). A pesca serviria como preparo desta refeição, mas antes de os discípulos terem conseguido o alimento, Jesus já preparou pão e peixe assados sobre um braseiro (21,9). Agora eles a completam com o produto de seu trabalho.

Pedro, aquele que traiu Jesus três vezes, agora, chamado a liderar a Igreja, deve ressarcir suas traições pela tríplice profissão de amor. Esta é a versão joanina de Mt 16,16ss. Pedro e o discípulo amado representam carismas diferentes. Este último reconheceu o Ressuscitado antes de Pedro, mas Pedro, embora mais lento, é o chamado a apascentar o rebanho de Jesus. Para continuar esta obra, ele deve estar disposto a morrer por amor. Quando velho, Pedro estenderá as mãos e outro o conduzirá. Esta frase é uma referência ao rito de crucificação. O condenado abria as mãos para carregar a cruz, algum soldado o cingia e o levava para onde ele não queria ir. A tríplice prova de amor é a superação da ambição de Pedro. Ele, que não queria ter seus pés lavados, pois achava que o superior deve ser servido, um dia, como coordenador, saberá dar a vida e não se fazer servir. Sem o amor isto é impossível.

Relacionando com as outras leituras

At 5,27b-32.40b-41: diante das dificuldades, Pedro e os demais apóstolos dão testemunho da ressurreição e apresentam o Ressuscitado como o salvador. Alegram-se por poder sofrer pelo nome de Jesus, conforme última Bem-aventurança (Mt 5,11s; Lc 6,22s). Aqui fica claro que os apóstolos, de fato, abandonaram tudo, como visto em Mt 10,28) para enfrentar as dificuldades e levar o Evangelho aos povos, mesmo enfrentando os maiores perigos.

Ap 5,11-14: o Cordeiro (o Ressuscitado) recebe os atributos divinos: tudo, no céu e na terra, adora ao Pai (Ap 4) e igualmente ao cordeiro (Ap 5).

As três leituras apontam para a ressurreição de Jesus. Esta fé levou Pedro e seus companheiros a enfrentar todas as dificuldades até o martírio. Quem presenciou Jesus morto e ressuscitado, pode arriscar tudo e levar esta Boa Notícia a todos os povos, pois ela é a mensagem central da fé cristã.

 

Segundo Domingo da Páscoa

Dia 24 de Abri de 2022
Primeira Leitura: At 5,12-16
Segunda Leitura: Ap 1,9-11a.12-13.17-19
Salmo: 118/117,2-4.16ab-18.22-24
Evangelho: Jo 20,19-31

 

O Evangelho

O texto do Quarto Evangelho, está situado no chamado “Livro da Hora” do Evangelho de João (cap. 13-20), que apresenta a primeira “conclusão” ou “objetivo” de toda a obra em 20,30-31. O Quarto Evangelho seria resultado de um longo processo de compilação que poderia ter iniciado em 50 d.C. (antes dos Sinóticos, Mt, Mc e Lc) e até das Cartas Paulinas. Esta comunidade teria nascido com João Batista e desenvolvido uma cristologia peculiar que lhe afastava tanto do docetismo que defendia que a humanidade de Jesus Cristo era apenas aparente, sendo completamente divino. Mas o quarto evangelho também se diferenciados chamados “revisionistas” para quem todo o sentido da revelação estava em Jesus “vindo na carne”.

Ambas opções – docetismo e revisionismo – eram inaceitáveis para o judaísmo sacerdotal. A primeira porque havia um único Deus e Pai, conforme o Shemáh Israel (Dt 6,4); e a segunda porque um mero ser humano não poderia perdoar os pecados (Mc 2,7). O objetivo de buscar a convergência que promove a vida para o mundo, está bem presente no texto deste domingo, com a comunidade que se encontra com o Cristo Ressuscitado (recebendo a missão de perdoar os pecados pelo poder do Espírito Santo, v.19-23); reconstruindo sua unidade a partir da dúvida (v.24-29) e expressando o sentido dos sinais (semeion) resgatados no livro, para que todas pessoas possam crer e ter vida (v.30-31).

Dentro e fora: fio condutor dos encontros com o Ressuscitado

Cothenet usa a chave “dentro-fora” para ler os capítulos 18 e 19 (p.26). Mas essa mesma chave também ajuda a encontrar um fio condutor no capítulo 20. No texto deste domingo os discípulos estão dentro, fechados e trancados, por “medo dos judeus” (autoridades religiosas de Jerusalém). Jesus vem de fora para dentro e se encontra com a comunidade, empoderando-a e enviando-a (v.19-23). Tomé, que está fora, duvida, e quer as mãos e dedos dentro das feridas de Jesus para comprovar sua corporeidade material (v.24-25). Finalmente Jesus aparece dentro da comunidade (fechada dentro de si), ainda com medo, e autoriza Tomé a colocar as mãos dentro de suas feridas, mas ele acredita sem precisar tocar dentro de Jesus, gerando a bem-aventurança para todas as pessoas que creem.

Jesus, após o primeiro movimento para fora, de saída do túmulo; sempre vem de fora para dentro, quebrando a barreira do medo. O medo, que tranca a comunidade dentro, se refere aos poderes políticos repressores. Mas, também, em Tomé há o medo individualista que faz com que a pessoa se feche dentro de si mesma.

O medo se supera com a Paz. Mas qual Paz? A expressão hevenu shalom (“a paz seja com vocês”, v.19b,21a) era uma saudação coloquial tanto em hebraico quanto em aramaico. Mas este Evangelho, dedicado também ao mundo grego (“eirene ümin”) se referia à paz interior ameaçada pelo medo individualista. O medo deve ser superado pelos encontros, pela abertura, por uma igreja que sai de seu isolamento: “assim como o Pai em enviou, eu lhes envio”, v.21).

A superação comunitária da dúvida mostra Tomé não como uma pessoa “teimosa” ou “rebelde”, mas alguém cuja atitude mostra quão difícil é, para que não participa da comunidade, crer na presença viva do Ressuscitado. Quando Tomé vem para dentro, ao encontro com o Ressuscitado, tudo muda. Tomé pode apenas crer, e ao crer abre as portas para todas as outras pessoas que estão fora, vir para dentro e crer (v.29).

O sentido que o Ressuscitado dá a proclamação remete aos sinais (semeion) que foram sete (contidos no chamado “Livro dos Sinais” nos primeiros 12 capítulos). Essas manifestações de Jesus (sinais) feitas fora, são resgatadas nesta conclusão para que a comunidade que crê dentro as proclame fora (v.30-31). Portanto, o sentido deste “livro” (Evangelho) é capacitar a comunidade para ser sinal e fazer com que creiam (dentro) e fora possam ter vida em seu nome.

Relacionando com as outras leituras

Neste Domingos de Páscoa, a primeira leitura é do Livro de Atos, e logo no primeiro versículo da leitura diz: “Pelas mãos dos apóstolos muitos sinais e prodígios foram feitos entre o povo” (At 5,12). O sentido da missão apostólica é ser sinal entre o povo. Já, no Livro de Apocalipse, escrito no meio da perseguição que antecedeu o Quarto Evangelho, se afirma: “Não tenhas medo” (Ap 1,17b). A missão, o envio do Ressuscitado, é superar o medo, ser igreja de e em saída e ser sinal, levando vida a todas as pessoas.

 

 

 

Dom. da Páscoa

Dia: 17 de abril de 2022

Primeira Leitura: At 10,34.37-43

Salmo: 117,1-2.16ab-17.22-23

Segunda Leitura: Cl 3,1-4

Evangelho: Jo 20,1-9

 

O Evangelho

Enquanto os sinóticos falam de mais mulheres que foram ao túmulo de Jesus, Jo apenas menciona Madalena, citada como protagonista também em Mt e Mc. No entanto, Jo não diz o propósito de sua visita ao túmulo. Talvez ela tenha ido lá para fazer o lamento que, de acordo com o costume da época, durava três dias no túmulo do falecido. De acordo com Mc e Lc, as mulheres foram ao túmulo para ungir o corpo de Jesus.. De acordo com Mt, para visitar o túmulo, que era guardado pelos guardas. Na história narrada por Jo, há um duplo movimento: Madalena corre do túmulo até os discípulos (v.1-2), Pedro e o outro discípulo correm em direção ao túmulo (v.3-4). A vinda de Pedro ao túmulo de Jesus também é confirmada por Lc 24,12 e está relacionada com a visita das mulheres, atestada pela tradição sinótica. Jo, portanto, relata um fato autêntico, mas dando ênfase à figura do discípulo amado pelo Senhor.

Existem desarmonias dentro das duas unidades narrativas: a) no v.1 Maria Madalena visita o sepulcro sozinha; mas no v.2 diz aos discípulos: “não sabemos onde (= o Senhor) puseram”; b) do discípulo dileto é dito com ênfase que “ele viu e creu” (v.8), contradizendo a sentença causal do v. 9 onde é dito que ambos os discípulos não tinham ainda entendido as Escrituras.

A historicidade da vinda das mulheres postula também a dos discípulos, pelo menos de alguns. A menção dos dois discípulos, lembrados juntos também durante a última ceia para a denúncia de Judas (13,23-25) e para a pesca milagrosa (c. 21), prova a amizade entre eles. Mas alguns detalhes do presente episódio parecem implicar uma certa emulação entre os dois, o que provavelmente reflete alguma tensão entre os ambientes petrino e joanino. Também foneticamente a prioridade do outro discípulo é enfatizada com proedramen e prōtos v. 4 e 8, mas sobretudo no decorrer da história. Contudo, Pedro não é descrito como uma figura contrastante.

Os dois discípulos vão ao túmulo com pressa, atitude bem compreensível dada a circunstância; Maria também “correu” (v.2). A anotação de que os discípulos correm juntos serve apenas para preparar a narrativa que se segue.

v.1-2 A indicação cronológica do primeiro dia da semana concorda com os sinóticos; mas a expressão “quando ainda estava escuro” não concorda com a notação de Mc, “ao nascer do sol” (16,2). A escuridão (skotias) é uma característica do estilo joanino. Possivelmente Jo pretende aludir simbolicamente à escuridão na qual os discípulos e discípulas estavam tateando por causa da ausência de Jesus. Pela primeira vez em Jo “o outro discípulo” é identificado com o discípulo amado por Jesus (v.2), que provavelmente representa a testemunha na origem da tradição do quarto evangelho.

v.5-7 Os panos de linho deitados (keimena ta othonia) onde o corpo foi colocado indicam que Jesus não poderia ser contido pelos “laços da morte” (Sl 116,3). O sudário (v.7) consistia em um pedaço que envolvia a cabeça do falecido, para evitar que a boca se abrisse. “Enrolado” traduz entetyligmenon, significando que a mortalha tinha mantido a forma da cabeça de Jesus. No entanto, os dois discípulos perceberam que o corpo de Jesus não havia sido roubado, porque os ladrões não se preocupariam em despir um cadáver antes de removê-lo da tumba.

v.8-10 “o outro discípulo, que entrou na tumba, viu e creu” (v.8). O uso absoluto de “ver e acreditar” destaca o tema da fé em todo este capítulo. Do v. 9 entretanto não parece que o discípulo amado veio imediatamente para uma fé completa. O verbo aoristo episteusen (acreditou), pode significar “começou a acreditar”. Era de uma fé inicial, talvez baseada no “sinal” da pedra removida, da presença das vestes funerárias, do sepulcro vazio. O discípulo, espantado com a ausência do corpo de Jesus, não entende, ainda não sabe que o Senhor ressuscitou. Isso explica a reserva do versículo seguinte. “Eles ainda não tinham compreendido a Escritura que diz: Ele deve ressuscitar dos mortos” (v.9). A frase implica a ignorância da Escritura em um sentido global, mas com referência particular ao Salmo 16,9-10 e a Oseias 6,2.

Pedro verifica o estado dos eventos na tumba, que – no modo de ver do evangelista e no horizonte de pensamento daquela época – é extremamente importante para a questão da ressurreição: as pistas levam a concluir que Jesus ressuscitou.

No v. 5, também deve ser notado que o discípulo se inclina para dentro do sepulcro: esta é a situação de quem ainda não quer entrar. O principal fato é que o discípulo vê (blepei) os panos caídos no chão. Sob o aspecto narrativo está uma progressão intencional: Maria vê a pedra retirada do túmulo (v.1b), o outro discípulo vê os panos no sepulcro, finalmente Pedro observa (theōrei) os panos e a mortalha, dobrados e deitado à parte (v.6-7). O leitor é progressivamente informado do significativo estado de coisas.

v.6-7. Pedro, que seguia o outro discípulo (akolouthōn) aqui representa seguir materialmente, (18,15), entra na tumba e examina tudo atentamente. Ele também vê não só os panos, mas também o sudário, que foi colocada sobre a cabeça de Jesus. Mas a forma de encontrar os objetos e a disposição das coisas encontradas revelam uma intenção particular do narrador.

É natural a comparação deste evento com a revivificação de Lázaro. Na descrição de Lázaro saindo da tumba está também mencionado o sudário, com o qual “seu rosto estava envolto” (11,44). Objetivamente, no entanto, se impõe ao leitor a comparação: Lázaro chamado de volta à vida terrena deve ser libertado das ataduras, Jesus que realmente ressurge realmente se liberta delas e as deixa como um sinal de sua ressurreição.

Relação com os outros textos.

O discurso de Pedro em At é uma síntese do anúncio pascal: a pregação do Batista, o batismo de Jesus, seu ministério público assinalado pela luta contra o mal, a crucifixão e ressureição, as aparições pascais aos discípulos e discípulas e a missão direcionada ao mundo inteiro.

 

Domingo de Ramos
Dia: 10 de 04 de 2022
Primeira Leitura: Is 50,4-7
Salmo: 22/21,8-9.17-18a.19-20.23-24
Segunda Leitura: Fl 2,6-11
Evangelho: Lc 22,14 -23,56

 

O Evangelho

O Domingo de Ramos, ao mesmo tempo que encerra a Quaresma, inicia a Semana Santa. A entrada de Jesus em Jerusalém conclui a grande “viagem” de Jesus a Jerusalém (Lc 9,51–19,27), que é o centro do evangelho de Lucas. Trata-se do “caminho de Jesus”. A narração da entrada de Jesus em Jerusalém está presente em todos os evangelhos canônicos (Mt 21,1-9; Mc 11,1-10 e Jo 12,12-19).

O trecho de hoje inicia-se com a afirmação de que Jesus “aproximou-se de Betfagé e Betânia, junto ao monte chamado das Oliveira” (v. 29. cf. Zc 14,4). Deste ponto intermediário entre as duas localidades citadas, Jesus “enviou dois discípulos” (v. 29). Lucas usa o verbo apostellō, que no Terceiro Evangelho é frequentemente utilizado para “enviar em missão”: 4,18.43; 7,20,27; 9,2.48.52; etc. Os discípulos enviados aqui não são nomeados. O fato de serem dois liga-se à determinação de Dt 19,15, que expõe as condições para que o testemunho de alguém seja válido. Assim também em Lc 9,30; 24,4; At 1,10.

Enquanto a multidão chega a pé em Jerusalém para festa da Páscoa, Jesus entra montado num jumento. Tal atitude evoca novamente o profeta Zacarias: “Ele é justo e vitorioso, humilde, montado em um jumento, num jumentinho, filho de jumenta” (Zc 9,9). O cuidado em descrever o animal sobre o qual Jesus monta em sua entrada na cidade não é um detalhe secundário. Um rei guerreiro e conquistador entraria montado em um cavalo ou uma égua que, no mundo antigo, eram animais de guerra. Neste caso, Jesus teria se apresentado como um imperador ou um governante militar, que exerce o poder como um ditador e busca a guerra. Diferentemente, Jesus opta por entrar na cidade montando um jumento. O passeio por Jerusalém sobre este animal fazia parte do ritual de entronização de um monarca (cf. 1Rs 1,38-40), para simbolizar que se trata de um rei que vem trazer a paz, um rei que caminha com o povo sobre o qual passa a governar. Em outras palavras, toda a narração do evangelho evoca a esperança salvífica messiânica.

O evangelista enfatiza o papel desempenhado pelos apóstolos na manifestação: eles não apenas pegam o jumentinho, mas estendem sobre ele suas capas e fazem Jesus sentar-se.

Não deixa de estranhar o fato de que eles (quem: os discípulos? as pessoas da multidão?) “estendiam suas vestes no caminho” (v. 36). Que significa tal gesto? Em 2Rs 9,13, temos um paralelo exato, no relato da proclamação de Jeú como rei do Israel do Norte. Novamente, portanto, temos um gesto que equivale a anunciar e reconhecer que Jesus é rei. O povo parece compreender logo o significado. O evangelista, porém, acrescenta outro elemento: “Toda a multidão dos discípulos começou, cheia de alegria, a louvar a Deus em alta voz por todos os milagres que tinham visto” (v. 37). Das pessoas ao redor, surge um louvor a Deus; todavia, a motivação está nos milagres realizados por Jesus durante a sua atividade anterior na Galileia e a caminho de Jerusalém.

Lucas omite a aclamação em hebraico: “Hosana!” e a referência ao reino de Davi (cf. Mc 11,10), e transforma a aclamação final em uma referência à paz e à glória, repetindo as palavras utilizadas antes, no relato do nascimento de Jesus, em 2,14: o que anteriormente era proclamado pelos anjos, agora é cantado pelo povo, mas com uma mudança explícita: “paz no céu [não mais na terra] e glória nas alturas” (v. 38). Tal mudança acentua ainda mais o que já fora afirmado em 2,14: a verdadeira paz não é a Pax Romana, e sim a que Jesus traz; a verdadeira glória não pertence ao imperador, mas a Deus. Por outro lado, antecipa também o lamento de Jesus por Jerusalém, em Lc 19,42-44: a cidade ignora a proposta de paz e a consequência é a guerra.

Proclamar Jesus rei é extremamente perigoso e trará uma violenta reação dos romanos. Sabedores disso, os fariseus, que anteriormente aconselharam Jesus a agir com prudência (13,31), agora pedem que ele repreenda seus discípulos (v. 39). Jesus responde com um provérbio: “se estes se calarem, as pedras gritarão” (v. 40; retomando Hab 2,11). Trata-se de uma ameaça velada, pois não se manda o profeta, a discípula e o discípulo calarem a boca (Am 2,12b; 7,12-13).

Cabe, por fim, perguntar: O que esses versículos devem provocar nos leitores de Lucas? Em primeiro lugar, o discernimento crítico para discernir se o projeto de nossos governantes (principalmente aqueles que se apresentam em nome de Deus) conduzem à paz e à vida, ou à violência e à morte. O verdadeiro Messias é humilde, manso e reconstrói a sociedade por meio do diálogo, do acolhimento e dos direitos de todos (saúde, moradia, emprego, salário justo, alimentação etc.).

Mas também deve levar à consciência da missão: a boa-nova está agora nas mãos da Igreja, das discípulas e dos discípulos. São eles que conduzem Jesus a Jerusalém e o “conduzem” até os confins da terra (At 1,8).

 

5º Domingo do Tempo Quaresma
Dia 03 de Abril de 2022
Primeira Leitura: Is 43,16-21
Salmo: 125,1-6
Segunda Leitura: Fl 3,8-14
Evangelho: Jo 8,1-11

 

O Evangelho

O tema deste domingo poderia ser chamado de “a volta dos pecadores e a novidade de Deus”.

O relato comumente chamado de “a mulher adúltera” (Jo 8,1-11) parece que originalmente não era do evangelho de João, mas foi colocado aqui bem mais tarde. Uma leitura atenta do quarto evangelho notará que se quebrou a lógica da narrativa em relação ao que vem antes e depois do referido texto. Fica evidente que a perícope foi interpolada de forma um tanto artificial. Alguns estudiosos julgam que o texto tem características lucanas e que o mesmo foi intercalado no evangelho de João por volta do século IV, quando a Igreja recebeu muitos adeptos oriundos do paganismo. Gente que, muitas vezes, tinha uma vida moral aberta. Os cristãos mais conservadores ficavam furiosos, pois não queriam conviver na mesma comunidade com adúlteros que aderiam ao evangelho. Já outros, descontentes com este espírito moralista que freava a missão, valeram-se então, de um texto, provavelmente lucano, e o intercalaram no evangelho de João. Assim resolveram problemas concretos de comunidades onde o quarto evangelho era mais conhecido.

No AT a lei era rígida e não conhecia misericórdia. O casal adúltero, pego em flagrante, devia ser apedrejado (Lv 20,10; Dt 22,22). Mas no caso da mulher adúltera, os escribas e fariseus deixaram o homem livre. Aplicaram a lei do AT conforme suas conveniências. Aliás, os escribas desenvolviam suas tradições, onde eles aplicavam as leis do Pentateuco à realidade cotidiana. Como todos os escribas eram homens, foram brandos com o homem adúltero, que nem sequer é mencionado, mas duros com a mulher.

Jesus não entra na lógica dos autointitulados guardiões dos bons costumes. Ele mostra que 1) ninguém tem o direito de julgar os outros e que 2) antes de tudo, é preciso analisar-se a si mesmo, pois ninguém está sem pecados. Talvez o pecado dos doutores e fariseus fosse mais grave do que o pecado da adúltera. Seu pecado era a arrogância de se julgarem perfeitos e condenar os outros. Eles, com suas tradições, proibiam que as mulheres administrassem seus bens, o que obrigava muitas viúvas a se prostituírem para não morrer de fome. Jesus ensina também que devemos alegrar-nos com quem volta, principalmente os que estão mais distantes, como também se lê no relato do filho reencontrado (Lc 15,11ss).

Neste domingo urge refletir sobre a volta de todos os extraviados e a novidade de Deus, que está pronto para receber os pecadores de braços aberto. Ao mesmo tempo refletir que todos precisam olhar com humildade para dentro da própria vida, sem condenar a ninguém e ser imparcial diante dos fatos evitando o machismo na questão moral. Alegrar-se com a volta de um irmão, ou irmã que se aproxima da comunidade em busca do perdão e ser apoio sem jamais atirar pedras. Neste ponto, ainda hoje, há muitas falhas nas comunidades cristãs que muitas vezes estão mais propensas a condenar do que a se alegrar e apoiar quem volta depois do erro.

Relacionando com as outras leituras

Is 43,16-21: parte do povo de Jerusalém está no exílio da Babilônia, como fruto de políticas desastradas e da idolatria. Mas agora, Deus, por meio do profeta, por volta de 550 a.C., consola os exilados, lembrando-lhes a libertação de outrora do Egito. Novamente Deus estará com seu povo e, como então conduziu o povo por meio do mar, agora irá conduzi-lo pelo deserto, lugar inóspito. Deus está com seu povo nesta nova libertação. Deus, na alegria acompanha seu povo na volta.

Fl 3,8-14: em Filipos, depois de Paulo, passaram missionários judaizantes, induzindo os féis ao rito da circuncisão e observância de Lei. Paulo mostra que tudo isto já não tem mais nenhum valor. Ele foi encontrado por Jesus, por isto, todo o passado da observância da Lei, perdeu seu sentido. Sua justiça já não é a da Lei, mas a da fé em Jesus Cristo. Por isto Paulo corre, pois em Cristo o fiel nunca está pronto. Conversão é um processo que só termina na morte. A conversão, para Paulo é, antes de tudo, mudança de perspectiva. Bem mais do que prática de obras, permitir que a graça de Cristo entre na vida e a transforma.

 

 

 

Quarto Domingo da Quaresma
Dia 27 de Março de 2022
1ª Leitura – Js 5,9a.10-12
Salmo – Sl 34/33,2-3.4-5.6-7
2ª Leitura – 2Cor 5,17-21
Evangelho – Lc 15,1-3.11-32

O Evangelho

O Evangelho deste domingo se apresenta dentro de um conjunto de “três parábolas do que foi perdido” (“A ovelha perdida” em 15,3-7; “A moeda perdida” em 15,8-10 e “O filho perdido” em 15,11-32), embora a leitura indicada pule a primeira parábola, ficando as últimas duas (especialmente a terceira que é mais extensa e, de certa forma, canaliza o sentido das duas primeiras). Em 15,1-2, apresenta a introdução, ou o contexto político-teológico-pedagógico em que se apresentam as parábolas. Ali há uma tensão entre dois grupos: um excluído e discriminado que está na mesa com Jesus (“todos os publicanos e pecadores”); o outro que rotulava, discriminava e excluía, formado por fariseus e escribas. O versículo 15,3 indica que se trata de parábolas, isto é, composições simbólicas de caráter pedagógico.

O exemplo das mulheres (15,8-10)

A parábola não trata apenas de uma mulher, que perde uma das suas dez moedas e ilumina e varre a casa em sua busca (15,8), mas do relacionamento com “as amigas” (fílas, isto é, “amadas”) e “vizinhas”, com quem se alegra (15,9). Lucas reconhece que as mulheres foram companheiras na missão, administradoras de bens e financiadoras do movimento de Jesus (8,1-3). As mulheres também eram discriminadas pelos defensores da sociedade e da fé excludente. Jesus convida a seguir o exemplo das pessoas por eles discriminadas e excluídas. Convida a iluminar o espaço vital – a Casa Comum – e varrer os cantos esquecidos e abandonados, pois, então, haverá grande alegria para todas as pessoas amadas e todas as que moram ao seu redor (15,10).

O reencontro com o filho perdido

Este texto é comumente conhecido como a “Parábola do Filho Pródigo”, mas aqui fica evidente que a ênfase, como nas outras parábolas, está no filho perdido que foi encontrado. As palavras “perdido/a” (apololós/apólesa) e “encontrado” (eúron/euréte), aparecem nas três parábolas como um refrão: “encontrei minha/meu…que havia perdido” (15,6b.9b.24b). No entanto, nesta última parábola o “refrão” é dito duas vezes. A primeira, no v. 24ab, quando o filho retorna: “Porque este filho meu estava morto e voltou a vida (do verbo anaxao, no sentido de voltar do pecado), estava perdido e foi encontrado” (tradução própria). A segunda, após a reclamação do irmão, no v. 32bc: “…estava morto e vive (aqui é usada diretamente a palavra vida exen), e perdido e foi encontrado”.

O paralelo dialético é evidente: o irmão mais novo perde tudo “vivendo de forma extravagante/licenciosa” (cf. 15,13b). Depois de perder tudo, passar fome e perder também a dignidade, assume seus pecados e pensa em ser como um dos trabalhadores assalariados (mistoi) em 15,19; embora ao falar com o pai diga que ser tratado como quem serve sem esperar recompensa (doulous). Em 15,29, o filho mais velho, se apresenta como aquele que “durante anos” serviu (douléuo) e afirma que “nunca deixou passar/negligenciou um mandamento” (usando a palavra dos mandamentos da lei, entolén), no entanto, nunca pode “celebrar com os amigos” (filón…eufratô).

Assim, no final se estabelece o contraponto entre aquelas pessoas pecadoras que sentavam na mesa com Jesus, são o motivo da alegria, e quem não consegue participar da celebração na mesa da vida, porque – embora tenha servido com afinco – não entende a festa do reencontro e da alegria.

Relacionando com as outras leituras

A leitura do Livro de Josué nos fala também de comensalidade. O povo que tinha superado a escravidão e opressão do Egito, podia finalmente sentar na mesa pascal. Este povo em seu processo de libertação não é mais dependente do maná, mas pode se sustentar e construir a vida. Assim o texto do Evangelho indica que a superação da discriminação, do preconceito e da exclusão, permite que a mesa eucarística e a sociedade sejam para todas as pessoas. Na Segunda Carta aos Coríntios o tema é a reconciliação, isto é, o reencontro promovido por Cristo que, não tendo pecado, acolhe pessoas pecadoras fazendo delas “novas criaturas” e promovendo uma nova justiça.

 

 

 

 

Terceiro Domingo da Quaresma
20 de março de 2022
Primeira Leitura: Ex 3,1-8a.13-15
Salmo: 103/102,1-4.6-8.11
Segunda Leitura: 1Cor 10,1-6.10-12
Evangelho: Lc 13,1-9

O Evangelho

Os dois episódios relatados em 13,1-5 são encontrados exclusivamente em Lucas. O tema central é constituído pelo convite ao povo de Israel a converter-se acolhendo a ocasião do perdão que Deus oferece àqueles que aderem ao Evangelho. Os dois episódios tristes narrados no início do capítulo (v.1-5), que servem como uma introdução à parábola a seguir (v. 6-9), formam uma unidade literária de caráter apotegmático, escrita de forma simétrica: a primeira parte (v. 2-3) corresponde à segunda (v. 4-5); ambas incluem um logion quase idêntico de Jesus (v. 3-5).

Há uma ligação lógica entre as duas perícopes (v.1-5. 6-9), que ilustram os dois elementos essenciais da conversão: romper com o pecadodar frutos. Através da boca de João Batista, Lc havia sublinhado como a conversão deve ser seguida pelos frutos (3,8.10ss.). A novidade do evangelho emerge nos v.8-9 da parábola, onde Jesus destaca a paciência do dono e a iniciativa preveniente do agricultor, para aludir à misericórdia de Deus, que dá salvação por meio de sua missão.

Lc apresenta Jesus reagindo à notícia das mortes na cidade no clássico estilo profético: os desastres são apresentados como exemplos de alerta para seus ouvintes. “Por terem sofrido tal sorte”: o “por” traduz uma expressão sugerida por hoti (“porque eles têm imediatamente esse destino”). Na piedade popular (com base em promessas deuteronômicas, cf. Dt 28-30) os desastres foram interpretados como uma punição pelos pecados (cf. Jó 4,17; Ez 18,26) e essa convicção se reflete em Jo 9,2-3, bem como em algumas das curas descritas por Lc (p.ex. 5,20-24). Jesus não contesta a equação pecado-punição, mas apenas se pergunta se os pecados deles foram piores do que os dos outros. As pessoas que morreram não mereciam morrer mais do que os outros. De uma morte repentina e violenta não se pode inferir a gravidade do pecado. Na verdade, o próprio Jesus irá encontrar uma morte que terá toda a aparência de um castigo pelos pecados. Mas o que o Messias quer dizer é que a própria morte, com o julgamento concomitante de Deus, está sempre muito perto. Isso pode acontecer enquanto alguém está realizando um sacrifício ritual. Isso pode acontecer enquanto a pessoa está passando por baixo de uma torre. E quando chega tão de repente, não há mais tempo para se converter. A conversão a que chama Jesus não consiste em apenas evitar o pecado, mas é uma aceitação da visita de Deus na proclamação de seu reino.

Para o/a leitor/a, porém, a notícia dessas mortes serve para lembrá-lo/a de que o próprio Senhor está inexoravelmente se dirigindo para a cidade em que essas terríveis coisas podem acontecer facilmente.

Particularmente interessante é o uso que Lc faz da tradição da figueira (13,6-9). Mateus e Marcos descrevem Jesus encontrando uma árvore de figos que não dá fruto. Mas em Lc este encontro é uma parábola que cumpre claramente a função de interpretar esta parte de sua história. A árvore não foi cortada sumariamente. Ele ganha mais um ano, apesar de já ter tido tempo de dar frutos. O encorajamento para os ouvintes de Jesus, é que o Messias ainda está a caminho da cidade; há ainda há tempo para dar frutos a ele. A ressalva é que, se não o fizerem, eles serão certamente cortados. Com esta parábola, a necessidade urgente de conversão é reafirmada.

A figueira estéril simboliza a falta de frutos por parte do povo judeu. Há ameaça de condenação escatológica, isto é, de exclusão do reino, se ele não se apressar em se converter. No entanto, o adiamento do corte da planta indica que a resipiscência ainda é possível. No contexto de Mt e Mc, o veredicto divino já foi pronunciado e é definitivo. De acordo com Lc, no entanto, Jesus com sua atividade ministerial concedeu ao povo de Israel uma última oportunidade de penitência e conversão. Era, no entanto, essencial aproveitar o momento certo (kairós), constituído da sua presença e pregação.

Jesus toma o exemplo de dois eventos trágicos para reiterar a urgência da decisão pela conversão. Segundo a tradicional tese da retribuição do pecado com um castigo, os ouvintes de Jesus viam nestes eventos a punição divina sobre os pecadores e o fato de alguns serem poupados os tranquilizava e confirmava sobre sua justiça. Jesus rechaça esta visão simplista e admoesta todos ao arrependimento das próprias culpas, de outra forma o juízo divino será inexorável. Na mesma linha, deve ser lida a parábola da figueira estéril.

Relação com as outras leituras

A revelação do nome de YHWH, na 1ª. Leitura, aparece ao lado da reiterada admoestação à conversão descrita em na 2ª. Leitura.  Deus se faz conhecer como o Deus da compaixão e não da punição e da vingança.

As três leituras lançam luz sobre o senso da leitura da história segundo o Espírito: Deus é o mesmo o tempo todo e ama os seres humanos de todos os tempos, mas das pessoas de todos os tempos espera uma resposta correspondente. Esse é o sentido da metanoeó, conversão da qual fala Jesus em Lc.

 

 

Segundo Domingo da Quaresma
Dia: 13 de 03 de 2022
Primeira Leitura: Gn 15,5-12.17-18
Salmo: 27/26,1.7-8.9abc.13-14
Segunda Leitura: Fl 3, 17-4,1
Evangelho: Lc 9, 28b-36

 

O Evangelho

O evangelho de hoje começa afirmando que Jesus tomou consigo Pedro, João e Tiago. A escolha de três discípulos para que presenciem um evento importante deve ser interpretada à luz da norma legal formulada em Dt 19,15: Uma só testemunha não basta… só é válida quando for feita por duas ou três testemunhas. Em outras palavras, os discípulos foram escolhidos para que seu testemunho fosse válido, conforme o requerido pela Torá. Nos evangelhos sinóticos, estes três são os protótipos dos discípulos, não apenas do grupo dos doze, mas também de todos os tempos.

Lucas é o único evangelista que dá grande destaque à oração de Jesus. Antes e depois de algo importante, Jesus reza: enquanto cura (5,16), antes de escolher os doze apóstolos (6,12) e antes de ensinar seus discípulos a rezar (11,1-2). Não é de estranhar que Lucas seja o único evangelista a dizer que Jesus se transfigura durante sua oração. A oração de Jesus é símbolo de comunhão: o poder de Jesus para operar milagres procede do Pai.

Dois detalhes diferenciam o relato de Lucas daquele de Marcos. Em primeiro lugar, como já vimos, Lucas enfatiza que a mudança ocorre enquanto Jesus estava rezando; Marcos dá ênfase à roupa (Mc 9,3), enquanto Lucas destaca a mudança no rosto de Jesus: “A aparência do seu rosto ficou diferente, e sua vestimenta, branca fulgurante” (v. 29). Deste modo, Lucas faz uma antecipação das aparições do Ressuscitado.

Como nos demais sinóticos, os dois homens que aparecem conversando com Jesus são identificados como Moisés e Elias. Moisés foi o grande mediador entre Deus e seu povo. Segundo a tradição bíblica, sem Moisés, o povo de Israel e sua religião não teriam existido. Elias, por sua vez, foi o profeta que salvou essa religião em seu maior momento de crise. Sem Elias, toda a obra de Moisés teria caído por terra. O encontro dos três revela que Jesus dá continuidade ao projeto de liberdade, fraternidade e justiça iniciado por Moisés e atualizado por Elias e pelos demais profetas.

Outro detalhe exclusivo de Lucas é o assunto da conversa entre os três homens: “Falavam do êxodo de Jesus, que estava para consumar-se em Jerusalém”. Várias edições da Bíblia traduzem a palavra grega êxodos por “morte”. Esta, no entanto, é uma tradução (e interpretação) errônea. Na verdade, este “êxodo” é a passagem de Jesus deste mundo para o Pai, isto é, a ascensão. Isso condiz plenamente com o conjunto do Evangelho de Lucas, o único a narrar a subida de Jesus aos céus, relato repetido e ligeiramente modificado no início dos Atos dos Apóstolos (At 1,9-11). O termo “êxodo”, no AT, é ligado diretamente a Moisés, que conduziu Israel para a liberdade e para a Terra Prometida. Por outro lado, também Elias fez seu êxodo pessoal e foi levado aos céus, conforme o espetaculoso relato de 2Reis 2. Por todas essas ligações com o AT, Lucas serve-se da palavra “êxodo” para definir a missão de Jesus junto ao seu povo.

Em Lucas, somente quando Moisés e Elias vão se afastando é que Pedro intervém e chama Jesus de epístatēs. Esta palavra, exclusiva de Lucas em todo o NT, equivale a “chefe, superior” e, portanto, acentua o sentimento de respeito e admiração. No Terceiro Evangelho, ela aparece sempre nos lábios dos discípulos (5,5;8,24.45;9,33.49) ou de suplicantes (17,13). Mesmo tratando Jesus com tanta deferência, tal como nas versões de Marcos e Mateus, Pedro não sabe o que diz: ele só pensa em eternizar aquela situação de algum modo celestial.

“Façamos três tendas: uma para ti, uma para Moisés e uma para Elias”. A proposta de colaboração de Pedro coloca Jesus e seu projeto messiânico na linha dos projetos de libertação do AT: sob Moisés, a libertação de Israel veio com a morte dos inimigos; Elias, literalmente, ardia de zelo reformador e violento. Pedro vê na manifestação uma oportunidade de colocar a missão de Jesus a serviço de ideais de violência e poder na restauração de Israel. Nesta perspectiva, compreende-se mais profundamente por que Lucas afirma que Pedro falava assim “sem saber o que dizia”.

Dá-se então a teofania: “formou-se uma nuvem e os envolvia; então temeram ao entrarem na nuvem”. Deus se manifesta na nuvem e nas palavras. A nuvem é símbolo da presença divina (Ex 40,34-38). As palavras de Deus recordam as do batismo: “Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo” (Lc 3,22). Agora as palavras não se dirigem a Jesus, mas aos três discípulos: “Este é o meu Filho escolhido. Ouvi‑o”. Lucas muda “amado” para “escolhido”, e acrescenta: “Ouvi‑o!”

A ordem dada pelo Pai está diretamente relacionada às palavras anteriores de Jesus, sobre seu próprio destino (Lc 9,22) e sobre o seguimento e a cruz de seus discípulos (Lc 9,23-27). Ou seja, o episódio da transfiguração não é contado para falar de um Jesus esbanjando raios de luz, mas para motivar os discípulos ao seguimento: “Se alguém quiser me seguir, tome a sua cruz dia após dia e siga-me” (Lc 9,23). Assim como acontece com Jesus, o destino da comunidade fiel não é o fracasso, mas a glória. A voz de Deus que continua ecoando do céu ensina-nos que seguir Jesus não é loucura, mas a atitude mais coerente com o Plano de Deus.

 

 

 

Primeiro Domingo do Tempo Quaresma

Dia 06 de março de 2022

Primeira Leitura: Dt 26,4-10

Segunda Leitura: Rm 10,8-13

Salmo: 90,1-2.10-15

Evangelho: Lc 4,1-13

 

O Evangelho 

O texto de Lc 4,1-13, mais que uma crônica histórica, deve ser lido, como uma interpretação teológica da pessoa de Jesus à luz do AT. Ninguém pode ficar 40 dias sem comer e só depois sentir fome. Jesus que era igual a nós, em tudo, menos no pecado (Hb 4,15), não suportaria todo este tempo sem se alimentar. O número 40 lembra os quarenta anos no deserto (Ex 16ss), como também Moisés no monte (Ex 24,18; Dt 9,9). As tentações não são um fato ocorrido num determinado dia. Antes, estamos diante de um fato teológico que recapitula a história do AT na pessoa de Jesus. Onde o velho Israel falhou, Jesus permaneceu fiel. Certamente ele não foi tentado uma única vez, mas como todos os seres humanos, enfrentou esta realidade durante toda a sua vida.

No batismo (Lc 3,21-22), Jesus refaz a caminhada do antigo povo que passou o Mar Vermelho (Ex 14). Nesta caminhada, como outrora, acontecem as tentações:

A primeira tentação lembra a fome e o maná do povo no deserto (Ex 16). Transformar pedra em pão é ter acúmulo de alimentos. Portanto, não se trata de fazer uma mágica, ou milagre. O antigo povo acumulou o maná que apodreceu (Ex 16,20). Jesus fiel a Deus, não quis acumular comida, pois ela é de todos. Ele, como ser humano (Jo 1,14), sentiu o que todas as pessoas sentem: garantir seu próprio bem-estar. Porém, ele colocou a vida de todos acima de seus interesses pessoais. Fidelidade a Deus não comporta egoísmo.

A segunda tentação, ser dono do mundo, também encontra paralelo no povo do deserto (Ex 18), quando Moisés se tornou um novo faraó, acumulando o poder, tornando-se assim opressor, pois sempre que um só manda, ou decide a sorte de todos, a opressão e as injustiças, começam. Jesus poderia dominar devido à sua lucidez e espírito de liderança, pois até queriam torná-lo rei (Jo 6,15). Mas se assim agisse estaria na lógica do opressor, que ele contradisse (Mc 10,42-45). Jesus quer nova maneira de exercer o poder, isto é, que todos participem, pelo servir (Jo 13,1ss).

A terceora tentação reflete o bezerro de ouro (Ex 32). É o desejo de ter um deus fácil. Ao invés de se tornar servo de Deus, deseja Deus como seu servo para satisfazer seus interesses pessoais. É a ilusão de uma religião sem compromissos.

Estas três tentações marcam a história da humanidade: acúmulo de comida, acúmulo de poder e uma religião alienada, um deus do tamanho dos interesses dos fiéis. Hoje, muitos males que afligem o mundo têm suas raízes nestas três tentações: O acúmulo de bens que causa a fome dos menos favorecidos: salários exorbitantes que oneram o erário público e salários de fome para a maioria. A ânsia de domínio dos coronéis de certos partidos que compram seus eleitores, para depois impor seus interesses. O pior é que, em todas igrejas, numas mais, noutras menos, se prega um evangelho sem compromisso. Ou seja, se reduz a mensagem de Jesus a milagres, a fenômenos carismáticos, a moralismos, sem se importar com as injustiças sociais. Ou melhor, até se foge de tudo que aponta para a justiça social. Desta forma, as pessoas se iludem de serem muito religiosas, mas fogem dos compromissos da fé, transformando Deus, num ídolo.

Relacionando com as outras leituras

Dt 26,4-10: a memória da história do povo está na mente dos fiéis que nunca esquecem de que foi Javé que os libertou e deu terra. Isto resultou no credo histórico que era repetido todos os anos, ao colher os primeiros frutos. Assim, sempre se lembra que tudo vem de Deus e a ele pertence. Os frutos oferecidos depois eram doados aos levitas, estrangeiros, órfãos e viúvas (vv.11-13). Deus é honrado pela gratidão, pela profissão de fé, pela adoração, mas principalmente pela partilha com os pobres. Todo culto adquire sentido, quando resulta em partilha com os menos favorecidos.

Rm 10,8-13: o credo cristão central é que Deus ressuscitou Jesus dos mortos, por isto, ele é o Senhor. Tal fé proclamada leva à universalidade: todos, judeus e gregos encontram em Deus o generoso salvador.

SUBSÍDIOS EXEGÉTICOS

LITURGIA DOMINICAL – ANO C

 

 

Oitavo Domingo do Tempo Comum
Dia 27 de Fevereiro de 2022
Primeira Leitura: Eclo 27,5-8
Segunda Leitura: 1 Cor 15, 54-58
Salmo: 92/91,2-3.13-16
Evangelho: Lc 6, 39-45

 

O Evangelho

O Evangelho segundo Lucas, ou “Evangelho para Teófilo”, assim como o Livro de Atos, tem o objetivo explícito de oferecer para as pessoas que se aproximavam ao cristianismo no final do século 1º, uma base “práxica” (isto é, da mensagem feita prática), daquilo que Jesus tinha significado (como realização das promessas ao Povo de Deus), o que tinha feito e anunciado (a partir da pregação de João Batista e a nova esperança gerada pela Cruz-Ressurreição). Neste Domingo estamos na parte do Evangelho dedicada ao que podemos chamar de “Atitudes de Jesus” (4,14-7,7). No momento em que este Evangelho foi sistematizado, a cidade de Jerusalém já tinha sido totalmente destruída (em 70 d.C.) e a fé cristã mostrava-se como o caminho para superar a violência, a desigualdade, a morte, a perseguição. Mas era preciso mostrar isso na prática. Teófilas e Teófilos deviam ser agentes de transformação e esperança para todas as outras pessoas. A partir daí é que devemos entender questionamentos como: “Como pode um cego, guiar outro cego?” (Lc 6,39).

O texto em si

O texto segue um conjunto de questionamentos, que é um recurso pedagógico para analisar a realidade: “Se vocês amam quem ama vocês, que recompensa terão? Também os pecadores amam quem lhes ama” (Lc 6,32); “Se emprestam para quem esperam receber, que recompensa terão? (Lc 6,34). No entanto, no versículo 39 se dá uma ênfase ao afirmar: “E lhes disse uma parábola…”. Na verdade o que se apresenta aqui é um método de avaliar a prática evangélica. A parábola anunciada só está no final: “É semelhante a um homem que edificou sua casa…” (Lc 7,48s). A parábola esta retirada da tradição de Mateus (7,22-29) onde também se insta à práxis do Evangelho. Lucas vai resumir a introdução de Mateus 7,22-24a, enfatizando de forma mais genérica a práxis evangélica com a frase: “Porque me chamam ‘Senhor, Senhor” se não fazem o que lhes digo?” (Lc 7,46).

Mas, de onde vem o conjunto de afirmações que estão em Lc 7,39-45? A afirmação do versículo 39 sobre “cego guiando cego”, encontra paralelo na tradição de Mateus (15,14); o versículo 40 onde se questiona se o discípulo pode ser maior que o mestre está em Mt 10,24; a hipocrisia de olhar a trave no olho de irmãos ou irmãs, nos versículo 41-42, está em Mt 7,3-5 (copiada quase que literalmente); e o critério de conhecer a árvore pelos seu frutos, nos versículo 43-44; está em Mt 7,16-18, ou pode ser de Mt 12,33; finalmente a afirmativa sobre o coração humano, está em Mt 12,35. Seriam estes pequenos trechos (chamados logia) recolhidos tanto pela tradição de Mateus e por Lucas? O fato é que Lucas os juntou em um só lugar. Por quê?

Lucas parece aplicar – como no caminho de Emaús – o método “ver, julgar e agir”. Primeiro apontando para o problema de não ver a realidade e a necessidade de perceber o contexto (v.39). O julgar aparece com a crítica a quem pretende ser mais que o mestre, quem julga as outras pessoas de forma preconceituosa e carece de autocrítica, quem não consegue avaliar os frutos de quem age em favor da maldade, ou de quem destila do coração palavras violentas, preconceituosas, ou ternas e cheias de bondade (v.40-45). O agir é apresentado a partir da crítica de quem acha que apenas falar “em Deus” ou “no Senhor” é suficiente para alicerçar a prática do Evangelho.

Relacionando com as outras leituras

Na leitura de Eclesiástico ou Sirácida, que tem a mesma preocupação pedagógica que Lucas, aparece a pergunta: “A quem foi revelada a raiz da sabedoria” (Eclo 27,6). De fato, Jesus revela uma sabedoria radical, que emerge da raiz, baseada no olhar aberto e profundo da realidade, o julgamento autocrítico e livre de preconceitos e a relação coerente entre o que se diz e o que se faz. O apóstolo Paulo usa da pergunta: “Onde está, ó morte, teu aguilhão? Onde está. ó reino dos mortos/hades/inferno, tua vitória?” (1 Cor 15,55). De fato, a sabedoria da morte-ressurreição permite um novo olhar e uma nova prática, onde o medo e morte não são mais as que motivam ou movem nossa prática, mas sim o poder da vida.

 

SUBSÍDIOS EXEGÉTICOS

LITURGIA DOMINICAL – ANO C

Sétimo Domingo do Tempo Comum

Dia: 20 de fevereiro de 2022
Primeira Leitura: 1Sm 26,2.7-9.12-13.22-23
Salmo: 103/102,1-2.3-4.8.10.12-13
Segunda Leitura: 1Cor 15,45-49
Evangelho: Lc 6,27-38

 

O corpo central do discurso tem como tema o mandamento do amor ilimitado. É uma composição parenética, que devido à precisão da forma e da estrutura parece um poema didático, com cunho sapiencial. As frases se sucedem na forma de dísticos perfeitamente equilibrados, de acordo com a lei do paralelismo bíblico.

É possível distinguir duas unidades literárias: v.27-35: o mandamento do amor universal; v.36-38: a prática da misericórdia na vida comunitária.

v.27-31 abre com as palavras: “Mas eu digo a vós que me escutais”. Esta frase, que marca um afastamento dos quatro “ai de vós” anteriores, expressa a autoridade do ensino que Jesus está prestes a propor. Os ouvintes são todos aqueles nomeados no v.17. O mandamento do amor é marcado por quatro imperativos: amem, façam o bem, abençoem, rezem (v.27-28). O tema dominante é destacado na primeira prescrição: “Amai os vossos inimigos”, que, como é explicado imediatamente, são aqueles que odeiam, amaldiçoam, caluniam. Não se trata apenas de adversários externos, hostis aos cristãos, mas também de inimigos pessoais internos comunidade. Jesus ordena aos discípulos e discípulas que respondam ao ódio com o bem, à maldição com bênção, à calunia com a oração.

Ao mandamento do amor, formulado com os quatro imperativos (v.27-28), Jesus menciona quatro exemplificações referindo-se a uma atitude mais profunda, que vem do coração, a fim de destacar a disposição de responder ao mal com o bem (v.29-30). “A quem te bater numa face, oferece também a outra” (v.29a). O/A discípulo/a deve estar disposto/a a não reagir à ofensa, mas sim receber uma ainda maior. “e a quem tomar o teu manto, não impeças de levar também a túnica”. Lc inverte a ordem de Mt. A expressão, no entanto, resulta mais lógica para o leitor helenístico: quem segue Jesus é convidado/a a dar também sua túnica a quem leva seu manto externo. Jesus, portanto, inculca a renúncia até mesmo aos próprios direitos e a não resistir ao mal com o mal. “Da a todo aquele que te pedir e não reclames de quem tirar o que é teu” (v.30).

A linguagem de Jesus é paradoxal e não deve ser entendida em um sentido regulatório. Ele não quer ditar regras de comportamento, mas indicar a atitude profunda do/a discípulo/a, que deve estar disponível a amar sempre, mesmo aqueles que o prejudicam. Obviamente não se trata de um mero sentimento de simpatia, mas de uma firme disposição para cumprir o preceito fundamental de evangelho, que envolve não apenas suportar o inimigo, mas o compromisso ativo de fazer o bem a ele. Com este amor universal e desinteressado é a realidade do reino que irrompe no mundo, para libertar a humanidade do egoísmo e do ódio.

A regra de ouro (v.31) conclui este primeiro ponto: a lei do amor não se limita a excluir o mal, mas implica diligência para fazer o bem ao próximo. Este ditado, relacionado à sabedoria, não deve ser considerado como um regateio. É o bem dos outros que é desejado. A reciprocidade deve ser entendida como objeto de esperança.

v.32-35. Destaque para o tom sapiencial do discurso. É composto por três proposições no modo condicional (v.32-34), que ilustram com outros exemplos como o/a discípulo/a com prática de amor ilimitado não busca seu próprio interesse e a retribuição, mas imita a bondade gratuita de Deus. Deste modo, o amor cristão assume uma especificidade diferente da “profana”, na medida em que não se volta sobre si mesmo, ele não faz cálculos: ele ama primeiro sem esperar retorno, e então se mostra semelhante ao amor de Deus para com o ser humano.

O logion final (v.35) é uma sentença normativa, formulada de forma quiástica, que sintetiza o sentido dos três exemplos anteriores e relembra, a título de inclusão, o tema fundamental enunciado no início da perícope (v.27). Apenas imitando a bondade universal de Deus, os discípulos e discípulas se tornam “filhos do Altíssimo”, porque “Ele é bondoso para com ingratos e maus” (v.35). Egoísmo não deve obscurecer a prática do amor autêntico: quem segue Jesus pratica um amor original e criativo que expressa a essência do evangelho, permitindo irradiar no mundo a misericordiosa bondade de Deus.

Os versos finais ilustram a prática de misericórdia, por meio do perdão (v.37) e a partilha de bens (v.38). Do tema do amor universal, passamos agora às normas evangélicas sobre conduta do/a discípulo/a nas relações interpessoais dentro da comunidade. O agrupamento de frases nos v.37-38 constitui um desenvolvimento do v.36; e são introduzidos com quatro verbos imperativos (dois negativos e dois positivos).

“Não julgueis…” (v.37) não tem um sentido legal, mas refere-se ao comportamento normal na vida diária que não deve criticar o próximo. “Não condeneis…”: Jesus comanda evitar avaliação negativa e estar aberto ao perdão (“perdoai…”) por ofensas pessoais, em imitação do Pai, que mostra misericórdia para com todos. Os três verbos no passivo krithēte, katadikasthēte, apolythēsesthe (não sereis julgados, … condenados, sereis perdoados) implicam Deus como agente.

“Dai e vos será dado…” (v.38):  a imitação do Deus misericordioso exige não só (negativamente) o perdão (v.37), mas também (positivamente) o dar.

A 1ª. Leitura, com os eventos relacionados a Davi e Saul, faz ver concretamente a magnanimidade de quem experimenta no cotidiano a presença do Senhor.

Sexto Domingo do Tempo Comum
Dia: 13 de fevereiro de 2022
Primeira Leitura: Jr 17,5-8
Salmo: 1,1-2.3.4.6
Segunda Leitura: 1Cor 15,12.16-20
Evangelho: Lc 6,17.20-26

O Evangelho de hoje pertence ao assim chamado “Sermão da Planície” (Lc 6,17-49), que equivale ao “Sermão da Montanha” de Mt 5–7. No trecho que lemos na liturgia, temos a versão lucana das bem-aventuranças. A palavra grega para “bem-aventurança” é macarismo. Trata-se de um anúncio de felicitação no qual se afirma que um determinado modo de viver faz com que a pessoa mereça ser feliz.

A bem-aventurança é um gênero literário bem conhecido na Bíblia, muito usada pelos profetas e pelos sábios: Is 30,18; 56,2; Dn 12,12; Pr 3,13; 8,34; Ecl 10,17; Sl 1,2; 2,12 ;17,5; 32,1.2; 40,5.

Há dois tipos de bem-aventurança. O primeiro é a bem-aventurança breve: apenas elogia um tipo de comportamento. Assim em Sl 2,12 e Ap 19,9. O segundo é a bem-aventurança longa: após elogiar o comportamento, explica qual a alegria que aquele comportamento trará. As bem-aventuranças do evangelho de hoje são do segundo tipo: os pobres são felizes, não porque são pobres, mas porque “deles é o Reino de Deus”; os famintos são felizes, não porque são famintos, mas porque serão saciados, e assim por diante.

A expressão “Reino de Deus” (v. 20) refere-se à realidade totalmente nova que tem início com a comunidade dos discípulos e das discípulas de Jesus. Esta realidade nova se prolonga na história até o fim dos tempos e tem sua plenitude na eternidade. Portanto, o/as discípulo/as ou fiéis são declarados felizes pelo seu encontro com a salvação de Deus que se revelou em Jesus (Lc 10,23-24; 11,27-28). Assim, não se trata de felicitação abstrata nem de um desejo de piedade religiosa, mas de uma declaração solene, feita com a autoridade e a força do Deus que age na história para efetuar sua justiça.

No Evangelho, os “bem-aventurados” são os pobres, os famintos, os aflitos, os perseguidos. Mas quem são estes? Segundo o termo bíblico, são os anawim, pessoas privadas de segurança material e social. É preciso repetir e salientar que tais pessoas não são “bem-aventuradas” por sua condição social precária, mas porque, com Jesus, Deus toma a defesa dos pobres, faz justiça a quem está privado dela, oferece uma esperança e um futuro a quem se acha sem futuro e sem esperança. Repetindo, os pobres são bem-aventurados, não porque são pobres, e sim porque deles é o Reino de Deus…

Em outras palavras, as “bem-aventuranças” de Jesus não abençoam nem consagram a situação dos pobres, dos famintos ou dos aflitos como condição ideal para acolher o Reino de Deus. Isto é, a pobreza, aqui, não deve ser tomada como consequência da renúncia aos bens materiais. Ler o texto do evangelho desta forma equivale a tornar-se cúmplice da injustiça e da prepotência humana. Aliás, a continuação do trecho lido hoje vai exatamente na direção de desmascarar tudo o que é egoísmo e falta de solidariedade. Lucas (e somente ele) acrescenta o contrário das “bem-aventuranças”. É o assim chamado “ai”, que pode ser considerado uma “mal-aventurança”. Trata-se de outro tipo de declaração, também frequente na Bíblia, caracterizado pela denúncia de um comportamento contrário à vontade de Deus e, normalmente, seguido do castigo correspondente: ruína, derrota na guerra, empobrecimento etc.

O “ai” ou “mal-aventurança” tem suas raízes nos cantos fúnebres, para lamentar a morte de uma pessoa, principalmente se a morte foi trágica. Assim, por exemplo, em 1Rs 13,30. Nos profetas, o “ai” é o principal modo de decretar a condenação de uma pessoa, de um grupo de pessoas ou de toda uma nação. Em Isaías 5, temos seis “ais” contra vários grupos que promovem e enriquecem com as injustiças. Por exemplo, Is 5,8-9: “Ai dos que acrescentam casas a casas [...] suas muitas casas serão reduzidas a ruinas”.

No evangelho de hoje, nos vv. 24-26, lemos quatro “ais”. Devemos notar que esses “ais” são exatamente o reverso das “bem-aventuranças” dos vv. 20-22: “bem-aventurados vós, os pobres” X “ai de vós, os ricos” (vv. 20 e 24); “bem-aventurados vós, os que agora passais fome” X “ai de vós, os que agora estais saciados (vv. 21 e 25), e assim por diante.

Diferentes da bem-aventuranças de Mateus, que são dirigidas na terceira pessoa (“aqueles que”), as bem-aventuranças (bem como os ais) de Lucas são dirigidas na segunda pessoa (“vós”). Além disso, há outra grande diferença, que fica bem evidente quando fazemos o confronto com os “ais”. Mateus é mais espiritual: “os pobres em espírito”; “fome e sede de justiça”; Lucas é bem concreto: “vós, os pobres (de recursos financeiros)”, “vós, os que agora passais fome (de comida)”.

Por outro lado, as “mal-aventuranças” não são maldições! A melhor interpretação é que são lamentações que trazem embutidas acusações e o anúncio do castigo. Muitas vezes, elas funcionam como um convite à conversão ou à mudança radical. Por isso, na boca de Jesus, as “mal-aventuranças” de hoje são uma advertência para a comunidade cristã: que ninguém se iluda com o sucesso fácil, a fama, o prestígio e a vida sem compromisso.

Em resumo, tanto as “bem-aventuranças” como as “mal-aventuranças” são um convite urgente dirigido à comunidade dos discípulos e das discípulas, para que se confrontem seriamente com a alternativa proposta por Jesus: ou com os “pobres”, para o Reino de Deus; ou com os ricos, na ilusão que leva à falência. Depois das bem e das mal-aventuranças, não há mais lugar para uma neutralidade tranquila ou uma falsa consciência cristã.

 

Quinto Domingo do Tempo Comum
Dia 06 de fevereiro de 2022
Primeira Leitura: Is 6,1-2a.3-8
Salmo: 138/137,1-2a.2c-3.4-5.7c-8
Segunda Leitura: 1Cor 15,1-11
Evangelho: Lc 5,1-11

 

O Evangelho

O texto de Lc 5,1-11 tem um paralelo próximo em Jo 21,1-11: a pesca milagrosa. De forma um pouco mais distante, tratando da vocação de Pedro e companheiros, tem paralelos em Mt 4,18-22 e Mc 1,16-20. Nestes dois últimos relatos se fala do chamado e dos barcos, mas não da pesca milagrosa. Com base em Jo 21,1-11, julgam alguns biblistas, que a perícope de Lc 5,1-11, na realidade, também reflete um fato pós-pascal que foi antecipado na história por motivos próprios de Lucas. O barco de Pedro é uma figura da Igreja que recebe o envio em missão: pescar homens. É nesta barca que se chama pessoas não perfeitas para assumir o compromisso e isto acontece, não nas sinagogas, nas liturgias, mas no mundo do trabalho. Destaca-se, também, o carisma de Pedro, com o ministério de coordenar esta missão, ouvindo a voz do mestre e sendo obediente a ela.

O presente relato relê a vocação de Pedro e de seus companheiros à luz da vocação de Isaías (6,1-8). Tanto o profeta como Pedro e os outros apóstolos fazem a experiência de Deus. Isaías no templo, pois era este seu mundo; Pedro e os companheiros, no lago, pois eram pescadores. Deus entrou na vida de cada um no seu próprio local de trabalho. Ambos, surpreendidos pela ação de Deus, reagem: Isaías se considera impuro, Pedro se sabe pecador e ambos se sentem inaptos. Mas depois da experiência da ação de Deus, mudam sua postura, assumem a vocação. Pedro tem a mesma reação de Isaías diante da ação de Deus que aqui se manifesta na pessoa de Jesus. Ambos se sentem indignos, mas ambos estão prontos a responder positivamente à vocação. Isaías diz: “Aqui estou! Envia-me (Is 6,8). Pedro e seus companheiros: “deixando tudo, eles o seguiram” (Lc 5,11).

Isaías e Pedro, assim como toda a Igreja, são chamados por Deus para a missão. Para tanto deve-se ouvir as palavras e orientações do mestre, mais do que confiar nas intuições humanas. Pedro era pescador experiente. Sabia que o tempo propício para a pesca era de noite. A ordem de Jesus lhe parecia sem sentido, mas diz: “confiando na tua palavra, eu vou lançar as redes” (Lc 5,5). Ou seja, a missão dos discípulos, quando apenas baseada na sua própria intuição, se torna estéril (pescaram a noite toda, sem nada conseguir – 5,4); ouvindo, porém, de forma obediente a palavra de Jesus, o milagre acontece. Reconhecendo a grandeza de Deus e a pobreza humana, está preparado o ambiente da vocação. Falta ainda a decisão: apesar da imperfeição dos chamados, a missão acontece como dom de Deus que os discípulos assumem na liberdade.

Todas as pessoas batizadas são vocacionadas, mas para que esta vocação se torne efetiva, precisam fazer a experiência da transcendência de Deus, como Isaías, como Pedro, Tiago e João. Precisam se dar conta de que a vocação vem dele e que só obedecendo as ordens divinas, podem realizar a missão, apesar de suas limitações. Isto exige discernimento e prontidão para se pôr a caminho. Isaías, depois da vocação, se tornou o grande profeta entre seus contemporâneos; Pedro e seus companheiros, deixaram suas barcas para seguir o mestre e levaram o evangelho aos povos de então.

Relacionando com as outras leituras

Is 6,1-8: Isaías fez experiência da transcendência de Deus no templo e ao mesmo tempo, reconheceu seu pecado, bem como o pecado do povo, do qual ele fazia parte (lábios impuros Is 6,5). A base de toda vocação é a profunda experiência de Deus e o conhecimento de si mesmo. Quem não experimentou a Deus e nem reconhece sua fraqueza, não desperta para o verdadeiro chamado.

1Cor 15,1-11: Paulo faz aqui o relato central da fé cristã: a ressurreição de Cristo e, por conseguinte, a ressurreição de todas as pessoas. Em Corinto se admitia a imortalidade da alma, mas havia um desprezo pelo corpo. Assim, acreditava-se na sobrevivência espiritual, mas não se admitia a ressurreição da carne. Ora, isto contradizia o dogma central da fé cristã: Cristo ressuscitou e esta é a garantia da ressurreição de todos. Nesta fé está toda a esperança cristã. Dali nasce também a vocação de Paulo.

 

Responsável por este trabalho

    Xavier Cutajar

            xacute@uol.com.br       http://xacute1.com

 

 

 

 

 

 

 

 

Salmo: 145, 7-10

Pe Gilvan – REFLEXÕES LITÚRGICAS

sábado, maio 9th, 2020

REFLEXÕES de Pe. Gilvan  Leite  de  Araujo

17º Domingo do TC Ano C 2022

Pe. Gilvan Leite de Araujo

1ª Leitura: Gn 18,20-32

Após a visita à tenda de Abraão, Deus decide visitar Sodoma e Gomorra para destruí-la, tendo em vista a maldade que se acumulara sobre estas cidades. Contudo, em Sodoma se encontro um justo, que é justamente Ló, que também receberá “Deus” em sua tenda servindo e protegendo-o.

Na narrativa de hoje o tema central está justamente na “oração de intercessão”. Mais exatamente, Abraão intercede pedindo em favor de Sodoma e Gomorra para que não sejam destruídas, caso nela se encontre nem que seja dez justo. Deus encontrará apenas a família de Ló, que será poupada, mas as cidades serão destruídas por causa de sua maldade.

O Sl 137(138) apresenta o tema da intercessão, como uma forma de oração elevada a Deus que está em relação com a 1ª Leitura.

2ª Leitura: Cl 2,12-14

O tema central da narrativa de Colossenses é o da redenção, no qual Jesus é apresentado como o redentor. Leva-se em conta que Jesus Cristo, por sua paixão, morte e ressurreição é apresentado como salvador e redentor. No primeiro caso, encontra-se um viés cultual, ou seja, Jesus é o Cordeiro Imolado, sacrificado em favor de muitos, no segundo caso, ou seja, enquanto redentor, Jesus deu a sua própria vida em resgate por nós, aquilo que Paulo dirá: “Alguém pagou alto preço pelo vosso resgate” (1Cor 6,20). Tal pressuposto está claro na declaração de Paulo: “Existia contra nós uma conta a ser paga, mas ele a cancelou, apesar das obrigações legais, e a eliminou, pregando-a na cruz” (Cl 2,14).

Portanto, quando Jesus se entrega na cruz, derramando seu sangue, ele nos resgata, anulando o débito que existia contra nós.

Evangelho: Lc 11,1-13

A narrativa apresenta o tema da oração, em particular do Pai Nosso, segundo a ótica lucana. No Evangelho de Lucas, antes dos grandes momentos, encontramos Jesus em oração. Assim, toda a vida de Jesus é perpassada pelo profundo diálogo com o Pai. Desta intimidade orante é que surgirá o Pai-Nosso.

A narrativa apresenta parte da oração do Pai-Nosso e, na sequência, Jesus desenvolve o tema da oração de súplica.

Sobre a Oração do Pai-Nosso, existe a versão mateana (Mt 6,9-13) e a versão lucana (Lc 11,2-4). As duas narrativas possuem a seguinte estrutura geral:

I. Duas Partes:

1) Louvor

2) Súplicas

II. Cada parte é composta por quatro referências:

1) Louvor:

a) Pai Nosso que estais nos céus;

b) Santificado seja o vosso nome;

c) Venha o teu Reino;

d) Seja feita a vossa vontade

2) Súplicas:

a) Dar o pão a cada dia;

b) Perdoar as ofensas;

c) Não deixar cair em tentação;

d) Livrar do mal

III. Base teológica

A oração do Pai-Nosso está em relação com a tentação do deserto. Assim, o diabo tenta Jesus a partir da sua missão enquanto messias, ou seja, a atividade messiânica pressupõe saciar a fome dos povos, estabelecer o reinado de Deus e manifestar a Glória de Deus. O diabo, como facilitador, propõe que Jesus use o seu “poder” em proveito próprio: saciar a sua fome, estabelecer o seu reinado e manifestar a sua glória.

Na oração do Pai-Nosso se reconhece o senhorio de Deus, ao mesmo tempo no qual nos comprometemos com o projeto de Jesus de estabelecer o Reino de seu Pai, no qual se manifeste a sua glória. Invocar o Nome de Deus (cr. 1Rs 8) é ter a certeza de que Ele está, de fato, entre nós e trabalhamos corroborando com a santidade do seu Nome. Para que isto aconteça, pedimos que ele nos conceda o pão, o perdão e a libertação do diabo. Portanto, a oração do Pai-Nosso é, por natureza, uma oração de compromisso.

Síntese

Na 1ª Leitura a liturgia nos apresenta o tema da Oração de Intercessão, no Evangelho o tema da Oração de Súplica e na 2ª Leitura o tema da Redenção. O Sl 137(138) desenvolve o tema da eficácia da oração: “ouvistes as palavras dos meus lábios… fizestes muito mais do que prometestes… vós me escutastes”.

Segundo Teofane, O Recluso, a essência da oração é manter-se firme diante de Deus e caminhar na sua presença. Assim, é que encontramos sempre Jesus diante do Pai em oração. De fato, encontramos Jesus em oração no seu batismo (Lc 3,21); no deserto (Lc 5,16); na montanha, antes da escolha dos 12 apóstolos (Lc 6,12); sobre o monte Tabor, antes da transfiguração (Lc 9,28-29), antes de ensinar o Pai Nosso aos apóstolos (Lc 11,1). Jesus que estava sempre na intimidade com o Pai convida a rezar constantemente (Lc 18,1-7).

O tema da oração, na Bíblia, tem a sua referência em 1Timóteo: “Eu recomendo, pois… que se façam pedidos, orações, súplicas e ações de graças, por todos os homens, pelos reis e todos os que detêm a autoridades a fim de que levemos uma vida calma e serena, com toda piedade e dignidade” (1Tm 2,1-2).

Paulo apresenta, assim, as quatro características da oração cristã: “suplicas, oração, intercessões e ações de graças [deh,seij proseuca.j evnteu,xeij euvcaristi,aj]” que Teofane explica como: a) oração corporal ou vocal, b) oração mental; c) oração do intelecto ou do coração ou somente do coração ou do sentimento; e, d) oração espiritual ou contemplativa.

Paulo afirma que devemos suplicar, orar, interceder e dar graças “…por todos os homens, pelos reis e todos os que detêm autoridade, a fim de que levemos uma vida calma e serena, com toda piedade e dignidade; pois é bom e aceitável diante de Deus, pois ele quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade”. Nesta perspectiva, a oração é, também, ato de amor e misericórdia.

Em síntese: o eixo central da liturgia deste domingo é a comunidade orante que se empenha em ser santa, como Deus é Santo. Enquanto a 1ª Leitura apresenta o tema da oração de intercessão, a 2ª Leitura desenvolve o tema do Cristo Redentor, que torna eficaz e possível a nossa oração, chegando ao Evangelho no qual estabelecemos um compromisso com o Senhor, para que o Reino de seu Pai aconteça.

16º Domingo do TC Ano C 2022

Pe. Gilvan Leite de Araujo

            As leituras situam a presença Deus visitando. Curiosamente, não é Deus que serve, mas é servido por aqueles que visita. Os Anjos do Senhor são servidos por Abraão e Sara e no Evangelho, Jesus é servido pelos irmãos de Betânia.

Nas duas visitas resultará em bênçãos: Isaac nascerá e Lázaro ressuscitará. Mas, anterior a promessa está a acolhida dos hóspedes “divinos”.

1ª Leitura: Gn 18,1-10a

A narrativa apresenta a visita “do Senhor” através de “três homens de pé”, que são recebidos como “Meu Senhor” (Adonai). Tal encontro entrará para a tradição de Judaica, Cristã e Islâmica como a visita de Deus à casa de Abraão e Sara. Na sequência do livro do Gênesis, os “três homens” visitarão a casa de Ló, os quais serão, também, servidos e protegidos, principalmente quando os homens da cidade de Sodoma rodeiam a casa de Ló para abusar dos hospedes.

A acolhida de Abraão e Sara resultará na promessa de um filho no prazo de um ano.

O eixo centro das duas narrativas é Deus que visita os seus “amigos”. Mas, tal visita parte da disponibilidade amorosa divina (=estar com os seus) e são acolhidos e servidos. Tal predisposição para receber com amor “O Senhor” em sua casa resultará numa promessa: Abraão terá um descendente e Ló terá a sua vida e de sua família poupada.

2ª Leitura: Cl 1,24-28

Na 2ª Leitura, Paulo exorta os colossenses sobre a sofrimento em favor de Cristo, como sinal de solidariedade à Igreja. Observa-se que, para Paulo, servir ao Senhor é estar a serviço da Igreja, cuidando e zelando por ela, não o contrário. A Igreja é amada, pois é o Corpo de Cristo. Portanto, viver a fé cristã pressupõe estar a serviço. Nisto se manifesta a presença do Espírito Santo como aquele que potencializa o batizado com seus dons, para que este se capaz de servir (1Cor 12-14). Além disso, o estar a serviço da Igreja não é uma função, apesar de se esperar que o batizado tenha as condições necessárias para exercer o seu ministério, mas uma experiência de amor. Tomo como um exemplo a missão de pai e mãe. Estes não fazem coisas para os filhos, mas os ama e são capazes de doar a própria vida em favor destes. Assim, servir a Igreja pressupõe a mesma condição.

Amar a Jesus, portanto, é estar à serviço da Igreja e dela cuidar para que o mundo seja salvo, a vida eclesial é condição necessária. Não existe autossalvação e muito menos “angelização”. A santidade cristã passa pelo processo de humanização, quem não se torna plenamente humana não pode ser santo. Compreende-se isto na pessoa de Jesus: Ele sendo Deus, não considerou a sua divindade para se esvaziou tornando-se humano até as últimas consequências (cf. Fl 2). Estar na Igreja é estar a serviço da salvação do mundo. Portanto, é entrar no coração do mundo com suas realidades próprias elevando tudo para o Senhor, arriscando a sua própria vida.

Assim, o eixo eclesial norteia esta narrativa. A Igreja, enquanto Corpo de Cristo, se apresenta como a amada que ama o seu amado e ambos são capazes de doar a vida pelo outro. A Igreja se torna a casa na qual a humanidade encontra o seu refúgio e sua segurança, como o é a casa de um pai e de uma mãe.

Evangelho: Lc 10,38-42

O Evangelho nos apresenta Jesus em Betânia na casa de Lázaro, Marta e Maria. Os três são os amigos de Jesus. Apesar de entrarem no consciente de forma doce e poética (= a casa de Betânia), não encontramos nenhum deles evangelizando nas narrativas evangélicas: Marta será aquela que professará Jesus: “eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus que vem ao mundo” (Jo 11,27); Maria será aquela que ungirá os pés de Jesus com “uma libra de um perfume de nardo puro, muito caro” (Jo 12,3) e Lázaro será ressuscitado pelo Senhor (Jo 11). Como se pode observar, os irmãos de Betânia são apenas os amigos amados de Jesus.

A narrativa lucana é, a primeira vista, desconcertante, ou seja, Marta é a típica dona de casa preparando as coisas para que todos possam comer; enquanto Maria, é a típica adolescente despreocupada “vagabundeando”. Se Marta ficar nos pés de Jesus e não preparar a refeição, ninguém comerá. Contudo, Jesus afirma que Maria escolheu a melhor parte. Como compreender isto? Além disso, esta narrativa foi muito utilizada para justificar a superioridade da vida contemplativa sobre a vida ativa. Certa fez um monge questionou Pacômio sobre que teria agradado à Deus: Moisés ao conduzir o povo pelo deserto ou Elias ao se refugiar na Montanha. Pacômio respondeu que não se podia fazer acepção entre um e outro, pois ambos agradaram à Deus.

Assim, se a questão não é sobre quem está certo, ou seja, Marta ou Maria, o que o evangelista deseja transmitir então? Vamos analisar a narrativa. Maria parou para escutar a Palavra do Senhor, enquanto Marta está apenas focada no “fazer coisas”. Jesus convida Marta a uma mudança de atitude, ou seja, sair do ativismo: “ocupada com muitos afazeres” (v. 40). Portanto, Jesus não está exaltando “o não fazer nada”, a) mas, aprender a administrar o tempo e b) acolher a sua presença em nossa vida.

Betânia é descrita em Lucas e João como o lugar no qual Jesus pernoitava quando se encontrava em Jerusalém. Assim, Betânia é lugar de repouso e de paz, de estar entre amigos. Além disso, se deve levar em conta que é o lugar, segundo a narrativa lucana, na qual Jesus ascende ao céu.

A cidade de Betânia e a casa dos três irmãos, no conjunto, são lugares do aconchego, da acolhida, do amor discreto e humano, que permite que tudo se eleve aos céus.

Síntese

A Casa de Abraão e a Casa de Lázaro, Marta e Maria se configuram como a casa da acolhida do Senhor. Lugar onde “O Senhor” se sente amado e protegido.

Em relação com a 2ª Leitura, a Igreja deve se tornar esta casa de acolhida e proteção da humanidade, conforme deve ser uma casa de pai e mãe. Tendo em vista que o próprio Jesus considerava o Templo de Jerusalém a casa de seu Pai (cf. Jo 2,16).

Além disso, os batizados não se tornam cristão para se fecharem num gueto de puritanos, mas como mártires que entram no coração do mundo para salvá-lo, como fez o seu Senhor. O próprio cristão é e deve ser igreja para a humanidade.

15º Domingo do TC Ano C 2022

Pe. Gilvan Leite de Araujo

1ª Leitura: Dt 30,10-14

No Deuteronômio, Moisés apresenta a Lei de Deus como algo acessível à Israel. Não se trata de meios etéreos, inacessíveis; mas, próximos e praticáveis, que dizem respeito à vida humana. Portanto, a Lei é algo possível para todo Israel e visa o bem da comunidade.

Os hebreus tendo saído do Egito como uma gente, ao atravessar o mar e estabelecer a Aliança e a Lei, se tornaram um povo (=Israel). Portando, a Aliança e a Lei visam o estabelecimento deste povo como uma sociedade bem-organizada. Além disso, a Aliança do Sinai pressupõe empenho mútuo (Deus e Israel). Efetivamente, Deus oferece a terra e Israel a si próprio. O não cumprimento das regras de Lei resultaria da perda do direito condicionado pela parte de quem a infringiu, o que será o exílio da Babilônia. Portanto, ser fiel à Lei e à Aliança é a condição de permanência na terra no período pós-exílico. É sobre esta radicalização que Jesus confrontará os fariseus e saduceus. Pois tal radicalização resultava em cerceamentos, exclusões sociais e tantas outras atrocidades em nome de Deus. O próprio Jesus será condenado pelos judeus, segundo os quatro evangelhos, por infidelidade à Lei. De fato, Israel irá criar tantas outras leis (=613) e preceitos complementares que tornará quase impossível a prática habitual. O excesso de leis e normas conduzirá a um isolamento social e será um impedimento que convívio com outras culturas. Leva-se em conta que Jesus proporá o processo contrário, ou seja, dos 10 mandamentos e demais normas, ele reduzirá tudo para duas: 1) amar a Deus e 2) amar o próximo, tornando todo o resto consequência natural destas.

Os grandes embates entre Jesus e os Judeus será justamente sobre a aplicabilidade e a flexibilidade da Lei, que fluirá entre a positividade e a filosofia desta.

Na tradição sapiencial primitiva de Israel, era considerado sábio aquele que conhecia a Lei. Tal perspectiva é perceptível no Quarto Evangelho: “… este povo [=galileus] que não conhecem a Lei, são uns malditos!” (Jo 7,49). Na tradição sapiencial posterior será considerado sábio aquele que reconhecerá a Deus como Senhor, conforme se pode visibilizar no Salmo. Contudo, se estabelece uma aproximação dos conceitos: “lembra e cumpre”, ou seja, a Lei é um bem a ser posto em prática em favor de todos, para que a vida seja garantida.

2ª Leitura: Cl 1,15-20

O hino de Cl 1,15-20 é um típico paulino do tipo batismal. Tais hinos tinham a função de catequese para os catecúmenos, pois através da memorização e recitação do hino a pessoa apreendia os fundamentos da fé cristã. Tal perspectiva é verificável no próprio capítulo: “desde o dia em que o ouvimos, não cessamos e orar por vós e de pedir que sejais levados ao pleno conhecimento da vontade de Deus, com toda a sabedoria e discernimento espiritual” (Cl 1,9). Paulo prossegue nesta catequese dizendo: “dando graças ao Pai, que vos fez capazes de participar da herança dos santos na luz. Ele nos arrancou do poder das trevas e nos transportou para o Reino do seu Filho amado, no qual temos a redenção – a remissão dos pecados” (Cl 1,12-14). Assim, o hino de Colossenses entrar na perspectiva de uma doxologia com função catequética.

O hino é construído através de um paralelismo, conforme segue:

A. Cristo, imagem de Deus e primogênito de todas as criaturas

B. O primado de Cristo

A’. Cristo, início e primogênito entre os mortos

Deste modo segue as argumentações que fundamentam o Cristo anterior a toda criatura e o primogênito entre os mortos:

A. Cristo, imagem de Deus e primogênito de todas as criaturas:

1) Dúplice caracterização do Filho (v. 15): Imagem de Deus e primogênito

2) Motivação (v. 16): Tudo foi criado por meio dele e em vista dele

B. O primado de Cristo

1) Ele é anterior a tudo (v. 17a)

2) Tudo subsiste nele (v. 17b)

3) Ele é a cabeça da Igreja (v. 18a)

A’. Cristo, início e primogênito entre os mortos

1) Dúplice caracterização do Filho (v. 18b): primogênito entre os mortos e tudo nele tem consistência

2) Motivação (v. 19-20): A criação tem nele a sua Plenitude e sua Redenção através da sua paixão.

O hino de Colossenses exalta Jesus Cristo como única possibilidade para a plena realização de toda criatura pois ela surgiu por meio dele e em vista dele e foi por ele redimida na sua paixão e morte. Portanto, a fé em Cristo é o único caminho de esperança e salvação para toda pessoa humana.

Evangelho: Lc 10,25-37

Lucas nos coloca hoje diante de uma casuística jurídica a partir do diálogo entre Jesus e um Mestre da Lei. A questão se desenvolve a partir da compreensão do conceito jurídico, ou seja, processo de hermenêutica. A frase referencial é justamente “O que está escrito? Como Lês?” (10,26). Este é o ponto nodal que se coloca em toda a Bíblia: a compreensão do que está escrito.

A parábola é posta por Jesus como uma casuística jurídica a fim de suscitar no interlocutor um posicionamento. Tal procedimento pode ser verificado, por exemplo, no diálogo entre o profeta Natã e Davi (cf. 2Sm 12,1-15), no qual o profeta expõe uma casuística e espera uma resposta do rei. Aqui em Lucas, Jesus faz a mesma coisa; diante de uma situação ele propõe uma casuística que exige resposta do seu interlocutor, no caso, o Mestre da Lei.

A parábola possui simultaneamente simplicidade e complexidade. Simplicidade: de imediato se verifica quem agiu com caridade diante de alguém que está necessitado. Complexidade: quem prática a ação é um samaritano.

Para um judeu, os samaritanos eram, por natureza, impuros e heterodoxos. Portanto, um judeu não poderia jamais manter contato com um samaritano. Na parábola, Jesus coloca duas figuras ritualmente “puras”: um sacerdote e um levita. Os dois cumpriram a Lei ao não se tornarem impuros se desviando do homem caído no chão. Percebe-se que a questão jurídica é delicada: manter a pureza ritual ou salvar uma vida? Esta é a questão em jogo. Tornar-se impuro fere a Lei; não usar de caridade, também fere a Lei. Portanto, existe uma questão em jogo: Qualquer iniciativa irá ferir a Lei.

A questão se torna mais complexa caso pensarmos que a vítima seja um judeu. Neste sentido, ao estar ferido e ensanguentado, ele está impuro. Mais grave: caso ele seja tocado por um samaritano, ele ficará duplamente impuro.

Vamos a solução da questão: a lei do puro e do impuro surgiu em Israel como um meio de salvaguardar a qualidade de vida. Todo homem deve ter condições sociais dignas que lhe permitam viver bem e, ao mesmo tempo, ele deve zelar pelo seu próprio corpo, comendo apenas aquilo que lhe fará bem. A exacerbação do critério levou a princípios de exclusão social e cerceamento de pessoas. Partindo da essência, a pureza humana e ritual visa a vida humana. Portanto, salvar a vida do homem em perigo é o pleno cumprimento da pureza ritual e humana, coisa que o sacerdote e o levita não haviam compreendido, mas o samaritano, que também conhece a Lei, compreendeu. A vida humana esta na primazia da Lei.

Outro ponto importante, da leitura de hoje, é que o Mestre da Lei está usando a Lei de Deus não para fazer o bem, mas para pôr Jesus à prova. Portanto, ele usa a lei com fins malignos, tirar a vida e a dignidade. Além disso, a ideia de “próximo” não é tão simples. Para um judeu, o seu próximo era justamente aquele que era judeu e que cumpria a Lei. Portanto, um samaritano ou um galileu jamais seria o seu próximo. Neste caso, nem Jesus era considerado pelo mestre da Lei como puro, pois era considerado galileu. O próprio tratamento explicita tal questão: um judeu era “povo” o não judeu era um gentio ou um “não povo” (cf. 1Pd 2,10). Jesus está quebrando este conceito a propor a parábola.

Síntese

Enquanto a 1ª Leitura e o Evangelho colocam a questão da Lei ao centro do debate, principalmente quando Jesus no Evangelho, indica qual seja o centro desta Lei, o hino de Colossenses irá explicitar que a verdadeira redenção não se encontra na estrita observância da Lei, mas no fiel seguimento de Jesus que é anterior a tudo. A própria Lei terá consistência e razão de ser quando cumprida por meio de Jesus Cristo, que no ato redentor da cruz manifestou a Lei Régia como centro da fé cristã: “Amarás a Deus e amarás o teu próximo”. Nisto esta sintetizado, segundo Jesus, toda Lei.

 

13º Domingo do TC Ano C 2022

Pe. Gilvan Leite de Araujo

1ª Leitura: 19,16b-19-21

Após a crise vocacional e humana de Elias, Deus coloca Eliseu como seu companheiro de missão. O nome Eliseu significa “Deus Ajudou”. Até o momento, o profeta tinha enfrentado a missão sozinho e tinha sido abandonado por tudo e por todos. Além disso, querem a sua morte. A primeira tentativa foi abandonar tudo. Mas o Senhor Deus o confirma em sua missão e coloca um auxiliar.

Durante a crise, Elias se indagara se ele estivesse errado. De fato, a maioria havia abandonado a fé judaica. Valia a pena continuar sendo fiel? A maioria não estaria certa? Contudo, se a maioria havia abandonado à Deus, Elias permanecera fiel à Ele. Deus não retira a missão, não responde as suas angústias, apenas fica ao seu lado e cuida com carinho (o alimenta, o faz descansar, o escuta…).

Agora será o momento de retornar e cumprir aquilo que iniciou. Elias pode retornar para a sua missão porque Deus colocou Eliseu como “uma ajuda”. Assim, ele não ficará abandonado, mas amparado. Eliseu surge durante a crise de Elias e será seu fiel discípulo, como se pode verificar ao momento o qual ele deverá suceder o mestre. Ficará ao lado do mestre até o último momento (cf. 2Rs 2). Ele receberá o manto e o espírito que está sobre Elias, por meio do qual dará início a sua missão no lugar do seu mestre.

2ª Leitura: Gl 5,1.13-18

O contexto missionário tem como ponto de partida a total disponibilidade, sem amarras ou impedimentos que inibam ou interfiram na missão. Assim, a missão não pode ser fuga de ambientes, situações ou sentimentos. Mas um serviço, no qual a pessoa está totalmente livre de quaisquer amarras. No sentido vocacional, o ser padre, religioso ou religiosa ou se casar pressupõe plena liberdade para o “sim!”, qualquer condicionamento ou impedimento irá privar ou limitar todo o projeto divino.

Assim, Paulo é o modelo daquele que deixou tudo, considerando as antigas seguranças ou glórias como “lixo”, o que passa a importar para ele é Jesus Cristo. Este passa a ser o referencial primário para qualquer vocacionado, ou seja, o Senhor. Caso este não seja o centro, tudo poderá estar comprometido.

Evangelho: Lc 9,51-62

A narrativa de Lc 9 apresenta três episódios de vocacionado e não-vocacionados, mas de forma incompleta, no qual é sublinhado quem pode seguir ou não:

No primeiro caso, a pessoa pede para seguir, mas Jesus impõe um impedimento: “As raposas têm tocas e as aves do céu, ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça” (Lc 9,58).

No segundo caso, Jesus chama diretamente a pessoa: “Segue-me”, mas este lança uma condição: “Permite-me ir primeiro enterrar meu pai” (Lc 9,59), seguido da recusa de Jesus “Deixa que os mortos enterrem os seus mortos; quanto a ti, vai anunciar o Reino de Deus”.

Terceiro caso: a pessoa pede para seguir, mas impõe uma condição: “Eu te seguirei, Senhor, mas permite-me primeiro despedir-me dos que estão em minha casa” (Lc 9,61)

A questão central, presente na narrativa de hoje, é o tema vocacional. O que está em hoje é a plena disponibilidade para partir sem, absolutamente, nenhum impedimento, mesmo que familiares (pais, irmãos…). Por outro lado, tem aqueles que Jesus não chama, apenas deseja que eles cumpram a sua vida com regularidade. Além disso, Jesus não deseja pessoas insensíveis, quando trata de renúncias de laços familiares ele não está dizendo para perder a humanidade e se tornar insensível a tudo e a todos, mas totalmente capazes de se lançar na missão com coragem e desprendimento. Assim, os vocacionados são, por excelência, pessoas plenamente humanas. Esta é a condição primária. Pois a santidade cristã é um processo de humanização que leva a divinização. Quem não se torna plenamente humano não se tornará santo.

Síntese

Todos os cristãos, por sua própria natureza batismal são chamados, por vocação, à santidade. Esta é a vocação primaria. Por vocação à santidade se pressupõe aproximar-se de Deus, tornando-se seus filhos.

Dentre aqueles que são chamados à santidade, alguns são chamados para missões específicas: matrimônio, consagração pessoal, vida religiosa e/ou presbiteral. Estas vocações específicas podem ser chamadas de vocação para a missão. Assim, a vocação é pôr-se a caminho. Quem é chamado deve estar pronto para partir.

 

12º Domingo do TC Ano C 2022

Pe. Gilvan Leite de Araujo

1ª Leitura: Zc 12,10-11; 13,1

A 1ª Leitura descreve a morte de Zorobabel, último descendente do trono de Davi. O assassinato ocorre durante a guerra civil em Judá provocada pelo sistema diarquico de Zorobabel e Josué. Sabe-se que após a morte do monarca, o governo de Judá passará inteiramente para as mãos de Josué que estabelecerá um governo hierocrático, chamado de período sadoquita, que perdurará até a ascensão de Herodes, O Grande. Lógico que a morte do último herdeiro legítimo ao trono de Judá provocará uma crise, principalmente diante da promessa de um trono eterno de Davi (cf. 2Sm 7).

Diante da situação de um herdeiro legítimo a profecia posterior começará a descrever não mais um herdeiro, mas um novo Davi (=Profecia de Ezequiel). Neste sentido as promessas messiânicas falam deste novo Davi que será estabelecido no trono de Davi.

O tema do “ungido” transitará entre um sacerdote, um rei ou um que possua com as duas dignidades. Neste sentido, transferindo a temática do ungido para Jesus, ele surge como um da casa de Davi (=messianismo real) e que será configurado, também, como messias sacerdotal (=figura de Melquisedec/Cruz).

2ª Leitura: Gl 3,26-29

A Aliança e a Lei configuravam Israel como o povo legítimo. Portanto, os israelitas eram os únicos a serem considerados Povo de Deus. Paulo, escrevendo aos Gálatas, afirma que a condição não será mais pelo princípio de genealogia, mas pela fé em Jesus Cristo. Para estabelecer este novo princípio, ele usa o princípio da anterioridade, ou seja, o que é posterior a Moisés está sujeito a Lei, mas o que é anterior à Moisés esta desobrigado das prerrogativas da Lei. Neste sentido, Paulo configura os pagãos a partir da filiação abraamica, desobrigando-os da Lei e abrindo a possibilidade de ingresso na Nova Lei a partir da promessa feita a Abraão de ser pai de todos os povos. Portanto, os pagãos se tornam filhos de Deus por meio de Cristo Jesus, segundo a promessa feita por Deus à Abraão.

Outro ponto fundamental da leitura, para a liturgia de hoje, é a afirmação paulina “se vós sois de Cristo” (Gl 3,29), ou seja, ele está reforçando o tema do ungido. Jesus é o Ungido esperado por Israel que abre a salvação tanto para judeus como para os gentios.

Evangelho: Lc 9,18-24

A narrativa esta situada após a missão dos apóstolos. Retornando, Jesus se retira com eles para um lugar a parte para descansarem e avaliarem a missão. Neste processo de avaliação da missão, Jesus indaga sobre a concepção dos missionários (aqui os apóstolos) e das pessoas que receberam a mensagem.

Sendo Jesus Cristo o centro e o objeto do anúncio a questão que ele coloca é a seguinte: que Jesus Cristo foi anunciado e que Jesus Cristo foi compreendido? As pessoas veem em Jesus Cristo uma multiplicidade de figuras (João Batista, Elias, antigo profeta…). A partir disto, Ele indaga sobre a real concepção dos apóstolos sobre a sua pessoa. Isto é fundamental, pois disto dependerá a fidelidade e a eficácia do anúncio.

A resposta assertiva de Pedro descreve Jesus como o “Ungido” enviado por Deus e esperado por Israel: “O Cristo de Deus” (Lc 9,20). A resposta de Pedro apresenta Jesus como o messias esperado por Israel, mas não descreve o modelo messiânico. Os apóstolos terão, ainda, que compreender esta questão e que criará divergências na comunidade apostólica.

Síntese

A liturgia deste 12º Domingo do TC foca sobre o tema do “Ungido” (Messias/Cristo). Nesta perspectiva messiânica, a 1ª Leitura destaca o Ungido da Casa de Davi, que será compreendido na história de Israel, no período pós-exílico, como um descendente direto de Davi ou um novo Davi. Delineando assim, o chamado, messianismo real. Além disso, o contexto histórico da leitura evidencia o desenvolvimento do messianismo sacerdotal na figura de Josué. Portanto, estará em pauta Zorobabel (=descendente direto de Davi, ungido como rei) e Josué (ungido como sacerdote) que será a base para o tema das duas oliveiras (cf. Zc 4 e Ap 11), ou seja, um messias real (Zorobabel) e outro sacerdotal (Josué). O duplo messianismo terá esta fundamentação e, também, será aplicado na pessoa de Jesus Cristo.

Jesus Cristo, no Evangelho, irá delinear, após a resposta de Pedro, um messianismo profético, ao descrever o “sofrimento do messias”. Leva-se em conta que o “sofrimento do Messias”, não possui fundamento veterotestamentário, ou seja, os oráculos messiânicos não dizem que o messias deveria sofrer. Neste sentido, Jesus, na qualidade de “enviado por Deus”, sendo, assim, um “homem de Deus” irá sofrer a sorte dos profetas de Israel, que foram rejeitados, suas mensagens não foram acolhidas e muitos deles foram perseguidos e mortos. Tal perspectiva fica claro no uso de “Filho do Homem”, que o vincula a este modelo messiânico.

No conjunto das leituras, portanto, é apresentado Jesus assumindo as perspectivas messiânicas de Israel, ou seja, messianismo real, profético e sacerdotal e outros. Este é o ponto basilar que coloca Jesus totalmente em destaque aos demais messias que surgiam em Israel, que transitavam entre um ou outro modelo messiânico. Os próximos domingos irão apresentar os modelos messiânicos a partir das ações de Jesus.

Solenidade da Santíssima Trindade, Ano B 2022

Pe. Gilvan Leite de Araujo

1ª Leitura: Pr 8,22-31

Quem é o sábio?

O tema da Sabedoria Divina é desenvolvido nos capítulos de 1 a 9 do Livro de Provérbios, num processo de “personificação”; seja como qualificação do ensinamento do sábio (1,8s) ou como a origem de toda a tradição e de todo o ensinamento sapiencial (8,1-3 + 1,20s). Em 1,22-29 e 8,4-11 é a sabedoria que fala no estilo habitual dos mestres. Assim, no capítulo 8, a Sabedoria se apresenta descrevendo as suas qualidades: enumerando os atributos que a aproximam de Deus (vv. 12-21) e sublinha as relações privilegiadas que ela tem com ele (vv. 22-31), antes de exortar seus filhos com plena autoridade (vv. 32-35).

Ela é personificada como uma mulher amada e como educadora, antes de se apresentar como pré-existente à criação material. É confidente de Deus, a primeira aprendiz e, portanto, a grande iniciadora da sabedoria. À vontade diante de Deus, ela se sente em casa no mundo criado, no qual dançava enquanto Deus criava. Além disso, ela está à vontade entre os homens, porque o seu prazer é estar com eles.

O tema da sabedoria personificada, solidamente fundamentada em Pr 8, será retomado e ampliado até a era cristã. Alguma obra, como Jó 28; Eclo 1 e 24; Br 3,9-4,4 e Sb 7-9 retomam a temática. Inicialmente arquétipo feminino dos pedagogos de Israel, a Sabedoria verá crescer sua autonomia com Deus Criador. Essa personificação elaborada progressivamente pelos sábios de Israel permitiu-lhe pensar melhor a relação de Deus, com o mundo, com o homem e dinâmica na intradivina. Nos primeiros séculos, os cristãos retomaram a temática, para precisarem não só alguns aspectos da cristologia, mas também da pneumatologia.

2ª Leitura: Rm 5,1-5

Caminho espiritual do batizado

O início de Romanos 5 esclarece imediatamente o exato sentido da narrativa: “justificados em virtude da fé, nós, portanto, estamos em paz com Deus” (cf. Rm 5,1). Neste sentido, se é verdade que a justificação se realiza na base da fé (Rm 1-4), então é verdade que os fiéis estão na justa relação de aliança com Deus. Mas, o que isto significa no concreto da vida humana? Paulo salienta que ao fiel é conferido a graça como um dom de paz. Contudo, não se trata de um sentimento ou uma experiência psíquica, mas uma objetiva relação positiva com Deus. Assim, a justificação exprime uma passagem radical de rejeição do Criador e da própria criaturalidade para aceitação de Deus da aliança e da solidariedade; uma situação de graça na qual entrou o fiel, conforme explicita o v. 2: “tivemos acesso, pela fé, a esta graça, na qual estamos firmes e nos gloriamos na esperança da glória de Deus”. Lógico que todo este processo é possível pela direta intermediação de Jesus Cristo, na qualidade de Salvador e Redentor, que abriu a todos os homens a possibilidade da vida na graça, por meio da fé.

Para todo aquele que foi justificado pela fé, surge a “esperança”, ou seja, a abertura para um futuro feliz: “E a esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5).

Na solenidade de hoje, a narrativa sublinha que a Redenção operada por Jesus Cristo, possibilitou à todos os homens ser justificados pela fé, reconciliando-se, assim, com o Criador por meio da ação do Espírito Santo. Portanto, a salvação humana é um processo trinitário, no qual o homem é reconciliado com Deus, pela fé em Nosso Senhor Jesus Cristo, que morreu e ressuscitou em nosso favor, por meio do Espírito Santo.

Evangelho: Jo 16,12-15

Espírito Santo como pedagogo

            Entre as funções descritas por Jesus a respeito do Espírito Santo, está o de anunciar e explicar coisas novas, que vai além do que está estritamente circunscrito à narrativas Evangélicas. Lógico, que permanece a questão se a missão do Espírito Santo, na ótica joanina, seja didática ou forense ou ambas. Em todo caso, a palavra “culpa”, no Quarto Evangelho, possui sentido jurídico (cf. 3,20; 8,46). Na realidade, Jesus apresenta o Espírito Santo na qualidade de Pedagogo. Assim como ele, Jesus, veio “explicar” quem é o Pai (cf. Jo 1,18), o Espírito Santo assumirá, também, a missão de explicar quem é o Filho. Contudo, se pode perguntar: como Jesus explica o Pai no Quarto Evangelho? A resposta é “por meio das suas ações e palavras”, no qual Jesus é a Testemunha por excelência.

O Espírito Santo, também, testemunhará a respeito do Filho, para explicá-lo e vinculará todos à Ele, a fim de que, Jesus tudo entregue nas mãos do Pai.

Verifica-se um processo “missionário”, conhecido como teologia do enviado, no qual o Pai envia o Filho ao mundo. O Pai e o Filho enviam o Espírito Santo ao mundo. A Trindade envia a Igreja ao mundo. A Igreja, por meio do Espírito Santo, deve enviar todos à Jesus Cristo e Ele deverá entregar tudo nas mãos do Pai. É um processo salvífico, marcado pela esperança suscita pela paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo que abriu o caminho da salvação para todos os homens e mulheres.

Síntese

As leituras propostas para a solenidade da Santíssima Trindade, para o Ano de 2022, evoca a ação salvadora operada por Jesus Cristo, Senhor, Redentor e Salvador. Por meio de sua ação, Ele abriu a todos os homens e mulheres a possibilidade, por meio da fé, da vida na graça. Vida esta que impele efetivamente cada fiel para agir concretamente no mundo como promotores da paz, reconduzindo tudo e todos para o Pai.

O eixo central é o batismo. Professar a fé em Jesus Cristo é ato de sabedoria que, justificado e em paz com Deus, lhe é aberto a vida na Graça e a certeza de uma eternidade feliz.

Complemento

Para as primeiras comunidades, como para nós hoje, a Trindade era o modelo, a base e a referência do agir cristão, assim, antes de explicá-la, eles fizeram a experiência da Trindade, de um Deus Criador, de um Filho Redentor e de um Espírito Santificador.

Na história da Igreja a compreensão da Santíssima Trindade foi alvo de calorosos debates. Na origem da Igreja, a busca pela compreensão sobre a Trindade levou muito estudiosos a compreensões equívocas ao tentar manter a ideia de Monoteísmo diante do mistério do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Dentre os diversos erros de compreensão sobre a Santíssima Trindade, encontramos o “Modalismo”, na qual afirmava que a Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, eram apenas modos de se revelar de Deus. Esta heresia salvava o conceito de Monoteísmo, mas, por outro lado, destruía a própria Trindade. Em sentido inverso o “Triteísmo” afirmava a absoluta distinção das pessoas da Trindade. Se no modalismo o monoteísmo era salvaguardado, aqui ele era totalmente negado caindo no politeísmo. Outra solução foi o “Subordinasionismo”. Segundo esta heresia, o Filho e o Espírito Santo seriam inferiores ao Pai e superiores aos homens, tornando o Filho e o Espírito apenas criaturas criadas por Deus.

Diante disto pode-se perguntar então: “O que é a Santíssima Trindade”. Em primeiro lugar, a Trindade é Deus e Deus é Pai, é Filho e é Espírito Santo; e Deus é UM.

Procurando compreender o mistério do Ser de Deus, a Igreja, inspirada pelo Espírito Santo, convocou alguns Concílios Ecumênicos. O primeiro foi o de Nicéia (325), no qual declarou que o Filho, Jesus Cristo, é gerado do Pai, não foi criado e, portanto, não é inferior ao Pai. Sendo gerado do Pai, o Filho, Jesus Cristo, possui a mesma natureza divina do Pai. Portanto, é consubstancial ao Pai, ou seja, possui a mesma natureza divina de Deus: “Eu e o Pai somos Um. Tudo o que o Pai possui é meu. Eu estou no Pai e o Pai está em mim…” (Jo 8).

O Concílio de Nicéia nos deu a verdadeira compreensão sobre Jesus Cristo no mistério da Trindade. Porém, faltava explicar qual era o lugar do Espírito Santo dentro da Trindade. Somente alguns anos mais tarde, ou seja, durante o Concílio de Constantinopla (381) é que a Santa Igreja explica o Espírito Santo a partir da sua relação com a encarnação de Jesus Cristo, proclamando que Ele é “Senhor e doador de Vida, que procede do Pai, com o Pai e o Filho é adorado e glorificado e falou por meio dos profetas”.

De tudo o que falamos até aqui, é importante relembrar que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são distintos um do outro, mesmo sendo possuidores de uma única natureza divina. Assim, podemos dizer que a Trindade são três pessoas, não três máscaras; três pessoas, mas não três deuses, mas possuidores de uma única natureza divina. A Trindade está em comunhão perfeita, indivisível e um existe no outro, um está em relação com o outro, de modo que podemos falar de comunhão perfeita, sem confusão e sem separação: O Pai ama o Filho e o Espírito Santo; O Filho ama o Pai e o Espírito Santo; e o Espírito Santo ama o Pai e o Filho. Tal qual é o Pai, tal qual é o Filho, tal qual é o Espírito Santo. Incriado Pai, incriado Filho e incriado Espírito Santo. Grandíssimo Pai, grandíssimo Filho, grandíssimo Espírito Santo. Eterno Pai, eterno Filho e eterno Espírito Santo. Santíssimo Pai, santíssimo Filho e santíssimo Espírito Santo. Contudo, não são os três incriados, não são os três grandíssimos, não são os três eternos e não são os três santíssimos. Somente Um é incriado, somente Um é grandíssimo; somente Um é eterno e somente Um é santíssimo. Somente Um é Deus e Deus é Um. Somente Um é Deus e Deus é Trino.

A primeira comunidade cristã fez a experiência da Trindade antes de tentar explicá-la. De fato, para os primeiros cristãos, a Santíssima Trindade não era uma “Teoria Celeste”, uma ideia abstrata, mas uma experiência de vida, a parte fundamental da sua existência. Na realidade para os primeiros cristãos, como para nós hoje, a Santíssima Trindade era: lugar de amor, ambiente de oração, referência constante do agir cristão, motivo de fé e de esperança; estímulo a caridade; fundamento de salvação.

Objeto de Amor: Na Santíssima Trindade não encontramos divisão e nem separação, pois o Pai está para o Filho, como o Filho está para o Pai; o Pai ama o Filho, como o Filho ama o Pai; o Pai e o Filho amam o Espírito; como o Espírito Santo ama o Pai e o Filho. Nenhuma das pessoas da Trindade age sozinha, isolada, pois na Trindade não existe solidão, egoísmo, pois tudo é comunhão de amor doado. A vida cristã tem o seu agir justamente na experiência da Santíssima Trindade, ou seja, ela é modelo, inspiração para a vida cristã, que não olha para si mesmo, mas um doar-se totalmente a Deus, nos irmãos até o martírio.

Lugar de Oração: Toda a vida cristã é vida de comunidade. Comunidade de amor, porque possui como modelo a Santíssima Trindade, que é comunidade Perfeita. Assim, toda a mística e toda espiritualidade e toda oração cristã é plenamente comunitária e centrada na Trindade. Toda e qualquer oração cristã acontece através, pela e na Trindade. Na fé cristã não existe oração solitária, porque é sempre comunitária, mesmo quando rezamos sozinhos.

Motivo de Fé e de Esperança: A Santíssima Trindade é a porta de entrada para a vida divina; motivo pelo qual somos batizados em Nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Na medida que progredimos no caminho da santidade e caminhamos para a pátria celeste, aprendemos com a Trindade a vida de amor no amor; a fim de contemplar e viver eternamente no Eterno, que é a fonte de vida. Através do Batismo nos tornamos santos e a cada dia trabalhamos para ser santo, como Deus é Santo.

Estímulo a Caridade: A Trindade como modelo de amor e serviço é para o cristão o principal ponto de referência. Na Trindade encontramos um esforço, um desejo, uma vontade imensa de criar, de salvar e de santificar. Criar, salvar e santificar quem? A mim, a ti a todos aqueles que são dignos de se chamarem Filhos de Deus; e nós o somos graças Aquele que nos amou e nos criou por seu amor, que nos salvou e nos santificou. Do mesmo modo aprendamos a amar, a criar e a santificar a vida onde a vida é roubada, onde a vida é desfigurada pela fome, pela violência, pelo abandono, pela injustiça. Recriemos no olhar das crianças abandonada, nos jovens drogados, na humanidade sofrida o olhar amoroso do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

 

Solenidade de Pentecostes 2022

Pe. Gilvan Leite de Araujo

            A solenidade é de origem judaica, chamada de Shavuot ou Semanas. A Festa de Shavuot ou Pentecostes é a segunda das três grandes festas de Israel. Da festa das primícias, Shavuot passou, ao longo da história, a celebrar a Aliança do Sinai, o “dom” da Torá, sem nunca perder o seu caráter agrícola, chegando ao universo cristão celebrando o “dom” do Espírito Santo.

A expressão hebraica Shavuot, ou seja, “Semanas” pressupõe o número sete, porque a Festa é celebrada “sete semanas” depois Páscoa: “…contareis sete semanas completas. Contareis cinquenta dias até o dia seguinte ao sétimo sábado” (Lv 23,15-16), motivo pelo qual se pode traduzir diretamente do hebraico como Festa das Semanas. A LXX traduzirá a expressão por Festa de Pentecostes, que será assimilada pela tradição cristã.

A Festa de Pentecostes possui um elo constitutivo com a Festa Páscoa, como descrevem os relatos do Pentateuco. Isto, também, será referencial no cristianismo. Apesar de estar vinculada a Páscoa, Pentecostes possuía um caráter exclusivamente agrícola. Agradecia-se a Deus pelos dons da terra. Seu caráter histórico não é claro e, ao longo da história, muitas vezes foi desconsiderada. Contudo, ela se configurava como a segunda festa de peregrinação. O processo historicização da festa judaica será por influência cristã.

O Livro de Rute, cujo relato acontece durante a colheita, era lido solenemente. Nos vilarejos se reunia um cortejo de peregrinos que subiam para Jerusalém a fim de oferecer os dons da colheita a Deus. Quando se aproximavam da cidade os sacerdotes e levitas vinham ao encontro dos peregrinos, guiando-os até o Templo, onde entravam em procissão, portando seus dons e entoando cantos de alegria. Os levitas entoam hinos de louvor. Em seguida as primícias eram entregues nas mãos dos sacerdotes e se pronunciava a solene gratidão ao Deus de Israel, repetindo as palavras de Dt 26,3-10:

Declaro hoje ao Senhor meu Deus que entrei na terra que o Senhor, sob juramento, prometera aos nossos pais que nos daria! [após a entrega das primícias prossegue o peregrino] Meu pai era uma arameu errante: ele desceu ao Egito e ali residiu com os egípcios, porém, nos maltrataram e nos humilharam, impondo-nos uma dura escravidão. Gritamos então ao Senhor, Deus dos nosso pais, e o Senhor ouviu a nossa voz: viu nossa miséria, nosso sofrimento e nossa opressão. E o Senhor nos fez sair do Egito com mão forte e braço estendido, em meio a grande terror, com sinais e prodígios, e nos trouxe a este lugar, dando-nos esta terra, uma terra onde mana leite e mel. E agora, eis que trago as primícias dos frutos do solo que tu me deste, Senhor.

Após esta solene prece os dois pães da primícia (cf. Lv 23,17) eram ofertados como primícias da nova colheita, como gratidão pela proteção de Deus no passado e no futuro, e porque Deus provê o bem do seu povo.

O Povo de Israel, tendo a consciência que tudo é criação do único Deus e que tudo está sob o seu domínio, também teve a consciência que tudo era um “dom” divino. A terra, a chuva, o fruto da terra são uma benção de Deus, principalmente para com o seu Povo Eleito. Por outro lado, a estiagem também era vista como castigo divino: “Eu também vos privei da chuva…” (cf. Am 4,7-8).

A Festa de Pentecostes era para o Povo de Israel o momento de dizer à Deus que tudo é obra sua e que o Povo da Aliança se sente agradecido por ter sido lembrado, ter sido tratado com carinho, ter dado a terra e a chuva:

Visitas a terra e a regas, cumulando-a de riquezas. O ribeiro de Deus é cheio d’água, tu preparas seu trigal. Preparas a terra assim: regando-lhe os sulcos, aplanando seus terrões, amolecendo-a com chuviscos, abençoando-lhe os brotos. Coroas o ano com benefícios, e tuas trilhas gotejam fartura; as pastagens d deserto gotejam, e as colinas cingem-se de júbilo; os campos cobrem-se de rebanhos, e os vales se vestem de espigas, tudo canta de alegria! (Sl 65[64],10-14).

O Sl 65 fornece uma imagem precisa da relação de Deus com seu povo, abençoando seus trabalhos, benção que é a própria ação divina, ou seja, Deus que trabalha com o homem, participando do suor e do trabalho humano. Se para os cananeus e demais povos vizinhos era necessário um culto de fertilidade, numa relação de subordinação às forças de uma divindade agindo através das forças da natureza, para o Povo de Israel, Deus participa ativamente do trabalho humano e, além disso, tudo era d’Ele e tudo tinha dado ao seu Povo Eleito e os cobria de bênçãos. Deste modo, oferecer os dons da terra e do trabalho humano era agradecer ao criador da terra que abençoa cada ano a sua criatura com os frutos da terra.

Para os cristãos, o dia de Pentecostes coincide com a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos:

Tendo-se completado o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do céu um ruído como o agitar-se de um vendaval impetuoso, que encheu toda a casa onde se encontravam. Apareceram-lhes, então, línguas como de fogo, que se repartiam e que pousavam sobre cada um deles. E todos ficaram repletos do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia se exprimirem. (At 2,1-4)

O relato da descida do Espírito Santo se relaciona diretamente com a revelação do Sinai (o vento, o fogo e as línguas). No evento da Pentecostes Cristã novamente Deus manifesta o seu amor, agora se abrindo a todos os povos. O bom fruto que é dado é o seu próprio Espírito, que vem estabelecer a Lei do Amor no coração da humanidade. Enquanto, a Aliança e a Torá conduziam o Povo de Israel para a Terra Prometida, tendo em vista que a Aliança a Torá e a Terra são dons preciosos, na Pentecostes Cristã, os que foram chamados por Jesus Cristo, deixam a Terra e se tornam peregrinos da humanidade, portanto os dons de Deus a cada pessoa humana, revestidos pelo precioso Dom do Deus, o Espírito Santo.

1ª Leitura: At 2,1-11

O livro dos Atos dos Apóstolos dedica um amplo espaço para o tema da Festa de Pentecostes, no qual apresenta o que antecede à vinda do Espírito Santo, o evento propriamente dito, e a consequência disto. Pode-se observar o seguinte esquema: 1. Promessa do Pentecostes (1,4-8); 2. Preparação para o Pentecostes (1,12-26); 3. As provas do Pentecostes (2,1-4); 4. As pessoas do Pentecostes (2,5-13); 5. A profecia do Pentecostes (2,17-21); 6. A pregação sobre o Pentecostes (2,22- 40); e, 7. A proposta do Pentecostes (2,41-47). Assim, com a Ascensão de Jesus, a primeira iniciativa dos Apóstolos é a de recompor o grupo dos doze com a escolha de Matias para o lugar de Judas Iscariotes. Após a reestruturação do grupo dos Doze, Lucas descreve o evento do Pentecostes (cf. At 2,1-13), seguida pela explicação de Pedro à multidão sobre o que ocorreu e o fenômeno das línguas a partir das tradições de Israel (cf At 2,14-36), seguida pela conversão de muitos (cf. At 2,37-41) e a consequência para a comunidade cristã (cf. At 2,42-47). Na narrativa lucana de At 1-2 o Pentecostes confere aos Apóstolos o Espírito Santo e, investidos da “força do alto” estes também recebem o “dom de línguas” capacitando-os para a pregação da Boa Nova aos povos de diversas línguas. Deve-se sublinhar, então, que ocorrem dois fatos: a efusão do Espírito Santo e a concessão do dom de línguas, ou seja, os Apóstolos, tendo recebido o Espírito Santo como dom, recebem, do próprio Espírito, o dom de línguas em vista da missão. Apesar de Lucas se basear na profecia de Joel sobre a promessa do Espírito Santo para os tempos futuros, permitindo àqueles que receberiam o dom de profetizar, o relato enfatiza o tema do testemunho, baseando-se na profecia de Isaías (cf. Is 43,3.10; 44,8; 32,10; 59,21).

2ª Leitura: 1Cor 12,3b-7.12-13

O Concílio Vaticano II ao tratar do tema “carisma” distingue dois conceitos diversos: a) dom extraordinário, dado por Deus de modo excepcional, e, b) dom qualquer, dado por Deus para a edificação da Igreja. O documento conciliar Lumen Gentium (capitulo1§4), falando da obra do Espírito na Igreja, expressa que: “A Igreja, que Ele conduz à verdade total (cfr. Jo 16,13) e unifica na comunhão e no ministério, enriquece-a Ele e guia-a com diversos dons hierárquicos e carismáticos e adorna-a com os seus frutos (cfr. Ef 4,11-12; 1Cor 12,4; Gl 5,22).”

Podemos perceber que o Documento salienta uma distinção entre dons hierárquicos e carismáticos. Igualmente no §7 que trata da Igreja como Corpo de Cristo, expressa em referência a 1Cor 12,1-11: “Assim como os membros do corpo humano, apesar de serem muitos, formam um corpo único, assim também os fiéis, em Cristo (cf. 1Cor 12,12). Também na edificação do Corpo de Cristo há diversidade de membros e de funções. Único é o Espirito que para bem da Igreja (cf. 1Cor 12,1-11) distribui os seus vários dons conforme as suas riqueza e a necessidade de cada ministério (cf. 1Cor 12,1-11)… Ele (Cristo) distribui continuamente ao seu corpo, que é a Igreja, os dons dos diversos ministérios”.

Também na construção do Corpo de Cristo vigora uma diversidade de membros e ofícios. Um é o Espírito, o qual distribui para a utilidade da Igreja a variedade dos seus dons segundo a sua riqueza e as necessidades dos ministérios (cf. 1Cor 12,1-11). Entre estes dons sobressai a graça (gratia) dos apóstolos, cuja autoridade o mesmo Espírito submete os carismas (carismáticos) (cf. 1Cor 14). Aqui se encontram três expressões diversas: dons, graça e carismas. A última frase pode sugerir que os apóstolos não façam parte dos carismas.

O §12 trata amplamente dos carismas e adota o substantivo “charismata”. Este parágrafo encontra-se no segundo capítulo [O Povo de Deus], logo após o parágrafo sobre do “sacerdócio comum”. O tema inicial do parágrafo é sobre o ofício profético do Povo de Deus. O discurso de Pedro no dia de Pentecostes (cf. At 2,16-21) proclama a atuação do oráculo de Joel, o qual anunciava que todos receberiam o Espírito de Deus e profetizariam (cf. 3,1-5). A LG não ressalta o aspecto real do Povo de Deus, como se pode perceber, apenas a dignidade sacerdotal e profética; é nesta dignidade (sacerdotal e profética) que vem anexado a presença dos carismas:

…o mesmo Espírito Santo não se limita a santificar e a dirigir o Povo de Deus por meio dos sacramentos e dos ministérios, e a orná-los com as virtudes, mas também, nos fiéis de todas as classes, ‘distribui individualmente e a cada um, conforme entende’, os seus dons (1Cor 12,11), e as graças especiais, que os tornam aptos e disponíveis para assumir os diversos cargos e ofícios úteis à renovação e maior incremento da Igreja, segundo aquelas palavras: ‘A cada qual se concede a manifestação do Espírito para utilidade comum’ (1Cor 12,7). Devem aceitar-se estes carismas com ação de graças e consolação, pois todos, desde os mais extraordinários aos mais simples e comuns, são perfeitamente acomodados e úteis às necessidades da Igreja.

Aqui também encontramos três temas: dons, graças especais e carisma. O Documento Conciliar específica a natureza dos carismas, que se trata de dons funcionais. Temos assim que, “atividade” e “serviço se relacionam e assumem a função de utilidade. Assim, o dom é concedido para a Utilidade da Igreja, conforme 1Cor 12,7, entendendo Igreja como Corpo de Cristo, Luz para o Mundo ou Sacramento de Salvação.

A novidade do Concílio é a distinção entre “administração ordinária da graça” e “iniciativas novas”. Por “administração ordinária”, o Espírito se serve dos sacramentos e dos ministérios institucionais, enquanto para “iniciativas novas”, se serve dos carismas.

Podemos dizer que o carisma é por natureza funcional, não implicando diretamente na santificação de quem o possui[1], subentendendo que esta utilidade não está exclusa. A utilidade para a edificação da comunidade é o critério para julgar se um carisma é mais ou menos importante.

1Cor 12 nos apresenta duas listas de dons e carismas, ambas são complementares. Contudo, São Paulo faz referência aos ministérios (diaconia) e modos de ação (energêmata) que são atividades do próprio Deus, através do Espírito, tendo Jesus Cristo como modelo (cf. vv. 4-6):

4Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo;

5diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo

6diversos modos de ação, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos.

Os dons dados pelo Espírito não são para a glória pessoal de quem o recebe, ou oportunidade de sobrepor-se aos demais, mas representam a oportunidade para o ministério ou para o serviço à comunidade e através desta o serviço à Deus. Todo serviço ou ministério parte de Deus e o resultado deste serviço converge para Deus.

Evangelho: Jo 20,19-23

O Evangelho para a Solenidade de Pentecostes é sempre a narrativa do encontro de Jesus Ressuscitado com os Apóstolos conferindo-lhes o Espírito Santo, como “dom” e com este, uma prerrogativa particular de Deus, ou seja, o de perdoar pecados. A partir desta dimensão, a remissão dos pecados passa diretamente para o ato sacramental. O próprio Jesus havia usado a prerrogativa do Pai de perdoar pecados gerando controvérsias entre os judeus e acusação de blasfêmia. Agora um atributo próprio de Deus é atribuído aos Apóstolos.

Em jogo está a novidade da ressurreição próxima da ideia da nova criação, na qual o homem redimido pode se tornar apto de Deus. Na tradição protestante entra a negação do ato sacramental e a ideia de ligação direta com Deus (Eu e Deus) junto com expor a realidade do pecado para a comunidade. A situação de pecado pode ser exposta ao público, mas não haverá remissão dos pecados e a matéria do pecado permanecerá sobre o pecador, algo que é anulado através do ato sacramental.

Levando em consideração que o Espírito Santo possui a missão de conduzir tudo e todos à Cristo e este ao Pai, o tornar a pessoa apta e o abrir o caminho e a possibilidade do seguimento e da atividade missionária, no qual o homem/mulher deixa de ser escravo do pecado para se tornar servo de Deus (cf. Rm 6) em favor da humanidade, o perdão dos pecados é a possibilidade que o próprio Deus oferece para que a pessoa possa efetivamente chegar à sua presença “sem impedimentos”.

A Solenidade de Pentecostes celebra o envio da Igreja ao mundo com a “potência” do Espírito Santo guiando-a e capacitando-a para a missão a ser realizada. Tendo ela sido gerada no chamado dos 12 Apóstolos, ao início da missão de Jesus na Galileia, e nascida no dia da Ressurreição, agora é enviada em missão, configurada ao seu Senhor e fortalecida pela ação do Espírito Santo.

Deve-se fazer menção, ainda, ao fato que o NT apresenta três experiências direta da manifestação do Espírito Santo. O Cristo transpassado na cruz, através do qual jorra sangue e água (Jo 19,31-37), O Cristo ressuscitado que sopra sobre os apóstolos (Jo 20,19-23) e a efusão por excelência, na qual o Cristo, tendo subido aos céus e estando a direita do Pai, efundem sobre a Igreja o Espírito Santo.

 



[1] O único dom de santificação pessoal é o da glossolalia (cf. 1Cor 14,4). Contudo, junto com o dom da profecia, o dom de língua “angélica” (≠ do dom de língua em At 2), é individual e possui órgão de controle, ou seja, só pode ser exercido o dom se autorizado por aquele que preside a assembleia e é o possuidor do dom do discernimento (cf. 1Cor 12,10; 14,26-32.39)

5º Domingo da Páscoa Ano C 2022

Pe. Gilvan Leite de Araujo

1ª Leitura: At 14,21b-27

A leitura deste domingo se insere na grande narrativa da 1ª Viagem Missionária de Paulo At 13,1-14,28. Durante esta primeira viagem, o grupo acompanhado por Paulo parte de Antioquia da Síria e passa por Chipe, Salamina, Pafos, Perge, Panfília, Antioquia da Psídia, Icônio, Listra e Derbe. A narrativa de hoje, situa Paulo na última parte da viagem, retornando para algumas cidades (Listra, Icônio e Antioquia da Psídia, Panfília, Perge e Atália) até chegarem ao ponto de partida, ou seja, a cidade de Antioquia da Síria, onde se reunião com a comunidade local para expor os resultados da viagem. Dos resultados surgem questões de prática pastoral que conduzirá ao Concílio de Jerusalém (At 15). A síntese principal é como Deus operou por meio deles, permitindo a evangelização dos gentios.

Digno de nota, que as pregações eram realizadas em dias de sábado nas Sinagogas. Portanto, este é o lugar privilegiado das pregações paulinas e muitas delas se tornaram comunidades cristãs. Além disso, para guiar as comunidades, Paulo institui presbíteros através da imposição das mãos. Estes se configurarão como bispos ou presbíteros.

A tradução para a língua portuguesa da palavra grega como ancião é equivocada. De fato, por ancião se compreende o mais velho dentro da tradição veterotestamentária. Para o cristianismo, o correto é a tradução por “presbítero”, pois pressupõe que possa ser o mais jovem e não necessariamente o contrário.

O eixo central da leitura é o fim da viagem missionário, seguido da partilha com a comunidade de Antioquia da Síria, local da origem da missão. A missão apresentará algumas questões pastorais que resultará no Concílio de Jerusalém (At 15). Além disso, as comunidades fundadas durante a missão são confiadas aos presbíteros, cujo ofício foi conferido via imposição das mãos, que serão responsáveis pelo zelo pastoral destas.

2ª Leitura: Ap 21,1-5a

O capítulo 21 do Livro do Apocalipse descreve as duas primeiras imagens da nova Jerusalém (21,1-8 e 21,9-27). A terceira narrativa encontra-se em Ap 22,1-15. Na narrativa de hoje, a nova Jerusalém é descrita em termos de uma escatologia descendente de transformação, ou seja, uma escatologia intermediária entre a escatologia judaica (descendente de restauração) e a petrina/paulina (ascendente de espiritualização). Portanto, trata-se de uma escatologia primitiva. De fato, a narrativa descreve uma nova Jerusalém descendente do céu e assumindo o lugar da antiga Jerusalém. Tal movimento é resultado da dinâmica pascal de Jesus Cristo, ou seja, por meio da paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo, tudo é transformado, se faz novo. Nesta, o mal não habitará, conforme é observável na lista de vício do v. 8 e a própria morte não mais existirá, pois Cristo a venceu.

Deus se apresenta como um pai amoroso que toma o filho nos braços e consola. De forma indireta, evoca Os 11,1-4, no qual Deus trata Israel como uma criancinha, cercando-a de carinho. Contudo, o contexto geral, é a apresentação do novo povo da aliança. Assim, como Deus morava no meio do seu povo por meio da Tenda do Deserto e do Templo de Jerusalém, agora ele habitará entre os seus cuidando pessoalmente de cada um com amor paternal.

O eixo central é a tipologia Nova Jerusalém e Igreja, como realidades espirituais a serviço e em favor dos homens.

Evangelho: Jo 13,31-33a.34-35

O tema da “glorificação” já tinha aparecido em 12,20-36 e vinculado ao tema do Filho do Homem. A perspectiva da glorificação é da sua universalidade (=gregos), agora, se aproxima do tema da paixão. Destaca-se a quíntupla repetição do verbo “glorificar” (v. 31-32), caso único em todo Novo Testamento:

1. Agora o Filho do Homem foi glorificado

2. e Deus foi glorificado nele

3. Se Deus foi nele glorificado

4. Deus também o glorificará em si mesmo

5. e o glorificará logo

O tema da glorificação entra no contexto intratrinitário. Neste sentido, a missão do Filho se realiza na missão do Pai. Isto evoca no tema do Êxodo. Como o Pai outrora libertou os hebreus da escravidão, agora o Filho liberta a humanidade da escravidão da morte. O tema da libertação, como processo de glorificação divina, tem o seu ápice, portanto, na paixão, morte e ressurreição do Filho. A palavra “agora”, que inicia o paralelismo, possui esta função. “Agora” aparece em 12,27 e 12,31. No Quarto Evangelho “agora” e “hora” habitualmente aparecem junta circunscrevendo o evento pascal (cf. 4,23; 5,25; 12,27) e sua consequência.

A narrativa termina com Lei Régia (cf. Tg 1,24; 2,8) ou seja, o tema do amor. O “amor” na Literatura Joanina se expressa através de ações concretas. Mais exatamente, “Deus é Amor” (1Jo 4,8.21), assim, o amor de Deus se expressa através de atos concretos não meras palavras ou sentimentos, o que pressupõe que o amor cristão é um “amor praticado”, ou seja, ele se expressa através de ações concretas, tendo como ápice, no caso, “doar a vida”. No capítulo anterior, mandamento e palavra foram relacionados ao tema do amor. Agora a perspectiva é ampliada para o amor uns aos outros, como possibilidade para a plena alegria. O doar a vida em favor do outro é a expressão máxima de amor, pois pressupõe gerar/garantir a vida do outro, como na proposta do Bom Pastor (Jo 10).

O eixo central, no entanto, é a missão da Igreja, cujo testemunho antes das Palavra é o amor concreto. A Igreja está no mundo, como realidade espiritual, a serviço da humanidade, anunciando a esperança da vida nova em Cristo Jesus Ressuscitado.

Síntese

Na liturgia deste 5º Domingo, o eixo eclesiológico norteia toda a reflexão. A Igreja (= Povo de Deus; lugar de culto) é estabelecida como sinal de esperança para a humanidade. Portanto, a atividade missionária da Igreja é abrir possibilidade para a o mundo. Como Cristo Ressuscitou, aqueles que o aderem pela fé, conquistam a possibilidade da eternidade. Toda esta dinâmica é realizada como ato de amor. Deus amou tanto o mundo que no deu seu Filho Amado; o Filho tendo amado, entregou a sua própria vida. A Igreja deve ser este sinal do amor para o mundo, testemunha do Ressuscitado.

2º Domingo da Páscoa Ano C 2022

Pe. Gilvan Leite de Araujo

O tempo pascal é iluminado por algumas características eclesiológicas próprias. A primeira tríade, que serve de referencial, é a visão da Igreja enquanto orante, diaconal e missionária. Este eixo referencial continua presente até os dias atuais. A liturgia do 2º Domingo da Páscoa começa a apresentar estas características.

A proposta das leituras deste domingo segue a cronologia evangélica, ou seja, a aparição de Jesus aos Apóstolos oito dias após a ressurreição. No aspecto orante, fica sublinhado o Primeiro Dia da Semana, como momento de reunião dos cristãos, sendo designado como Dia do Senhor e, para nós, o Domingo.

1ª Leitura: At 5,12-16

A primeira parte (Ciclo de Jerusalém) do Livro do Atos dos Apóstolos narra o início da missão da Igreja após o Pentecostes. Esta Igreja se apresenta como servidora, orante e missionária. Cada evento dos apóstolos narrado possui uma pequena conclusão do seu significado para a Igreja (1,42-47; 4,32-35 e 5,12-16…). Portanto, a 1ª Leitura de hoje é uma pequena conclusão da Generosidade de Barnabé (4,36-37) e da Fraude de Ananias e Safira (5,1-11), ou seja, modelos antagônicos de vida cristã. Barnabé confia nos Apóstolos, colocando seus bens em suas mãos, enquanto o casal Ananias e Safira, desconfia retendo parte do dinheiro como uma segurança. No conjunto, na verdade, está a confiança no Espírito Santo, que opera por meio dos Apóstolos, visibilizada nos numerosos prodígios descritos na 1ª Leitura. Além disso, os Apóstolos se comportam como homens de Deus, fiéis à missão, na simplicidade de vida e no zelo pelo Igreja.

2ª Leitura: Ap 1,9-11a.12-13.17-19

O esquema catequético do 2º Domingo da Páscoa é perfeito quando relaciona o Livro do Atos dos Apóstolos como o Apocalipse de João. O primeiro descreve a práxis da Igreja Primitiva, enquanto o segundo descreve a sua espiritualidade. Portanto, ambos se completam e não deveriam ser vistos separadamente, como muitos tentam fazer. Aliás, isto significa que o Apocalipse não é uma obra sobre o fim do mundo, mas sobre o início da Igreja, no qual descreve a vida mística e espiritual das comunidades cristãs.

A 2ª Leitura tem início com a descrição de João na ilha de Patmos. Nada diz que ele esteja encarcerado ou exilado, apenas narra que lá se encontra o vidente por causa da missão.

O ponto fundamental da leitura é a experiência mística que ocorre no Dia do Senhor. Portanto, o destaque está na dimensão orante, momento o qual ele recebe a missão de narrar por escrito o que lhe será revelado. A visão do vidente é do próprio Ressuscitado, com trajes reais (=dignidade do Senhor), que se manifesta a ele.

O Dia do Senhor fica relacionado com o momento litúrgico. A comunidade cristã que se reúne no Dia do Senhor, para celebrar o Ressuscitado. A mesma relação se encontra no Atos dos Apóstolos e nos evangelhos.

Evangelho: Jo 20,19-31

A moldura da narrativa é o Dia do Senhor, no qual se encontra a comunidade cristã reunida. Novamente o foco é a comunidade reunida no Dia do Senhor, no qual o próprio Ressuscitado se manifesta em meio a sua comunidade. A narrativa se desenvolve num intervalo de oito dia, fixando o tema do “primeiro dia da semana”.

O Ressuscitado se manifesta com as marcas da paixão. Não se trata de um fantasma, mas do corpo glorificado, capaz até de se alimentar. Na primeira aparição, o Senhor confere aos Apóstolos o Dom do Espírito Santo e, com este, o atributo do Pai, ou seja, o poder de perdoar os pecados. Isto é fundamental para a unidade da Igreja e para permitir que todos sejam aptos de Deus. A partir deste momento a absolvição dos pecados assume uma prerrogativa sacramental. Assim, a remissão só é possível por meio sacramental, outro meio seria um tentar a Deus.

A segunda aparição ocorre justamente oito dia após, ou seja, novamente no primeiro dia da semana. Desta vez, Tomé, ausente na primeira vez, agora é convidado pelo Senhor a confirmar a sua fé. Na teologia joanina, os apóstolos, discípulas e discípulas são testemunhas oculares. Agora, eles testemunharão por meio da palavra anunciada. A fé, assim, se dará por meio do anúncio.

A reação de Tomé é fundamental. Diante do Ressuscitado, ele reconhece o Senhor como o Deus de Israel, ou seja, Jesus é o “meu Senhor/Adonai” (=YHWH) e o “meu Deus” (=Elohim). Todas as tradições de Israel a respeito de Deus são aplicadas por Tomé à pessoa de Jesus. Portanto, quem é o Ressuscitado? Deus!

O autor do evangelho reafirma esta grande profissão de fé de Tomé dizendo que “Estes… foram escritos para crerdes que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome” (Jo 20,31).

No conjunto das leituras, o destaque é para a comunidade reunida para celebrar no Dia do Senhor. Evidencia-se o aspecto orante da comunidade e sua consequência, manifesta nos sinais e prodígios que derivam da liturgia cristã circunscrita no Cristo Ressuscitado.

 

Semana Santa Ano C 2022

Pe. Gilvan Leite de Araujo

O Domingo de Ramos

Na celebração do Domingo de Ramos converge a tradição jerosoluminatana da procissão de ramos, proveniente da Festa das Tendas, que se torna o pano de fundo para a Entrada Triunfal de Jesus em Jerusalém. Une-se a celebração a tradição romana que orienta os fiéis com a liturgia da palavra centrada no tema da Paixão do Senhor.

Leva-se em conta que o complexo festivo da Festa das Tendas será destrinchado nas celebrações da Semana Santa. Disto advém o costume da procissão de Ramos (domingo) junto com a prisão de Jesus no Monte das Oliveiras (Sexta-Feira Santa) que possuem a função de identificar que Jesus é de fato o Messias, segundo a profecia de Zc 9 e 14. O Salmo 118 serve de moldura para Semana Santa (Domingo de Ramos; Sábado-Santo; Domingo de Páscoa). Proveniente, ainda, da Festa das Tendas será a Benção do Fogo e a Benção da Água, durante a Liturgia do Sábado Santo. Á Festa Judaica das Tendas é importante no complexo da Semana Santa pelos seguintes motivos: a) é a festa da expectativa messiânica de Israel; b) possui contexto escatológico; c) é a festa da eternidade; e, acima de tudo, d) é a Festa de Deus por excelência, entre outras características.

Características do Domingo de Ramos

No Domingo de Ramos, a primeira parte consta do Evangelho que narra a Entrada de Jesus em Jerusalém (Lc 19,28-40), seguido da procissão em honra de Cristo Rei (cf. Sl 118).

 

Características:

Procissão Judaica de Ramos Momento da manifestação do rei-messias (Zc 14)
Monte da Oliveiras Lugar da Manifestação do rei-messias (Zc 14,4)
Jumentinho Indicação da dignidade real do rei-messias (1Rs 1,28-40; Zc 9,9)
Qualidades do rei-messias justo, vitorioso, humilde e guerreiro (Zc 9,9-10)

 

Na segunda parte da liturgia, narra-se o tema do Servo Sofredor na Primeira Leitura (Is 50,4-7), com o Salmo do Abandono na Cruz (Sl 21), a segunda Leitura é o Hino Cristológico de Fl 2,6-11 e a narrativa da Paixão (Lc 22,14-23,56). O Hino de Filipenses exalta o “comandante de tropas” que doa a sua vida para salvar o seu povo. Tendo “caído em batalha” ele recebe as honras e dignidades do “herói combatente”. Tal “vitória em batalha” é descrita na narrativa da paixão, que o apresenta a partir da imagem do Servo Sofredor de Isaías que portará consigo a vitória.

Segunda, Terça e Quarta-feira Santa

Mantem-se o caráter Cristológico da quaresma, seguindo a leitura das semanas anteriores. Leituras proféticas de Isaías e evangélicas de João, com exceção da Quarta, quando se narra a Traição de Judas, segundo Mateus (Mt 26,14-25).

Segunda Jo 12,1-11
Terça Jo 13,21-33.36-38
Quarta Mt 26,14-25

Missa Crismal – Quinta-Feira Santa

Habitualmente celebrada na Quinta-Feira, pela manhã, possui um caráter sacerdotal. Lê-se Is 61,11-3ab.6a.8b-9, sobre o Messias consagrado pelo Espírito; Ap 1,5-8 sobre a realeza de sacerdotes por Jesus Cristo A e W; Lc 4,16-21 sobre a missão de Jesus, ungido pelo Espírito, anunciando na Sinagoga de Nazaré.

Tríduo-Pascal

Quinta-Feira Santa: Missa do Lava-Pés

A Primeira Leitura (Ex 12,1-8.11-14) recorda o ambiente pascal no qual se desenvolverá a Ceia de Jesus e o caráter pascal de sua imolação. A segunda (1Cor 11,23-26) transmite o ensinamento Apostólico a respeito da Instituição da Eucaristia e o Evangelho de João introduz o tema da Caridade (Jo 13,1-15).

Sexta-Feira Santa: Celebração da Paixão

A estrutura atual, fruto de uma síntese de diferentes tradições pode ser justificada deste modo:

Paixão Proclamada Liturgia da Palavra
Paixão Invocada Orações Solenes
Paixão Venerada Veneração da Cruz
Paixão Comunicada Comunhão Eucarística

 

Após uma breve e austera procissão penitencial é proclamada a Paixão nesta perspectiva:

1ª Leitura: Is 52,13-53,12 – A Profecia do Servo de Javé

2ª Leitura: Hb 4,14-16;5,7-9 – Obediência do Filho

Evangelho: Jo 18,1-19,42 – Paixão de Jesus

Na Primeira Leitura lê-se a proclamação profética do Servo do Deutero-Isaías, realizada na Paixão de Jesus. Na Segunda Leitura a Carta aos Hebreus aborda, em perspectiva sacerdotal a obediência do Filho. João narra “a liturgia” da Cruz, onde Jesus Imolado aparece em sua exaltação sobre a Cruz, o Cordeiro Imolado e Rei.

Sábado Santo: Vigília Pascal

A Proclamação da Palavra de Deus acontece a Luz do Cristo Ressuscitado, centro do Cosmo e da História. A Leituras atuais possuem um tríplice caráter simbólico:

a) são Leituras progressivas da História da salvação;

b) possuem um caráter Cristológico e

c) estão em estreita relação com o batismo. A leitura segue o salmo ou cântico, a Oração da Igreja expressa o Sentido Tipológico da leitura.

Antigo Testamento:

1ª Leitura: Gn 1,1-2,2: Criação

Sl 104: As maravilhas da Criação

Oração: memória da criação e da recriação em Cristo

2ª Leitura: Gn 22,1-18: Sacrifício de Abraão

Sl 16: referências messiânicas a Cristo Ressuscitado

Oração: Da fé de Abraão à fé dos batizados em Cristo

3ª Leitura: Ex 14,15-15,1: Passagem do Mar, Páscoa de Israel (Obrigatória)

Cântico: Ex 15: Cântico de Moisés

Oração: Passagem do Mar figura do batismo cristão

4ª Leitura: Is 54,5-14: Fidelidade de Deus Criador e Redentor

Sl 30: Deus misericordioso e salvador

Oração: da paternidade de Deus à esperança da salvação

5ª Leitura: Is 55,1-11: vocação e uma Aliança Eterna

Cântico: Is 12,2.4.6: Deus é nossa Salvação!

Oração: Os Profetas anunciaram a salvação no Espírito

6ª Leitura: Br 3,9-15.32-4,4: No esplendor da Luz Sapiencial

Sl 19: Bondade e beleza da Lei do Senhor

Oração: A Igreja cresça com novos filhos

7ª Leitura: Ez 36,16-17a.18-28: Uma aliança Nova, um coração novo

Sl 42: Sede de Água Viva, do Deus Vivente

Oração: Hoje se cumpre estas promessas

Novo Testamento

8ª Leitura ou Epístola: Rm 6,3-11: Batismo, mistério pascal

Sl 118: A Vitória Pascal de Cristo. Este é o dia que o Senhor fez para nós

Evangelho: Ano C: Lc 24,1-12: Ressurreição

Domingo de Páscoa

A liturgia da palavra se estrutura partindo do Atos do Apóstolos, substituindo o Antigo Testamento, segundo o costume da Igreja Primitiva.

1ª Leitura: At 10,34a.37-43: os Apóstolos, Testemunhas da Ressureição

Sl 118: Este é o dia que o Senhor fez para nós

2ª Leitura:

Cl 3,1-4: Ressuscitar com Cristo

1Cor 5,6-8: Cristo nossa Páscoa foi Imolado

Evangelho:

Missa matutina: Jo 20,1-9: Ressurreição

Missa vespertina: Lc 24,13-35: Discípulos de Emaús

 

A missa matutina do Domingo de Páscoa apresenta o tema do testemunho da Ressurreição de Jesus Cristo. O Discípulo Amado, enquanto sacerdote, mesmo temendo (um levita não pode tocar num cadáver), mas tendo a afirmação de Pedro entra no túmulo, sinal de que este se encontra vazio. A 1ª Leitura confirma os Apóstolos como “Testemunhas” da Ressurreição a partir da pregação de Pedro cujo conteúdo se expressa na 2ª Leitura que converge para a ressurreição de todos que aderem Jesus Cristo pela fé.

A missa vespertina possui o foco sobre o tema do 1º Dia da Semana, como indicativo da identidade cristã, ou seja, reunir-se no 1º Dia da Semana que passa a ser compreendido como “Dia do Senhor” (=Domingo) em virtude da Ressurreição de Cristo.

 

 

5º Domingo da Quaresma Ano C 2022

Pe. Gilvan Leite de Araujo

1ª Leitura 2ª Leitura Evangelho

1º Domingo

Dt 26,4-10

Confissão de fé de Israel

Rm 10,8-13

Confissão de fé cristã

Lc 4,1-13

Tentação do Deserto

2º Domingo

Gn 15,5-12.17-18

Aliança de Abraão

Fl 3,17-4,1

Transformará nosso corpo

Lc 9,28b-36

Transfiguração de Jesus

3º Domingo

Ex 3,1-8a.13-15

“Eu Sou” Presença e Libertação

1Cor 10,1-6.10-12

O caminho de Israel

Lc 13,1-9

Chamado a conversão

4º Domingo

Js 5,9a.10-12

Páscoa na Terra Prometida

2Cor 5,17-21

Reconciliados com Deus em Cristo Jesus

Lc 15,1-3.11-32

O Filho Pródigo

5º Domingo

Is 43,16-21

Eis que faço nova todas as coisas

Fl 3,8-14

Corro para a meta que é Cristo

Jo 8,1-11

A Mulher Adúltera

 

1ª Leitura: Is 43,16-21

A profecia de Isaías anuncia a alegria do retorno. O tempo do castigo acabou. Deus usou de benevolência e proclama o retorno. Is 40 começa com tema próprio desta fase: “consolai, consolai, meu povo” (Is 40,1). Portanto, Is 40-55 é chamado de Livro da Consolação. Deus está suscitando Ciro, o Ungido, como instrumento de libertação.

Nova oportunidade, após a experiência do exílio da Babilônia está sendo dada aos judeus. O retorno para a Terra Prometida é uma nova oportunidade; é o recomeço de tudo.

Outrora, no Sinai, Deus e Israel estabeleceram uma Aliança e confirmaram através da Lei. Como parte do acordo, Deus ofereceu a terra e Israel a si próprio. Contudo, a parte que quebrasse o acordo perderia o direito. 1 e 2Reis avaliam justamente isto, Israel foi infiel e na sua infidelidade perderão a posse da terra. Irão para o exílio. Livro das Lamentações reconhece esta situação e vê o exílio como um tempo de castigo.

Agora, Deus está dando uma nova oportunidade. A culpa foi deixada de lado. É tempo de recomeçar.

2ª Leitura: Fl 3,8-14

Paulo proclama para os filipenses que aquilo que era realidade no passado, antes da conversão, ele considera como lixo. O importante é o novo em Cristo Jesus. Na realidade, Paulo anuncia a sua opção moral. Existe uma nova opção moral baseada em Cristo Jesus, que se torna o seu referencial.

Para o Apóstolo, o que foi outrora não conta mais, o importante é o agora, o tempo presente em Cristo, que o lança para o futuro, que o lança para o céu.

Evangelho: Jo 8,1-11

A narrativa da Mulher Adúltera, entra na liturgia a partir no foco na nova possibilidade que está sendo dado. Existe uma realidade de pecado, mas Jesus não aplica diretamente o juízo da lei, ele propõe uma nova possibilidade. O pecado foi cometido, mas a misericórdia é aplicada.

a) Introdução (7,53-8,2): uma multidão anônima e Jesus se separam para se encontrarem no dia seguinte. Jesus ensina;

b) Escribas, fariseus e Jesus (8,3-6a): os escribas e fariseus armam uma cilada contra Jesus;

c) Jesus, os escribas e fariseus (8,6b-9): Jesus inverte a situação;

d) Jesus e a mulher (8,10-11): Pela primeira vez a mulher assume papel ativo diante da pergunta de Jesus.

v. 2: O estar sentado é a posição própria daquele que ensina

O ensinamento de Jesus é interrompido pelos escribas e fariseus, que lhe apresentam um caso.

Uma mulher é posta no meio e indicada como “adúltera”, portanto, trata-se de uma mulher casada

Mulher Adultera = no meioCristo Crucificado = no meioÁrvore da Vida = no meio do jardim (Gn 2,9; Ap 22,2)

A parte envolvida (homem) no adultério não é descrita;

O lugar do flagrante também não é indicado;

A reação do marido da mulher também não é indicada;

v. 4: A acusação formal

v. 5: Exposição sobre o que a Lei de Moisés ordena a respeito desse tipo de caso

No Decálogo encontra-se um mandamento explícito sobre a questão do adultério (cf. Ex 20,14; Dt 5,18). Além disso, a Torá prevê sanções a respeito do adultério, com agravantes e atenuantes (Lv 20,10-21; Dt 22,22 v. 6a Jesus é posto diante de um dilema = fidelidade à Lei x Misericórdia Divina

v. 6b Jesus se abaixa e põe-se a escrever com o dedo no chão

O abaixar-se de Jesus pode indicar indiferença e recusa de participação numa questão que não lhe compete. Além disso, o escrever no chão com o dedo, pode evocar as seguintes possibilidades relacionadas a Deus:

Quando vejo o céu, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas que fixaste (Sl 8,4) = CRIAÇÃO

Yhwh deu-me então as duas tábuas de pedra, escritas pelo dedo de Deus (Dt 9,10) = LEI

De repente, apareceram dedos de mão humana que se puseram a escrever, por detrás do lampadário, sobre o estuque da parede do palácio real, e o rei viu a palma da mão que escrevia (Dn 5,5) = JUÍZO DIVINO

Contudo, o texto não informa o que Jesus escreve e, diante deste fato, não se pode afirmar o que ele escreve, mas apenas o ato, que o relaciona com Pai = tudo que o Pai faz o Filho o faz igualmente.

v. 7 com a insistência Jesus se levanta e indica uma ação:

Quem dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra!

A resposta de Jesus é estranha, tendo em vista que o público se encontra em Jerusalém para a Festa das Tendas e, ritualmente, se encontram puros, após terem participado da celebração de Yom Kippur (Dia do Perdão) que antecede a celebração. Por outro lado, alguns textos do AT expõe a questão comprometendo os acusadores:

…pelo contrário: deverás matá-lo! Tua mão será a primeira a matá-lo e, a seguir, a mão de todo o povo. Apedreja-o até que morra, pois tentou afastar-te de Yhwh teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão. (Dt 13,10-11)

…então farás sair para as portas da cidade o homem ou a mulher que cometeu esta má ação, e apedrejarás o homem ou a mulher até que morra. Somente pela deposição de duas ou três testemunhas poder-se-á condenar alguém à morte; ninguém será morto pela deposição de uma só testemunha. A mão das testemunhas será a primeira a fazê-lo morrer, e depois a mão de todo o povo. Deste modo extirparás o mal do teu meio. (Dt 17,5-7)

Em síntese: quem aplicar a condenação estando em pecado contra a Lei se torna diretamente réu da própria Lei. A mão que condena e aplica a pena deve ser pura, caso contrário incorrerá em crime contra a própria Lei, ou seja, quem exige uma aplicação rigorosa da Lei deve aplicá-la antes a si mesmo.

v. 8 Inclinando-se de novo, escrevia na terra.

v. 9 Eles, porém, ouvindo isso, saíram um após outro, a começar pelos mais velhos. Ele ficou sozinho e a mulher permanecia lá, no meio.

A indicação de que os mais velhos são os primeiros a retirarem do local remete ao ensino da Lei os quais eram responsáveis de ensinar aos mais jovens. Lógico que entra a questão sobre o que era ensinado. A pergunta de Jesus ao legista: “Que está escrito na Lei? Como lês?” (Lc 10,26). Esta é uma referência fundamental para um estudioso: como compreendo o que está escrito; porque disto provem a aplicação, que pode resultar em rigorismos, fundamentalismos, rubricicismos…

v. 10 Então, erguendo-se, Jesus lhe disse: “Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?

É a primeira vez que alguém dirige a palavra à mulher. A observação de que não tem mais ninguém em volta deles indica que a acusação foi retirada.

v. 11 Disse ela: “Ninguém, Senhor”. Disse, então, Jesus: “Nem eu te condeno. Vá e, a partir de agora, não peques mais!”.

A resposta de Jesus : “Vá e, a partir de agora, não peques mais!” (v. 11)

Mas quanto ao ímpio, se ele se converter de todos os pecados que cometeu e passar a guardar os meus estatutos e a praticar o direito e a justiça, certamente viverá: ele não morrerá. Nenhum dos crimes que praticou será lembrado. Viverá como resultado da justiça que passou a praticar. Porventura tenho eu prazer na morte do ímpio? – oráculo do Senhor Ywhw. – Porventura não alcançará ele a vida se se converter de seus cantinhos? Por outra parte, se o justo renunciar à sua justiça e fizer o mal, à imitação de todas as abominações praticadas pelo ímpio, poderá ele viver fazendo isto? Não! Toda a justiça que praticou já não será lembrada! Antes, em virtude da infidelidade que praticou e do pecado que cometeu, morrerá. Entretanto dizeis: “O modo de agir do Senhor não é justo”. Pois ouvi-me, ó casa de Israel: será o meu modo de proceder errado? Não será antes o vosso modo de proceder que não está certo? (Ez 18,21-25)

Síntese da Liturgia

O foco deste domingo é a nova oportunidade que está sendo oferecido. Assim, finalizando a catequese quaresmal encontrou-se os seguintes passos:

1º Domingo da Quaresma: Jesus é aquele que venceu o Diabo e que vencerá a morte;

2º Domingo da Quaresma: mas quem é este Jesus? Ele é o Filho, que se afirmar como o Senhor, o Eleito;

3º Domingo da Quaresma: Sabendo em quem deposito a minha fé estou pronto para receber os sacramentos da Iniciação Cristã: travessia do mar/Batismo; Maná do deserto/Eucaristia; água que sai da rocha/Crisma;

4º Domingo da Quaresma: recebendo os sacramentos, tendo assim retornado agora entro para a casa do Pai, me torno filho amado celebrado pela festa.

5º Domingo da Quaresma: Tendo sido acolhido por Deus, abandono o passado e avanço para frente, pois o importante, agora, é Jesus Cristo, o meu Salvador (tema das três leituras), o que passou não importa mais. Foi-me dado uma nova oportunidade.

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** A MULHER ADÚLTERA NO EVANGELHO DE JOÃO-Gilvan Leite de Araujo - em PDF

 

4º Domingo da Quaresma Ano C 2022

 

1ª Leitura 2ª Leitura Evangelho

1º Domingo

Dt 26,4-10

Confissão de fé de Israel

Rm 10,8-13

Confissão de fé cristã

Lc 4,1-13

Tentação do Deserto

2º Domingo

Gn 15,5-12.17-18

Aliança de Abraão

Fl 3,17-4,1

Transformará nosso corpo

Lc 9,28b-36

Transfiguração de Jesus

3º Domingo

Ex 3,1-8a.13-15

“Eu Sou” Presença e Libertação

1Cor 10,1-6.10-12

O caminho de Israel

Lc 13,1-9

Chamado a conversão

4º Domingo

Js 5,9a.10-12

Páscoa na Terra Prometida

2Cor 5,17-21

Reconciliados com Deus em Cristo Jesus

Lc 15,1-3.11-32

O Filho Pródigo

 

No 1º Domingo do Quaresma foi apresentado Jesus Cristo como o Redentor a medida que ele venceu o diabo e vencerá a morte (Domingo de Páscoa). Portanto, Ele é o Senhor e seu senhorio é proveniente do seu poder de dar a vida para depois resgatá-lo. Deste modo a fé cristã é depositada naquele que é capaz de vencer o diabo e a morte. Mas quem é este Jesus? O 2º Domingo da Quaresma o apresentou como o Eleito e como o Filho de Deus. Assim, Jesus é o continuador do trono eterno de Davi e, ao mesmo tempo, enquanto Filho é Deus. No 3º Domingo da Quaresma, consciente de quem é Jesus, a catequese apresentou o caminho batismal, através da vocação de Moisés e da vocação de Israel. Tendo atravessado o mar, os Hebreus se tornaram um povo (=Israel). Israel foi alimentado por um pão espiritual (=maná) e saciado a sede, por uma bebida espiritual (=água da rocha) e caminhavam no deserto sob a proteção de Deus (=nuvem). Contudo, se comportaram mal diante de Deus e, aqueles que saíram, não entraram na Terra Prometida: “Quarenta anos esta geração me desgostou, e eu disse: Sempre os corações errantes, que não conhecem meus caminhos. Então eu jurei na minha ira: jamais entrarão no meu repouso!” (Sl 95[94],10-11).

Os cristãos, são aqueles que foram batizados e, tendo deixado o pecado, entraram na vida da graça. Estes são alimentados pelo pão espiritual (=Corpo de Cristo) e são saciados pela bebida espiritual (=Espírito Santo). Mas, nos comportamos como murmuradores? A liturgia termina afirmando que ainda existe uma oportunidade: “Senhor, deixa-a ainda este ano para que eu cave ao redor e coloque adubo. Depois, talvez, dê frutos” (Lc 13,8-9).

1ª Leitura: Js 5,9a.10-12

O Êxodo possui o seguinte esquema: Egito, travessia do mar/Aliança-Lei; Caminho do Deserto; travessia do Jordão; Terra Prometida. Deste esquema, a narrativa de hoje descreve o momento que o Povo Eleito ingressa na Terra Prometida. É a transição entre a 1ª Páscoa na saída do Egito e a 2ª Páscoa na Terra Prometida. A 1ª Páscoa foi celebrada em meio a angústia e a esperança. A 2ª Páscoa na Terra Prometida é celebrada em meio a alegria e a esperança da vida nova.

No Egito não havia esperança, mas Deus veio em seu socorro e lhes concedeu nova oportunidade, nova vida. A entrada na Terra Prometida é a concretização desta promessa.

A 1ª Leitura foca a possibilidade do recomeço. Deixar o passado e abraçar o presente que vislumbra um futuro feliz. Aquele que libertou Israel, continua hoje realizando as suas maravilhas.

2ª Leitura: 2Cor 5,17-21

Paulo exorta da comunidade de Corinto a se deixar reconciliar, a acolher a libera graça de Deus. Internamente, a comunidade de Corinto está se comportando com os vícios de outrora (brigas, fofocas, falsas acusações…). Diante disto, Ele afirma não poder oferecer alimento sólido, pois a comunidade ainda se comporta como pessoas carnais e não espirituais.

Torna-se necessário um processo de conversão ao Evangelho. De fato, são cristãos, mas se comportam como pagãos. Tendo em vista toda esta realidade, Paulo convida a retornar para o Senhor, a se deixar reconciliar.

Evangelho: Lc 15,1-3.11-32

No capítulo 15 de Lucas, Jesus narra três parábolas que envolvem o tema da misericórdia: 1) a ovelha perdida; 2) a dracma perdido; e 3) o filho perdido. Na primeira parábola, entre cem ovelhas o pastor vai em busca daquela que se perdeu. A relação é 1/100. Na segunda parábola uma mulher possui dez moedas e perde uma. A relação é 1/10; e na terceira parábola o pai espera a volta do filho que se perdeu. A relação é 1/2. Percebe-se um crescente que vai de um centésimo, um décimo e cinquenta e um de dois. Portanto, a perda do filho possui um peso substancial na relação paterna. Além disso, o encontro da ovelha, da moeda e do filho é marcado pela alegria: “é preciso alegrar-se”. Nas três parábolas Jesus conclui com o tema da alegria celeste diante do pecador que se converte, pois, para este a salvação chegou e foi livre da morte.

Quanto a terceira parábola, ou seja, a do Filho Perdido, ele pode ser lido a partir do critério individual ou social.

Na perspectiva social, a parábola do filho perdido pode ser lida a partir da história do Povo Eleito. Após a morte de Salomão, o reino foi dividido em dois: Reino do Norte (=Israel) e Reino do Sul (=Judá). Os livros dos Reis (1 e 2Reis) narram a história do Reino do Norte e Reino do Sul, até a queda do norte (722 a.C.) e reino do sul (589 a.C.). Israel é concebido como o mais novo e Judá, como o mais velho. Aplicado à parábola, o filho mais novo (Samaria/Galileia) pecou, mas se abre para a misericórdia de Deus. O filho mais velho é Judá, ele acolherá a misericórdia?

Na perspectiva individual, a parábola apresenta dois filhos ingratos. O mais jovem, é egoísta e individualista. O importante é a sua realização pessoal. Ele enxerga o pai como alguém morto: “dá-me a parte da herança que me cabe”. O segundo filho enxerga o pai como um patrão ingrato a quem deve apenas obedecer: “Há tantos anos que eu te sirvo, e jamais transgredi um só dos teus mandamentos, e nunca me deste um cabrito para festejar com meus amigos”. Entre os filhos encontra-se um pai amoroso que respeita a liberdade dos filhos, mas é incompreendido pelos filhos.

No primeiro caso, a escolha errante do filho permitiu que ele reconhecesse quem de fato é o seu pai: “Quantos empregados de meu pai têm pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome!” E não somente isto, ele fará a experiência da sua misericórdia: “Ele estava ainda ao longe, quando seu pai o viu, correu e lançou-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos”.

Quanto a atitude do pai em relação ao filho mais novo: “Ide depressa trazei a melhor túnica e revesti-o com ela, ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés”. Jesus apresenta, num primeiro momento, três atitudes do pai: túnica, anel e sandálias. Seguira o cordeiro e a festa.

Túnica: indica condição moral ou social. Aqui pode se entender o perdão concedido pelo pai.

Anel: o pai restitui a dignidade de filho, não de empregado.

Sandálias: todos os bens perdidos são dados novamente ao filho. O uso de sandálias implica de posse, em sentido jurídico, conhecida como Lei do Levirato (cf. Dt 25,5-10), mas que se estende para posse de propriedade em geral (cf. Rt 4,7).

O filho mais novo age como alguém que se converteu: Ele confessa a sua culpa, sem rodeios: “pequei contra Deus e contra ti”. O não se justificar, mas o assumir a culpa está em relação com o final da 2ª Leitura, domínio sobre o pecado.

Jesus termina a parábola deixando uma pergunta no ar: o filho mais velho compreendeu e retornou ao pai? Possivelmente, Jesus tenha deixado aberta para todos nós, ou seja, somo aqueles que permanecemos “fiéis” a fé cristã, mas compreendemos Deus como um Pai bondoso e misericordioso e nele confiamos verdadeiramente? Esta questão entra em contato com a 2ª Leitura, uma comunidade cristã, mas que se comporta com atitudes carnais e não espirituais.

 

 

2º Domingo da Quaresma Ano C 2022

Pe. Gilvan Leite de Araujo

1ª Leitura 2ª Leitura Evangelho

2º Domingo

Gn 15,5-12.17-18

Aliança de Abraão

Fl 3,17-4,1

Transformará nosso corpo

Lc 9,28b-36

Transfiguração de Jesus

 

1ª Leitura

Após a Aliança de Deus com Noé, esta é a segunda Aliança que Deus estabelece. Na primeira Aliança Deus promete à Noé não mais destruir a terra por meio das águas. A segunda Aliança, estabelecida com Abraão, segue cinco promessas de Deus à Abraão por sua fidelidade demonstrada através dos seus atos.

A Aliança de Deus com Abraão compreende, portanto, estas cinco promessas: 1) genealogia; 2) descendente; 3) terra; 4) presença e 5) bênção (cf. Gn 15-17). Assim, alinhado com Abraão, tais promessas se estende aos seus descendentes. Em primeiro lugar à Isaac, Jacó e José. De José para os filhos de Israel e, dos filhos de Israel, para todos os povos, por meio de Jesus Cristo, o Filho Eleito.

Leva-se em conta que Abraão é anterior à Aliança estabelecida com Moisés, considerada a Aliança por excelência, até a plenitude dos tempos, no qual, uma Aliança plena e eterna será estabelecida através de Jesus Cristo.

Aproximando a Nova Aliança, realizada por meio de Jesus Cristo, à Aliança estabelecida com Abraão, a catequese que afirmar que a Nova Aliança se abre, de fato, a todos os povos, línguas e nações, tendo em vista que Abraão se configura como pai da fé e dos povos, ou seja, enquanto as promessas feita por Deus a Abraão assume uma abrangência universal. Tal universalidade se realiza na pessoa de Jesus Cristo, hoje, na liturgia, apresentado como o Filho e o Eleito. Portanto, o foco da leitura é a universalidade.

2ª Leitura

Uma colônia formada por legionários romanos tinha como base os princípios da hierarquia militar, o qual pressupõe a organização e a observância de ordens superiores. Paulo convida os filipenses e terem como referencial Jesus Cristo, a quem ele mesmo se tornou imitador e obediente.

As ideias de disciplina militar, treino para a batalhar, o moral e a coragem são agora transferidas para a pessoas de Jesus, o herói que derramou seu sangue em batalha (Fl 2,5-11), salvando os seus e garantido a paz. Jesus se torna o modelo a ser seguido, Paulo é o “valente” observador que se torna referência para os demais. Como evangelizador ele está pronto para a missão, assim como um soldado deve estar pronto para a batalha.

Nesta batalha, se encontra aqueles que se comportam como “inimigos da cruz de Cristo”, cuja derrota já esta anunciada. Os cristãos, no entanto, se comportam, aqui na terra, como cidadãos do céu, porque batalham como coragem aguardando o Salvador que tornará seus corpos semelhantes ao seu corpo glorioso, ou seja, o cristão espera a feliz ressurreição, reservada para aqueles que lutam com coragem neste mundo, sem jamais perder a esperança da vitória definitiva.

Evangelho

Jesus, enquanto Filho fora apresentado no batismo (3,21-22: “…no momento em que Jesus, também batizado, achava-se em oração, o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre ele em forma corporal, como pomba. E do céu veio uma voz: Tu és o meu Filho; eu, hoje, te gerei!”) e na tentação do deserto (4,1-13: “Disse-lhe, então, o diabo: Se és filho de Deus, manda que esta pedra se transforme em pão… Se és Filho de Deus, atira-te para baixo”). Contudo, o contexto da narrativa da transfiguração é superior em dois aspectos: 1) Não se trata da revelação do Filho, mas da manifestação da sua Glória e 2) a filiação é garantida diante da profecia da paixão.

Na tentação do deserto o diabo induzia Jesus a manifestar a sua glória em termos de poder divino: “Conduziu-o depois a Jerusalém, colocou-o sobre o pináculo do Templo e disse-lhe: Se és Filho de Deus, atira-te para baixo, porque está escrito: Ele dará ordem a seus anjos a teu respeito, para que te guardem. E ainda: E eles te tomarão pelas mãos, para que não tropeces em nenhuma pedra” (Lc 4,9-11). Na transfiguração a glória de Jesus é manifesta em termos de poder para entregar a vida = paixão/ressurreição, portanto, o anúncio que acompanha a transfiguração: “É necessário que o Filho do Homem, seja rejeitado pelos anciãos, chefes dos sacerdotes e escribas, seja morto e ressuscite ao terceiro dia” (9,22). Entre a proposta do diabo e a proclamação de Deus, através da proclamação de Jesus, se estabelece uma inversão do conceito de Glória que manifesta Jesus enquanto “Senhor”. O poder de Jesus não se expressa em termos de autoritarismo pessoal, mas em termos de poder diaconal: dar a vida em favor de muitos. A soberania do Senhor é em favor do mundo, não de dominação.

Este conceito retorna na narrativa dos discípulos de Emaús, no qual Jesus afirma aos discípulos “não era preciso que o Cristo sofresse tudo isso e entrasse em sua glória?” (24,26). Na perspectiva lucana a glória do Filho se manifesta no evento pascal: paixão, morte e ressurreição.

A transfiguração lucana equipara Jesus à Moisés (cf. Ex 34,29s), não somente enquanto o “novo Moisés”, mas pela experiência que ele faz diante de Deus no Monte: “Quando Moisés desceu da montanha do Sinai, trazendo nas mãos as duas tábuas do Testemunho, sim, quando desceu da montanha, não sabia que a pele de seu rosto resplandecia porque havia falado com ele. Olhando Aarão e todos os filhos de Israel para Moisés, eis que a pele de seu rosto resplandecia; e tinham medo de aproximar-se dele” (Ex 34,29-30).

Em Lc 9,27 Jesus diz “Eu vos digo… que alguns dos que aqui estão presentes não provarão a morte até que vejam o Reino de Deus”. Na sequência é dito que “Pedro e os companheiros estavam pesados de sono. Ao despertarem, viram sua glória e os dois homens que estavam com ele” (9,32), enquanto anteriormente “Herodes… disse: A João, eu o mandei decapitar. Quem é esse, portanto, de quem ouço tais coisas? E queria vê-lo” (9,9). No contexto lucano, os “homens de boa vontade” estão abertos a escutar e ver Jesus (2,14), enquanto outros não. De fato, “Herodes ficou muito contente; havia muito tempo que queria vê-lo… Herodes, juntamente com a sua escolta, tratou-o com desprezo e escárnio; e, vestindo-o com uma veste brilhante, remeteu-o a Pilatos” (23,8.11). Curiosamente, Jesus, diante do Pai, é transfigurado e suas roupas ficaram “fulgurantes de brancura”, enquanto Herodes revesti-o com uma “veste brilhante” (23,9). Além disso, o Pai proclama que Jesus é o Filho o Eleito (9,35), enquanto Herodes o trata com desprezo e escárnio (23,11).

Diante do Pai, Jesus é exaltado e diante de Herodes e Pilatos é humilhado. Mas, no conjunto da transfiguração, Jesus, Moisés e Elias “falavam do seu êxodo que iria se consumaria em Jerusalém” (9,31). Portanto, a transfiguração está em vista do evento pascal. Além disso, Moisés e Elias são descritos na tradição veterotestamentária como os “porta-vozes” de Deus. Israel deveria escutar Moisés. Agora, Deus afirma que ele fala por meio do seu Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas. Israel é, assim, convidado à ouvir o Filho

 

Leva-se em conta, ainda, a ação de Pedro, que é importante na narrativa. De fato, ele vê na transfiguração o início dos tempos messiânicos que teria como momento justamente durante a Festa das Tendas, o que o leva a sugerir a construção das tendas festivas que abrem a solenidade. Por outro lado, Jesus expressa que a sua messianidade se manifestará na paixão-ressurreição. Assim, se torna compreensível outro rito da Festa, ou seja, a Entrada Triunfal de Jesus em Jerusalém, que ocorre justamente durante a Festa das Tendas (Lc 19,28-38), tendo o jumentinho a evocação da realeza do Messias, portanto, trata-se de um messias real, outro Davi (cf. 1Rs 1). Assim, Jesus é o Eleito como Davi é o Eleito: “Fiz uma aliança com meu eleito, eu jurei ao meu servo Davi: estabeleci tua descendência para sempre, de geração em geração construo um trono para ti… Encontrei o meu servo Davi e o ungi com meu óleo santo… Ele me invocará: Tu és meu pai, meu Deus e meu rochedo salvador! Eu o tornarei meu primogênito o altíssimo sobre os reis da terra” (Sl 89,4-5.21.27-28)

Síntese

A 1ª Leitura nos coloca na linha de “herdeiros da promessa” que se realiza por meio de Jesus Cristo, o Filho Eleito. A Promessa feita à Abraão como a Nova Aliança estabelecida por meio de Jesus Cristo possuem contexto Universal. O Filho Eleito concretiza tal eleição levando a plenitude a obra criadora e libertadora do Pai (Evangelho) e se tornando o modelo e a esperança para todos os povos (2ª Leitura).

 

1º Domingo da Quaresma Ano C 2022

 

1ª Leitura 2ª Leitura Evangelho

1º Domingo

Dt 26,4-10

Profissão de fé de Israel

Rm 10,8-13

Profissão de fé cristã

Lc 4,1-13

Tentação do Deserto

A fé de Israel // a fé em Cristo; Jesus tentado e vencedor;

 

 

1ª Leitura: Dt 26,4-10

A 1ª leitura proposta para o 1º Domingo da Quaresma apresenta a Liturgia da Festa de Pentecoste (Shavuot).

A Festa Judaica de Pentecoste possui um elo constitutivo com a Festa da Páscoa, como descrevem os relatos do Pentateuco. Tal vínculo também é verificável no ciclo pascal cristão. Apesar de estar vinculado a Páscoa, Pentecoste permanecerá, ao longo da história de Israel, uma solenidade tipicamente agrícola. Agradecia-se a Deus pelos dons da terra. Seu caráter histórico não é claro e, ao longo da história, muitas vezes foi desconsiderada. Contudo, ela se sempre se configurou como uma festa de peregrinação como Páscoa de Tendas, cuja tríade (Páscoa, Pentecoste e Tendas) possuíam origem agrícola e se tornarem festas que faziam memória do Êxodo.

Assim, a festa conserva o seu caráter agrícola de festa de colheita das primícias, mesmo após ser historizada, pelo cristianismo, como uma solenidade que celebrava a Aliança e a Lei. O Livro de Rute, cujo relato acontece durante a colheita, era lido solenemente. Nos vilarejos se reunia um cortejo de peregrinos que subiam para Jerusalém a fim de oferecer os dons da colheita a Deus. Quando chegavam as portas da cidade, os sacerdotes e levitas vinham ao encontro dos peregrinos, guiando-os até o Templo, onde entravam em procissão, portando seus dons e entoando cantos de alegria. Os levitas entoam hinos de louvor. Em seguida as primícias eram entregues nas mãos dos sacerdotes e se pronunciava a solene gratidão ao Deus de Israel, repetindo as palavras de Dt 26,3-10:

Declaro hoje ao Senhor meu Deus que entrei na terra que o Senhor, sob juramento, prometera aos nossos pais que nos daria! [após a entrega das primícias prossegue o peregrino] Meu pai era uma arameu errante: ele desceu ao Egito e ali residiu com os egípcios, porém, nos maltrataram e nos humilharam, impondo-nos uma dura escravidão. Gritamos então ao Senhor, Deus dos nosso pais, e o Senhor ouviu a nossa voz: viu nossa miséria, nosso sofrimento e nossa opressão. E o Senhor nos fez sair do Egito com mão forte e braço estendido, em meio a grande terror, com sinais e prodígios, e nos trouxe a este lugar, dando-nos esta terra, uma terra onde mana leite e mel. E agora, eis que trago as primícias dos frutos do solo que tu me deste, Senhor.

Após esta solene prece os dois pães da primícia (cf. Lv 23,17) eram ofertados como primícias da nova colheita, como gratidão pela proteção de Deus no passado e no futuro, e porque Deus provê o bem do seu povo.

A importância desta narrativa da Festa de Pentecoste na liturgia de hoje é a Profissão de Fé de todo judeu que subia anualmente para o Templo de Jerusalém, a fim de participar da solenidade. Proclamando o Credo de Israel, todo judeu fazia memória do Êxodo e de como Deus agiu em se favor e continuará ao longo da sua história.

2ª Leitura: Rm 10,8-13

A primitiva profissão de fé cristã, como verificável na Carta aos Romanos destaca os temas do Senhorio e da Ressurreição de Jesus. Reconhecer Jesus enquanto “Senhor” (ku,rioj) possui valor messiânico. Fala-se aqui de um messianismo real. Portanto, proclamar Jesus como Senhor é reconhecer a sua soberania. Mas, de onde advém a sua soberania? Justamente do se ato soberano de doar a vida livremente para depois resgatá-la, que o configura como “Salvador” e, principalmente, “Redentor”.

As narrativas neotestamentárias aproximam “Senhor” com “Salvador”. Tal vínculo que sublinhar o exposto acima sobre o poder soberano de Jesus para salvar dando a própria vida.

Evangelho: Lc 4,1-13

Enquanto Messias, Jesus deverá, entre algumas missões, as seguintes: a) saciar a fome dos povos; b) estabelecer o Reinado do Pai; e c) manifestar a Glória de Deus. O diabo propõe facilitar as coisas e usar em proveito próprio, ou seja, a) saciar a fome de Jesus; b) estabelecer o reinado de Jesus; e, c) Manifestar a glória de Jesus.

As diversas correntes messiânicas possuíam estruturas própria. O Messianismo Real Davídico se dividia entre um descente de Davi, portanto, via genealogia, e um novo Davi. Este messianismo se baseava nos feitos de Davi: a) proteção territorial da Terra Prometida contra invasões estrangeiras; b) unificação da Terra Prometida; c) resgate das tradições culturais e espirituais de Israel; d) resgate e fortalecimento dos juízes de Israel, enquanto conselho de estado; e) resgate e fortalecimento do sacerdócio de Yhwh; f) criação da Cidade de Davi / Jerusalém. Todas estas prerrogativas serão aplicadas ao futuro Ungido. Tecnicamente, o Messias deverá a) reestabelecer o Reinado de Deus; b) Manifestar a Glória Divina; e c) Saciar a fome do povo = sobriedade.

A Tentação do Deserto está em vista da missão de Jesus. Enquanto Messias (Cristo) ele deverá cumprir uma missão inerente ao messianismo. O diabo se apresenta como o facilitador, mas o contexto é a individualização e não o comunitário como pressupõe a missão de Jesus, ou seja, não está em vista dele, mas do mundo.

Na tentação de Adão e Eva, o diabo coloca em dúvida a palavra de Deus, ou seja, ele confunde a pessoa. Apresenta Deus como alguém repressor, que tira a liberdade e que não quer o bem da pessoa, apenas oprimi-la.

Assim, o diabo não apenas tenta “facilitar” a missão de Jesus, mas colocá-lo em oposição ao Pai, em proveito próprio.

O tema da Tentação do Deserto se aproxima do tema do Pecado Original, que possui a seguinte estrutura: a) o diabo apresenta o pecado como algo bom para o indivíduo; b) tendo pecado, o diabo passa a acusá-lo; c) pecando, a pessoa se isola e começa a condenar o outro como culpado pelo pecado. Esta é a estrutura do pecado que Paulo trabalhará, por exemplo, em Rm 6. Na base do pecado esta o fechamento da pessoa em si mesmo, o outro não importa, é uma ameaça. Esta estrutura é o que Paulo chama de “corpo do pecado”. Qual é a eficácia da cruz diante deste esquema? Jesus, que não cometeu pecado, se faz corpo do pecado e o destrói na cruz. Jesus não se justifica, mas assume o pecado. Sua eficácia é o silêncio da cruz: silêncio do Filho e silêncio do Pai.

O diabo apresenta o pão; os reinos e a glória como algo bom para Jesus, excluindo o Pai e o mundo; o importante é Jesus, o resto não importa. Isto está muito presente nas pregações cristãs atuais, no qual o foco é o indivíduo: o importante é que a pessoa seja feliz, o resto não importa. O Senhorio de Jesus se manifesta quando ele demonstra que não veio realizar as suas vontades, mas servir o Pai em favor do mundo. O centro da sua missão não é a sua autorrealização, mas cumprir a vontade daquele que o enviou. Isto vai diretamente contra à proposta do diabo.

Cumprindo a vontade do Pai, na liberdade, Jesus se doa livremente, com plena capacidade de doar a vida para depois resgatá-la, bem como, tornar possível a todas as pessoas humanas, por meio dele, se tornarem filhos e filhas de Deus.

Síntese

A liturgia do 1º Domingo da Quaresma sublinha o tema da Profissão de Fé. Neste sentido, o que levaria alguém a proclamar a sua fé na pessoa de Jesus. O tema da vitória se destaca, ou seja, aquele que venceu o diabo será o mesmo que vencerá a morte.

Na perspectiva da Carta aos Romanos, o salário do justo é a vida eterna e o salário do pecador é a segunda morte. Jesus inicia vencendo o diabo, preanuncio daquilo que será maior, ou seja, a vitória sobre a morte. No contexto litúrgico, o cristão professa a fé naquele que é capaz de salvá-lo, pois venceu o diabo (abrindo a Quarema) e venceu a morte (abrindo o tempo pascal). Portanto, ele é o Senhor no qual se pode depositar toda confiança, pois só ele é capaz de salvar. Assim, é nele que se encontra a nossa salvação. A Profissão de Fé cristã não se realiza numa possibilidade, em algo incerto, mas numa absoluta certeza: “Cristo Ressuscitou e nós somos testemunha” (At 10,39: 1ª Leitura do Domingo de Páscoa [At 10,34-43]).

 

Tempo da Quaresma Ano C 2022

 

1ª Leitura 2ª Leitura Evangelho

1º Domingo

Dt 26,4-10

Confissão de fé de Israel

Rm 10,8-13

Confissão de fé cristã

Lc 4,1-13

Tentação do Deserto

2º Domingo

Gn 15,5-12.17-18

Aliança de Abraão

Fl 3,17-4,1

Transformará nosso corpo

Lc 9,28b-36

Transfiguração de Jesus

3º Domingo

Ex 3,1-8a.13-15

“Eu Sou” Presença e Libertação

1Cor 10,1-6.10-12

O caminho de Israel

Lc 13,1-9

Chamado a conversão

4º Domingo

Js 5,9a.10-12

Páscoa na Terra Prometida

2Cor 5,17-21

Reconciliados com Deus em Cristo Jesus

Lc 15,1-3.11-32

O Filho Pródigo

5º Domingo

Is 43,16-21

Eis que faço nova todas as coisas

Fl 3,8-14

Corro para a meta que é Cristo

Jo 8,1-11

A Mulher Adúltera

 

Leitura Vertical:

1ª Leitura: episódios progressivos da história da salvação vividos por meio da fé’

2ª Leitura: catequeses progressivas relacionando o Evangelho com as 1ªs Leituras.

Evangelho: Cristo chama a conversão e perdoa.

Leitura Horizontal:

1º Domingo: A fé de Israel // a fé em Cristo; Jesus tentado e vencedor;

2º Domingo: Fé de Abraão e Aliança; Convite a transfigurar nossos corpos; Cristo transfigurado revela o Pai, fundamento da nossa fé;

3º Domingo: Um Deus que se revela como libertador; os cristãos são chamados à fazer o caminho do deserto; chamado à conversão;

4º Domingo: A Páscoa na Terra Prometida – a Aliança se renova; chamados para a reconciliação em Cristo Jesus; Deus Pai espera a conversão do filho;

5º Domingo: Deus faz nova todas as coisas; chamados a ressuscitar; o perdão da adúltera.

 

 

 

 

 

 

** PASCOA-ou-PASCOAS-JUDAICAS-Gilvan em PDF

** ESSE NÃO mas BARRABÁS – Jo 18,40 – Gilvan Leite de Araujo - em PDF

** A festa da DEDICAÇÃO em Jerusalém – Jo 10,22 – Gilvan Leite de Araujo - em PDF

** MARIA MADALENA – Gilvan Leite de Araujo - em PDF

** A MULHER ADÚLTERA NO EVANGELHO DE JOÃO-Gilvan Leite de Araujo - em PDF

** Semana da Fraternidade Formação Diocesana Campanha da Fraternidade 2022 Palestrante: Pe. Dr. Gilvan Leite Tema: “Jesus Educador” : A MULHER ADÚLTERA (Jo 8,1-11) - Diocese de Osasco

 

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