Pe Gilvan – REFLEXÕES LITÚRGICAS

REFLEXÕES de Pe. Gilvan  Leite  de  Araujo

17º Domingo do TC Ano C 2022

Pe. Gilvan Leite de Araujo

1ª Leitura: Gn 18,20-32

Após a visita à tenda de Abraão, Deus decide visitar Sodoma e Gomorra para destruí-la, tendo em vista a maldade que se acumulara sobre estas cidades. Contudo, em Sodoma se encontro um justo, que é justamente Ló, que também receberá “Deus” em sua tenda servindo e protegendo-o.

Na narrativa de hoje o tema central está justamente na “oração de intercessão”. Mais exatamente, Abraão intercede pedindo em favor de Sodoma e Gomorra para que não sejam destruídas, caso nela se encontre nem que seja dez justo. Deus encontrará apenas a família de Ló, que será poupada, mas as cidades serão destruídas por causa de sua maldade.

O Sl 137(138) apresenta o tema da intercessão, como uma forma de oração elevada a Deus que está em relação com a 1ª Leitura.

2ª Leitura: Cl 2,12-14

O tema central da narrativa de Colossenses é o da redenção, no qual Jesus é apresentado como o redentor. Leva-se em conta que Jesus Cristo, por sua paixão, morte e ressurreição é apresentado como salvador e redentor. No primeiro caso, encontra-se um viés cultual, ou seja, Jesus é o Cordeiro Imolado, sacrificado em favor de muitos, no segundo caso, ou seja, enquanto redentor, Jesus deu a sua própria vida em resgate por nós, aquilo que Paulo dirá: “Alguém pagou alto preço pelo vosso resgate” (1Cor 6,20). Tal pressuposto está claro na declaração de Paulo: “Existia contra nós uma conta a ser paga, mas ele a cancelou, apesar das obrigações legais, e a eliminou, pregando-a na cruz” (Cl 2,14).

Portanto, quando Jesus se entrega na cruz, derramando seu sangue, ele nos resgata, anulando o débito que existia contra nós.

Evangelho: Lc 11,1-13

A narrativa apresenta o tema da oração, em particular do Pai Nosso, segundo a ótica lucana. No Evangelho de Lucas, antes dos grandes momentos, encontramos Jesus em oração. Assim, toda a vida de Jesus é perpassada pelo profundo diálogo com o Pai. Desta intimidade orante é que surgirá o Pai-Nosso.

A narrativa apresenta parte da oração do Pai-Nosso e, na sequência, Jesus desenvolve o tema da oração de súplica.

Sobre a Oração do Pai-Nosso, existe a versão mateana (Mt 6,9-13) e a versão lucana (Lc 11,2-4). As duas narrativas possuem a seguinte estrutura geral:

I. Duas Partes:

1) Louvor

2) Súplicas

II. Cada parte é composta por quatro referências:

1) Louvor:

a) Pai Nosso que estais nos céus;

b) Santificado seja o vosso nome;

c) Venha o teu Reino;

d) Seja feita a vossa vontade

2) Súplicas:

a) Dar o pão a cada dia;

b) Perdoar as ofensas;

c) Não deixar cair em tentação;

d) Livrar do mal

III. Base teológica

A oração do Pai-Nosso está em relação com a tentação do deserto. Assim, o diabo tenta Jesus a partir da sua missão enquanto messias, ou seja, a atividade messiânica pressupõe saciar a fome dos povos, estabelecer o reinado de Deus e manifestar a Glória de Deus. O diabo, como facilitador, propõe que Jesus use o seu “poder” em proveito próprio: saciar a sua fome, estabelecer o seu reinado e manifestar a sua glória.

Na oração do Pai-Nosso se reconhece o senhorio de Deus, ao mesmo tempo no qual nos comprometemos com o projeto de Jesus de estabelecer o Reino de seu Pai, no qual se manifeste a sua glória. Invocar o Nome de Deus (cr. 1Rs 8) é ter a certeza de que Ele está, de fato, entre nós e trabalhamos corroborando com a santidade do seu Nome. Para que isto aconteça, pedimos que ele nos conceda o pão, o perdão e a libertação do diabo. Portanto, a oração do Pai-Nosso é, por natureza, uma oração de compromisso.

Síntese

Na 1ª Leitura a liturgia nos apresenta o tema da Oração de Intercessão, no Evangelho o tema da Oração de Súplica e na 2ª Leitura o tema da Redenção. O Sl 137(138) desenvolve o tema da eficácia da oração: “ouvistes as palavras dos meus lábios… fizestes muito mais do que prometestes… vós me escutastes”.

Segundo Teofane, O Recluso, a essência da oração é manter-se firme diante de Deus e caminhar na sua presença. Assim, é que encontramos sempre Jesus diante do Pai em oração. De fato, encontramos Jesus em oração no seu batismo (Lc 3,21); no deserto (Lc 5,16); na montanha, antes da escolha dos 12 apóstolos (Lc 6,12); sobre o monte Tabor, antes da transfiguração (Lc 9,28-29), antes de ensinar o Pai Nosso aos apóstolos (Lc 11,1). Jesus que estava sempre na intimidade com o Pai convida a rezar constantemente (Lc 18,1-7).

O tema da oração, na Bíblia, tem a sua referência em 1Timóteo: “Eu recomendo, pois… que se façam pedidos, orações, súplicas e ações de graças, por todos os homens, pelos reis e todos os que detêm a autoridades a fim de que levemos uma vida calma e serena, com toda piedade e dignidade” (1Tm 2,1-2).

Paulo apresenta, assim, as quatro características da oração cristã: “suplicas, oração, intercessões e ações de graças [deh,seij proseuca.j evnteu,xeij euvcaristi,aj]” que Teofane explica como: a) oração corporal ou vocal, b) oração mental; c) oração do intelecto ou do coração ou somente do coração ou do sentimento; e, d) oração espiritual ou contemplativa.

Paulo afirma que devemos suplicar, orar, interceder e dar graças “…por todos os homens, pelos reis e todos os que detêm autoridade, a fim de que levemos uma vida calma e serena, com toda piedade e dignidade; pois é bom e aceitável diante de Deus, pois ele quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade”. Nesta perspectiva, a oração é, também, ato de amor e misericórdia.

Em síntese: o eixo central da liturgia deste domingo é a comunidade orante que se empenha em ser santa, como Deus é Santo. Enquanto a 1ª Leitura apresenta o tema da oração de intercessão, a 2ª Leitura desenvolve o tema do Cristo Redentor, que torna eficaz e possível a nossa oração, chegando ao Evangelho no qual estabelecemos um compromisso com o Senhor, para que o Reino de seu Pai aconteça.

16º Domingo do TC Ano C 2022

Pe. Gilvan Leite de Araujo

            As leituras situam a presença Deus visitando. Curiosamente, não é Deus que serve, mas é servido por aqueles que visita. Os Anjos do Senhor são servidos por Abraão e Sara e no Evangelho, Jesus é servido pelos irmãos de Betânia.

Nas duas visitas resultará em bênçãos: Isaac nascerá e Lázaro ressuscitará. Mas, anterior a promessa está a acolhida dos hóspedes “divinos”.

1ª Leitura: Gn 18,1-10a

A narrativa apresenta a visita “do Senhor” através de “três homens de pé”, que são recebidos como “Meu Senhor” (Adonai). Tal encontro entrará para a tradição de Judaica, Cristã e Islâmica como a visita de Deus à casa de Abraão e Sara. Na sequência do livro do Gênesis, os “três homens” visitarão a casa de Ló, os quais serão, também, servidos e protegidos, principalmente quando os homens da cidade de Sodoma rodeiam a casa de Ló para abusar dos hospedes.

A acolhida de Abraão e Sara resultará na promessa de um filho no prazo de um ano.

O eixo centro das duas narrativas é Deus que visita os seus “amigos”. Mas, tal visita parte da disponibilidade amorosa divina (=estar com os seus) e são acolhidos e servidos. Tal predisposição para receber com amor “O Senhor” em sua casa resultará numa promessa: Abraão terá um descendente e Ló terá a sua vida e de sua família poupada.

2ª Leitura: Cl 1,24-28

Na 2ª Leitura, Paulo exorta os colossenses sobre a sofrimento em favor de Cristo, como sinal de solidariedade à Igreja. Observa-se que, para Paulo, servir ao Senhor é estar a serviço da Igreja, cuidando e zelando por ela, não o contrário. A Igreja é amada, pois é o Corpo de Cristo. Portanto, viver a fé cristã pressupõe estar a serviço. Nisto se manifesta a presença do Espírito Santo como aquele que potencializa o batizado com seus dons, para que este se capaz de servir (1Cor 12-14). Além disso, o estar a serviço da Igreja não é uma função, apesar de se esperar que o batizado tenha as condições necessárias para exercer o seu ministério, mas uma experiência de amor. Tomo como um exemplo a missão de pai e mãe. Estes não fazem coisas para os filhos, mas os ama e são capazes de doar a própria vida em favor destes. Assim, servir a Igreja pressupõe a mesma condição.

Amar a Jesus, portanto, é estar à serviço da Igreja e dela cuidar para que o mundo seja salvo, a vida eclesial é condição necessária. Não existe autossalvação e muito menos “angelização”. A santidade cristã passa pelo processo de humanização, quem não se torna plenamente humana não pode ser santo. Compreende-se isto na pessoa de Jesus: Ele sendo Deus, não considerou a sua divindade para se esvaziou tornando-se humano até as últimas consequências (cf. Fl 2). Estar na Igreja é estar a serviço da salvação do mundo. Portanto, é entrar no coração do mundo com suas realidades próprias elevando tudo para o Senhor, arriscando a sua própria vida.

Assim, o eixo eclesial norteia esta narrativa. A Igreja, enquanto Corpo de Cristo, se apresenta como a amada que ama o seu amado e ambos são capazes de doar a vida pelo outro. A Igreja se torna a casa na qual a humanidade encontra o seu refúgio e sua segurança, como o é a casa de um pai e de uma mãe.

Evangelho: Lc 10,38-42

O Evangelho nos apresenta Jesus em Betânia na casa de Lázaro, Marta e Maria. Os três são os amigos de Jesus. Apesar de entrarem no consciente de forma doce e poética (= a casa de Betânia), não encontramos nenhum deles evangelizando nas narrativas evangélicas: Marta será aquela que professará Jesus: “eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus que vem ao mundo” (Jo 11,27); Maria será aquela que ungirá os pés de Jesus com “uma libra de um perfume de nardo puro, muito caro” (Jo 12,3) e Lázaro será ressuscitado pelo Senhor (Jo 11). Como se pode observar, os irmãos de Betânia são apenas os amigos amados de Jesus.

A narrativa lucana é, a primeira vista, desconcertante, ou seja, Marta é a típica dona de casa preparando as coisas para que todos possam comer; enquanto Maria, é a típica adolescente despreocupada “vagabundeando”. Se Marta ficar nos pés de Jesus e não preparar a refeição, ninguém comerá. Contudo, Jesus afirma que Maria escolheu a melhor parte. Como compreender isto? Além disso, esta narrativa foi muito utilizada para justificar a superioridade da vida contemplativa sobre a vida ativa. Certa fez um monge questionou Pacômio sobre que teria agradado à Deus: Moisés ao conduzir o povo pelo deserto ou Elias ao se refugiar na Montanha. Pacômio respondeu que não se podia fazer acepção entre um e outro, pois ambos agradaram à Deus.

Assim, se a questão não é sobre quem está certo, ou seja, Marta ou Maria, o que o evangelista deseja transmitir então? Vamos analisar a narrativa. Maria parou para escutar a Palavra do Senhor, enquanto Marta está apenas focada no “fazer coisas”. Jesus convida Marta a uma mudança de atitude, ou seja, sair do ativismo: “ocupada com muitos afazeres” (v. 40). Portanto, Jesus não está exaltando “o não fazer nada”, a) mas, aprender a administrar o tempo e b) acolher a sua presença em nossa vida.

Betânia é descrita em Lucas e João como o lugar no qual Jesus pernoitava quando se encontrava em Jerusalém. Assim, Betânia é lugar de repouso e de paz, de estar entre amigos. Além disso, se deve levar em conta que é o lugar, segundo a narrativa lucana, na qual Jesus ascende ao céu.

A cidade de Betânia e a casa dos três irmãos, no conjunto, são lugares do aconchego, da acolhida, do amor discreto e humano, que permite que tudo se eleve aos céus.

Síntese

A Casa de Abraão e a Casa de Lázaro, Marta e Maria se configuram como a casa da acolhida do Senhor. Lugar onde “O Senhor” se sente amado e protegido.

Em relação com a 2ª Leitura, a Igreja deve se tornar esta casa de acolhida e proteção da humanidade, conforme deve ser uma casa de pai e mãe. Tendo em vista que o próprio Jesus considerava o Templo de Jerusalém a casa de seu Pai (cf. Jo 2,16).

Além disso, os batizados não se tornam cristão para se fecharem num gueto de puritanos, mas como mártires que entram no coração do mundo para salvá-lo, como fez o seu Senhor. O próprio cristão é e deve ser igreja para a humanidade.

15º Domingo do TC Ano C 2022

Pe. Gilvan Leite de Araujo

1ª Leitura: Dt 30,10-14

No Deuteronômio, Moisés apresenta a Lei de Deus como algo acessível à Israel. Não se trata de meios etéreos, inacessíveis; mas, próximos e praticáveis, que dizem respeito à vida humana. Portanto, a Lei é algo possível para todo Israel e visa o bem da comunidade.

Os hebreus tendo saído do Egito como uma gente, ao atravessar o mar e estabelecer a Aliança e a Lei, se tornaram um povo (=Israel). Portando, a Aliança e a Lei visam o estabelecimento deste povo como uma sociedade bem-organizada. Além disso, a Aliança do Sinai pressupõe empenho mútuo (Deus e Israel). Efetivamente, Deus oferece a terra e Israel a si próprio. O não cumprimento das regras de Lei resultaria da perda do direito condicionado pela parte de quem a infringiu, o que será o exílio da Babilônia. Portanto, ser fiel à Lei e à Aliança é a condição de permanência na terra no período pós-exílico. É sobre esta radicalização que Jesus confrontará os fariseus e saduceus. Pois tal radicalização resultava em cerceamentos, exclusões sociais e tantas outras atrocidades em nome de Deus. O próprio Jesus será condenado pelos judeus, segundo os quatro evangelhos, por infidelidade à Lei. De fato, Israel irá criar tantas outras leis (=613) e preceitos complementares que tornará quase impossível a prática habitual. O excesso de leis e normas conduzirá a um isolamento social e será um impedimento que convívio com outras culturas. Leva-se em conta que Jesus proporá o processo contrário, ou seja, dos 10 mandamentos e demais normas, ele reduzirá tudo para duas: 1) amar a Deus e 2) amar o próximo, tornando todo o resto consequência natural destas.

Os grandes embates entre Jesus e os Judeus será justamente sobre a aplicabilidade e a flexibilidade da Lei, que fluirá entre a positividade e a filosofia desta.

Na tradição sapiencial primitiva de Israel, era considerado sábio aquele que conhecia a Lei. Tal perspectiva é perceptível no Quarto Evangelho: “… este povo [=galileus] que não conhecem a Lei, são uns malditos!” (Jo 7,49). Na tradição sapiencial posterior será considerado sábio aquele que reconhecerá a Deus como Senhor, conforme se pode visibilizar no Salmo. Contudo, se estabelece uma aproximação dos conceitos: “lembra e cumpre”, ou seja, a Lei é um bem a ser posto em prática em favor de todos, para que a vida seja garantida.

2ª Leitura: Cl 1,15-20

O hino de Cl 1,15-20 é um típico paulino do tipo batismal. Tais hinos tinham a função de catequese para os catecúmenos, pois através da memorização e recitação do hino a pessoa apreendia os fundamentos da fé cristã. Tal perspectiva é verificável no próprio capítulo: “desde o dia em que o ouvimos, não cessamos e orar por vós e de pedir que sejais levados ao pleno conhecimento da vontade de Deus, com toda a sabedoria e discernimento espiritual” (Cl 1,9). Paulo prossegue nesta catequese dizendo: “dando graças ao Pai, que vos fez capazes de participar da herança dos santos na luz. Ele nos arrancou do poder das trevas e nos transportou para o Reino do seu Filho amado, no qual temos a redenção – a remissão dos pecados” (Cl 1,12-14). Assim, o hino de Colossenses entrar na perspectiva de uma doxologia com função catequética.

O hino é construído através de um paralelismo, conforme segue:

A. Cristo, imagem de Deus e primogênito de todas as criaturas

B. O primado de Cristo

A’. Cristo, início e primogênito entre os mortos

Deste modo segue as argumentações que fundamentam o Cristo anterior a toda criatura e o primogênito entre os mortos:

A. Cristo, imagem de Deus e primogênito de todas as criaturas:

1) Dúplice caracterização do Filho (v. 15): Imagem de Deus e primogênito

2) Motivação (v. 16): Tudo foi criado por meio dele e em vista dele

B. O primado de Cristo

1) Ele é anterior a tudo (v. 17a)

2) Tudo subsiste nele (v. 17b)

3) Ele é a cabeça da Igreja (v. 18a)

A’. Cristo, início e primogênito entre os mortos

1) Dúplice caracterização do Filho (v. 18b): primogênito entre os mortos e tudo nele tem consistência

2) Motivação (v. 19-20): A criação tem nele a sua Plenitude e sua Redenção através da sua paixão.

O hino de Colossenses exalta Jesus Cristo como única possibilidade para a plena realização de toda criatura pois ela surgiu por meio dele e em vista dele e foi por ele redimida na sua paixão e morte. Portanto, a fé em Cristo é o único caminho de esperança e salvação para toda pessoa humana.

Evangelho: Lc 10,25-37

Lucas nos coloca hoje diante de uma casuística jurídica a partir do diálogo entre Jesus e um Mestre da Lei. A questão se desenvolve a partir da compreensão do conceito jurídico, ou seja, processo de hermenêutica. A frase referencial é justamente “O que está escrito? Como Lês?” (10,26). Este é o ponto nodal que se coloca em toda a Bíblia: a compreensão do que está escrito.

A parábola é posta por Jesus como uma casuística jurídica a fim de suscitar no interlocutor um posicionamento. Tal procedimento pode ser verificado, por exemplo, no diálogo entre o profeta Natã e Davi (cf. 2Sm 12,1-15), no qual o profeta expõe uma casuística e espera uma resposta do rei. Aqui em Lucas, Jesus faz a mesma coisa; diante de uma situação ele propõe uma casuística que exige resposta do seu interlocutor, no caso, o Mestre da Lei.

A parábola possui simultaneamente simplicidade e complexidade. Simplicidade: de imediato se verifica quem agiu com caridade diante de alguém que está necessitado. Complexidade: quem prática a ação é um samaritano.

Para um judeu, os samaritanos eram, por natureza, impuros e heterodoxos. Portanto, um judeu não poderia jamais manter contato com um samaritano. Na parábola, Jesus coloca duas figuras ritualmente “puras”: um sacerdote e um levita. Os dois cumpriram a Lei ao não se tornarem impuros se desviando do homem caído no chão. Percebe-se que a questão jurídica é delicada: manter a pureza ritual ou salvar uma vida? Esta é a questão em jogo. Tornar-se impuro fere a Lei; não usar de caridade, também fere a Lei. Portanto, existe uma questão em jogo: Qualquer iniciativa irá ferir a Lei.

A questão se torna mais complexa caso pensarmos que a vítima seja um judeu. Neste sentido, ao estar ferido e ensanguentado, ele está impuro. Mais grave: caso ele seja tocado por um samaritano, ele ficará duplamente impuro.

Vamos a solução da questão: a lei do puro e do impuro surgiu em Israel como um meio de salvaguardar a qualidade de vida. Todo homem deve ter condições sociais dignas que lhe permitam viver bem e, ao mesmo tempo, ele deve zelar pelo seu próprio corpo, comendo apenas aquilo que lhe fará bem. A exacerbação do critério levou a princípios de exclusão social e cerceamento de pessoas. Partindo da essência, a pureza humana e ritual visa a vida humana. Portanto, salvar a vida do homem em perigo é o pleno cumprimento da pureza ritual e humana, coisa que o sacerdote e o levita não haviam compreendido, mas o samaritano, que também conhece a Lei, compreendeu. A vida humana esta na primazia da Lei.

Outro ponto importante, da leitura de hoje, é que o Mestre da Lei está usando a Lei de Deus não para fazer o bem, mas para pôr Jesus à prova. Portanto, ele usa a lei com fins malignos, tirar a vida e a dignidade. Além disso, a ideia de “próximo” não é tão simples. Para um judeu, o seu próximo era justamente aquele que era judeu e que cumpria a Lei. Portanto, um samaritano ou um galileu jamais seria o seu próximo. Neste caso, nem Jesus era considerado pelo mestre da Lei como puro, pois era considerado galileu. O próprio tratamento explicita tal questão: um judeu era “povo” o não judeu era um gentio ou um “não povo” (cf. 1Pd 2,10). Jesus está quebrando este conceito a propor a parábola.

Síntese

Enquanto a 1ª Leitura e o Evangelho colocam a questão da Lei ao centro do debate, principalmente quando Jesus no Evangelho, indica qual seja o centro desta Lei, o hino de Colossenses irá explicitar que a verdadeira redenção não se encontra na estrita observância da Lei, mas no fiel seguimento de Jesus que é anterior a tudo. A própria Lei terá consistência e razão de ser quando cumprida por meio de Jesus Cristo, que no ato redentor da cruz manifestou a Lei Régia como centro da fé cristã: “Amarás a Deus e amarás o teu próximo”. Nisto esta sintetizado, segundo Jesus, toda Lei.

 

13º Domingo do TC Ano C 2022

Pe. Gilvan Leite de Araujo

1ª Leitura: 19,16b-19-21

Após a crise vocacional e humana de Elias, Deus coloca Eliseu como seu companheiro de missão. O nome Eliseu significa “Deus Ajudou”. Até o momento, o profeta tinha enfrentado a missão sozinho e tinha sido abandonado por tudo e por todos. Além disso, querem a sua morte. A primeira tentativa foi abandonar tudo. Mas o Senhor Deus o confirma em sua missão e coloca um auxiliar.

Durante a crise, Elias se indagara se ele estivesse errado. De fato, a maioria havia abandonado a fé judaica. Valia a pena continuar sendo fiel? A maioria não estaria certa? Contudo, se a maioria havia abandonado à Deus, Elias permanecera fiel à Ele. Deus não retira a missão, não responde as suas angústias, apenas fica ao seu lado e cuida com carinho (o alimenta, o faz descansar, o escuta…).

Agora será o momento de retornar e cumprir aquilo que iniciou. Elias pode retornar para a sua missão porque Deus colocou Eliseu como “uma ajuda”. Assim, ele não ficará abandonado, mas amparado. Eliseu surge durante a crise de Elias e será seu fiel discípulo, como se pode verificar ao momento o qual ele deverá suceder o mestre. Ficará ao lado do mestre até o último momento (cf. 2Rs 2). Ele receberá o manto e o espírito que está sobre Elias, por meio do qual dará início a sua missão no lugar do seu mestre.

2ª Leitura: Gl 5,1.13-18

O contexto missionário tem como ponto de partida a total disponibilidade, sem amarras ou impedimentos que inibam ou interfiram na missão. Assim, a missão não pode ser fuga de ambientes, situações ou sentimentos. Mas um serviço, no qual a pessoa está totalmente livre de quaisquer amarras. No sentido vocacional, o ser padre, religioso ou religiosa ou se casar pressupõe plena liberdade para o “sim!”, qualquer condicionamento ou impedimento irá privar ou limitar todo o projeto divino.

Assim, Paulo é o modelo daquele que deixou tudo, considerando as antigas seguranças ou glórias como “lixo”, o que passa a importar para ele é Jesus Cristo. Este passa a ser o referencial primário para qualquer vocacionado, ou seja, o Senhor. Caso este não seja o centro, tudo poderá estar comprometido.

Evangelho: Lc 9,51-62

A narrativa de Lc 9 apresenta três episódios de vocacionado e não-vocacionados, mas de forma incompleta, no qual é sublinhado quem pode seguir ou não:

No primeiro caso, a pessoa pede para seguir, mas Jesus impõe um impedimento: “As raposas têm tocas e as aves do céu, ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça” (Lc 9,58).

No segundo caso, Jesus chama diretamente a pessoa: “Segue-me”, mas este lança uma condição: “Permite-me ir primeiro enterrar meu pai” (Lc 9,59), seguido da recusa de Jesus “Deixa que os mortos enterrem os seus mortos; quanto a ti, vai anunciar o Reino de Deus”.

Terceiro caso: a pessoa pede para seguir, mas impõe uma condição: “Eu te seguirei, Senhor, mas permite-me primeiro despedir-me dos que estão em minha casa” (Lc 9,61)

A questão central, presente na narrativa de hoje, é o tema vocacional. O que está em hoje é a plena disponibilidade para partir sem, absolutamente, nenhum impedimento, mesmo que familiares (pais, irmãos…). Por outro lado, tem aqueles que Jesus não chama, apenas deseja que eles cumpram a sua vida com regularidade. Além disso, Jesus não deseja pessoas insensíveis, quando trata de renúncias de laços familiares ele não está dizendo para perder a humanidade e se tornar insensível a tudo e a todos, mas totalmente capazes de se lançar na missão com coragem e desprendimento. Assim, os vocacionados são, por excelência, pessoas plenamente humanas. Esta é a condição primária. Pois a santidade cristã é um processo de humanização que leva a divinização. Quem não se torna plenamente humano não se tornará santo.

Síntese

Todos os cristãos, por sua própria natureza batismal são chamados, por vocação, à santidade. Esta é a vocação primaria. Por vocação à santidade se pressupõe aproximar-se de Deus, tornando-se seus filhos.

Dentre aqueles que são chamados à santidade, alguns são chamados para missões específicas: matrimônio, consagração pessoal, vida religiosa e/ou presbiteral. Estas vocações específicas podem ser chamadas de vocação para a missão. Assim, a vocação é pôr-se a caminho. Quem é chamado deve estar pronto para partir.

 

12º Domingo do TC Ano C 2022

Pe. Gilvan Leite de Araujo

1ª Leitura: Zc 12,10-11; 13,1

A 1ª Leitura descreve a morte de Zorobabel, último descendente do trono de Davi. O assassinato ocorre durante a guerra civil em Judá provocada pelo sistema diarquico de Zorobabel e Josué. Sabe-se que após a morte do monarca, o governo de Judá passará inteiramente para as mãos de Josué que estabelecerá um governo hierocrático, chamado de período sadoquita, que perdurará até a ascensão de Herodes, O Grande. Lógico que a morte do último herdeiro legítimo ao trono de Judá provocará uma crise, principalmente diante da promessa de um trono eterno de Davi (cf. 2Sm 7).

Diante da situação de um herdeiro legítimo a profecia posterior começará a descrever não mais um herdeiro, mas um novo Davi (=Profecia de Ezequiel). Neste sentido as promessas messiânicas falam deste novo Davi que será estabelecido no trono de Davi.

O tema do “ungido” transitará entre um sacerdote, um rei ou um que possua com as duas dignidades. Neste sentido, transferindo a temática do ungido para Jesus, ele surge como um da casa de Davi (=messianismo real) e que será configurado, também, como messias sacerdotal (=figura de Melquisedec/Cruz).

2ª Leitura: Gl 3,26-29

A Aliança e a Lei configuravam Israel como o povo legítimo. Portanto, os israelitas eram os únicos a serem considerados Povo de Deus. Paulo, escrevendo aos Gálatas, afirma que a condição não será mais pelo princípio de genealogia, mas pela fé em Jesus Cristo. Para estabelecer este novo princípio, ele usa o princípio da anterioridade, ou seja, o que é posterior a Moisés está sujeito a Lei, mas o que é anterior à Moisés esta desobrigado das prerrogativas da Lei. Neste sentido, Paulo configura os pagãos a partir da filiação abraamica, desobrigando-os da Lei e abrindo a possibilidade de ingresso na Nova Lei a partir da promessa feita a Abraão de ser pai de todos os povos. Portanto, os pagãos se tornam filhos de Deus por meio de Cristo Jesus, segundo a promessa feita por Deus à Abraão.

Outro ponto fundamental da leitura, para a liturgia de hoje, é a afirmação paulina “se vós sois de Cristo” (Gl 3,29), ou seja, ele está reforçando o tema do ungido. Jesus é o Ungido esperado por Israel que abre a salvação tanto para judeus como para os gentios.

Evangelho: Lc 9,18-24

A narrativa esta situada após a missão dos apóstolos. Retornando, Jesus se retira com eles para um lugar a parte para descansarem e avaliarem a missão. Neste processo de avaliação da missão, Jesus indaga sobre a concepção dos missionários (aqui os apóstolos) e das pessoas que receberam a mensagem.

Sendo Jesus Cristo o centro e o objeto do anúncio a questão que ele coloca é a seguinte: que Jesus Cristo foi anunciado e que Jesus Cristo foi compreendido? As pessoas veem em Jesus Cristo uma multiplicidade de figuras (João Batista, Elias, antigo profeta…). A partir disto, Ele indaga sobre a real concepção dos apóstolos sobre a sua pessoa. Isto é fundamental, pois disto dependerá a fidelidade e a eficácia do anúncio.

A resposta assertiva de Pedro descreve Jesus como o “Ungido” enviado por Deus e esperado por Israel: “O Cristo de Deus” (Lc 9,20). A resposta de Pedro apresenta Jesus como o messias esperado por Israel, mas não descreve o modelo messiânico. Os apóstolos terão, ainda, que compreender esta questão e que criará divergências na comunidade apostólica.

Síntese

A liturgia deste 12º Domingo do TC foca sobre o tema do “Ungido” (Messias/Cristo). Nesta perspectiva messiânica, a 1ª Leitura destaca o Ungido da Casa de Davi, que será compreendido na história de Israel, no período pós-exílico, como um descendente direto de Davi ou um novo Davi. Delineando assim, o chamado, messianismo real. Além disso, o contexto histórico da leitura evidencia o desenvolvimento do messianismo sacerdotal na figura de Josué. Portanto, estará em pauta Zorobabel (=descendente direto de Davi, ungido como rei) e Josué (ungido como sacerdote) que será a base para o tema das duas oliveiras (cf. Zc 4 e Ap 11), ou seja, um messias real (Zorobabel) e outro sacerdotal (Josué). O duplo messianismo terá esta fundamentação e, também, será aplicado na pessoa de Jesus Cristo.

Jesus Cristo, no Evangelho, irá delinear, após a resposta de Pedro, um messianismo profético, ao descrever o “sofrimento do messias”. Leva-se em conta que o “sofrimento do Messias”, não possui fundamento veterotestamentário, ou seja, os oráculos messiânicos não dizem que o messias deveria sofrer. Neste sentido, Jesus, na qualidade de “enviado por Deus”, sendo, assim, um “homem de Deus” irá sofrer a sorte dos profetas de Israel, que foram rejeitados, suas mensagens não foram acolhidas e muitos deles foram perseguidos e mortos. Tal perspectiva fica claro no uso de “Filho do Homem”, que o vincula a este modelo messiânico.

No conjunto das leituras, portanto, é apresentado Jesus assumindo as perspectivas messiânicas de Israel, ou seja, messianismo real, profético e sacerdotal e outros. Este é o ponto basilar que coloca Jesus totalmente em destaque aos demais messias que surgiam em Israel, que transitavam entre um ou outro modelo messiânico. Os próximos domingos irão apresentar os modelos messiânicos a partir das ações de Jesus.

Solenidade da Santíssima Trindade, Ano B 2022

Pe. Gilvan Leite de Araujo

1ª Leitura: Pr 8,22-31

Quem é o sábio?

O tema da Sabedoria Divina é desenvolvido nos capítulos de 1 a 9 do Livro de Provérbios, num processo de “personificação”; seja como qualificação do ensinamento do sábio (1,8s) ou como a origem de toda a tradição e de todo o ensinamento sapiencial (8,1-3 + 1,20s). Em 1,22-29 e 8,4-11 é a sabedoria que fala no estilo habitual dos mestres. Assim, no capítulo 8, a Sabedoria se apresenta descrevendo as suas qualidades: enumerando os atributos que a aproximam de Deus (vv. 12-21) e sublinha as relações privilegiadas que ela tem com ele (vv. 22-31), antes de exortar seus filhos com plena autoridade (vv. 32-35).

Ela é personificada como uma mulher amada e como educadora, antes de se apresentar como pré-existente à criação material. É confidente de Deus, a primeira aprendiz e, portanto, a grande iniciadora da sabedoria. À vontade diante de Deus, ela se sente em casa no mundo criado, no qual dançava enquanto Deus criava. Além disso, ela está à vontade entre os homens, porque o seu prazer é estar com eles.

O tema da sabedoria personificada, solidamente fundamentada em Pr 8, será retomado e ampliado até a era cristã. Alguma obra, como Jó 28; Eclo 1 e 24; Br 3,9-4,4 e Sb 7-9 retomam a temática. Inicialmente arquétipo feminino dos pedagogos de Israel, a Sabedoria verá crescer sua autonomia com Deus Criador. Essa personificação elaborada progressivamente pelos sábios de Israel permitiu-lhe pensar melhor a relação de Deus, com o mundo, com o homem e dinâmica na intradivina. Nos primeiros séculos, os cristãos retomaram a temática, para precisarem não só alguns aspectos da cristologia, mas também da pneumatologia.

2ª Leitura: Rm 5,1-5

Caminho espiritual do batizado

O início de Romanos 5 esclarece imediatamente o exato sentido da narrativa: “justificados em virtude da fé, nós, portanto, estamos em paz com Deus” (cf. Rm 5,1). Neste sentido, se é verdade que a justificação se realiza na base da fé (Rm 1-4), então é verdade que os fiéis estão na justa relação de aliança com Deus. Mas, o que isto significa no concreto da vida humana? Paulo salienta que ao fiel é conferido a graça como um dom de paz. Contudo, não se trata de um sentimento ou uma experiência psíquica, mas uma objetiva relação positiva com Deus. Assim, a justificação exprime uma passagem radical de rejeição do Criador e da própria criaturalidade para aceitação de Deus da aliança e da solidariedade; uma situação de graça na qual entrou o fiel, conforme explicita o v. 2: “tivemos acesso, pela fé, a esta graça, na qual estamos firmes e nos gloriamos na esperança da glória de Deus”. Lógico que todo este processo é possível pela direta intermediação de Jesus Cristo, na qualidade de Salvador e Redentor, que abriu a todos os homens a possibilidade da vida na graça, por meio da fé.

Para todo aquele que foi justificado pela fé, surge a “esperança”, ou seja, a abertura para um futuro feliz: “E a esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5).

Na solenidade de hoje, a narrativa sublinha que a Redenção operada por Jesus Cristo, possibilitou à todos os homens ser justificados pela fé, reconciliando-se, assim, com o Criador por meio da ação do Espírito Santo. Portanto, a salvação humana é um processo trinitário, no qual o homem é reconciliado com Deus, pela fé em Nosso Senhor Jesus Cristo, que morreu e ressuscitou em nosso favor, por meio do Espírito Santo.

Evangelho: Jo 16,12-15

Espírito Santo como pedagogo

            Entre as funções descritas por Jesus a respeito do Espírito Santo, está o de anunciar e explicar coisas novas, que vai além do que está estritamente circunscrito à narrativas Evangélicas. Lógico, que permanece a questão se a missão do Espírito Santo, na ótica joanina, seja didática ou forense ou ambas. Em todo caso, a palavra “culpa”, no Quarto Evangelho, possui sentido jurídico (cf. 3,20; 8,46). Na realidade, Jesus apresenta o Espírito Santo na qualidade de Pedagogo. Assim como ele, Jesus, veio “explicar” quem é o Pai (cf. Jo 1,18), o Espírito Santo assumirá, também, a missão de explicar quem é o Filho. Contudo, se pode perguntar: como Jesus explica o Pai no Quarto Evangelho? A resposta é “por meio das suas ações e palavras”, no qual Jesus é a Testemunha por excelência.

O Espírito Santo, também, testemunhará a respeito do Filho, para explicá-lo e vinculará todos à Ele, a fim de que, Jesus tudo entregue nas mãos do Pai.

Verifica-se um processo “missionário”, conhecido como teologia do enviado, no qual o Pai envia o Filho ao mundo. O Pai e o Filho enviam o Espírito Santo ao mundo. A Trindade envia a Igreja ao mundo. A Igreja, por meio do Espírito Santo, deve enviar todos à Jesus Cristo e Ele deverá entregar tudo nas mãos do Pai. É um processo salvífico, marcado pela esperança suscita pela paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo que abriu o caminho da salvação para todos os homens e mulheres.

Síntese

As leituras propostas para a solenidade da Santíssima Trindade, para o Ano de 2022, evoca a ação salvadora operada por Jesus Cristo, Senhor, Redentor e Salvador. Por meio de sua ação, Ele abriu a todos os homens e mulheres a possibilidade, por meio da fé, da vida na graça. Vida esta que impele efetivamente cada fiel para agir concretamente no mundo como promotores da paz, reconduzindo tudo e todos para o Pai.

O eixo central é o batismo. Professar a fé em Jesus Cristo é ato de sabedoria que, justificado e em paz com Deus, lhe é aberto a vida na Graça e a certeza de uma eternidade feliz.

Complemento

Para as primeiras comunidades, como para nós hoje, a Trindade era o modelo, a base e a referência do agir cristão, assim, antes de explicá-la, eles fizeram a experiência da Trindade, de um Deus Criador, de um Filho Redentor e de um Espírito Santificador.

Na história da Igreja a compreensão da Santíssima Trindade foi alvo de calorosos debates. Na origem da Igreja, a busca pela compreensão sobre a Trindade levou muito estudiosos a compreensões equívocas ao tentar manter a ideia de Monoteísmo diante do mistério do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Dentre os diversos erros de compreensão sobre a Santíssima Trindade, encontramos o “Modalismo”, na qual afirmava que a Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, eram apenas modos de se revelar de Deus. Esta heresia salvava o conceito de Monoteísmo, mas, por outro lado, destruía a própria Trindade. Em sentido inverso o “Triteísmo” afirmava a absoluta distinção das pessoas da Trindade. Se no modalismo o monoteísmo era salvaguardado, aqui ele era totalmente negado caindo no politeísmo. Outra solução foi o “Subordinasionismo”. Segundo esta heresia, o Filho e o Espírito Santo seriam inferiores ao Pai e superiores aos homens, tornando o Filho e o Espírito apenas criaturas criadas por Deus.

Diante disto pode-se perguntar então: “O que é a Santíssima Trindade”. Em primeiro lugar, a Trindade é Deus e Deus é Pai, é Filho e é Espírito Santo; e Deus é UM.

Procurando compreender o mistério do Ser de Deus, a Igreja, inspirada pelo Espírito Santo, convocou alguns Concílios Ecumênicos. O primeiro foi o de Nicéia (325), no qual declarou que o Filho, Jesus Cristo, é gerado do Pai, não foi criado e, portanto, não é inferior ao Pai. Sendo gerado do Pai, o Filho, Jesus Cristo, possui a mesma natureza divina do Pai. Portanto, é consubstancial ao Pai, ou seja, possui a mesma natureza divina de Deus: “Eu e o Pai somos Um. Tudo o que o Pai possui é meu. Eu estou no Pai e o Pai está em mim…” (Jo 8).

O Concílio de Nicéia nos deu a verdadeira compreensão sobre Jesus Cristo no mistério da Trindade. Porém, faltava explicar qual era o lugar do Espírito Santo dentro da Trindade. Somente alguns anos mais tarde, ou seja, durante o Concílio de Constantinopla (381) é que a Santa Igreja explica o Espírito Santo a partir da sua relação com a encarnação de Jesus Cristo, proclamando que Ele é “Senhor e doador de Vida, que procede do Pai, com o Pai e o Filho é adorado e glorificado e falou por meio dos profetas”.

De tudo o que falamos até aqui, é importante relembrar que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são distintos um do outro, mesmo sendo possuidores de uma única natureza divina. Assim, podemos dizer que a Trindade são três pessoas, não três máscaras; três pessoas, mas não três deuses, mas possuidores de uma única natureza divina. A Trindade está em comunhão perfeita, indivisível e um existe no outro, um está em relação com o outro, de modo que podemos falar de comunhão perfeita, sem confusão e sem separação: O Pai ama o Filho e o Espírito Santo; O Filho ama o Pai e o Espírito Santo; e o Espírito Santo ama o Pai e o Filho. Tal qual é o Pai, tal qual é o Filho, tal qual é o Espírito Santo. Incriado Pai, incriado Filho e incriado Espírito Santo. Grandíssimo Pai, grandíssimo Filho, grandíssimo Espírito Santo. Eterno Pai, eterno Filho e eterno Espírito Santo. Santíssimo Pai, santíssimo Filho e santíssimo Espírito Santo. Contudo, não são os três incriados, não são os três grandíssimos, não são os três eternos e não são os três santíssimos. Somente Um é incriado, somente Um é grandíssimo; somente Um é eterno e somente Um é santíssimo. Somente Um é Deus e Deus é Um. Somente Um é Deus e Deus é Trino.

A primeira comunidade cristã fez a experiência da Trindade antes de tentar explicá-la. De fato, para os primeiros cristãos, a Santíssima Trindade não era uma “Teoria Celeste”, uma ideia abstrata, mas uma experiência de vida, a parte fundamental da sua existência. Na realidade para os primeiros cristãos, como para nós hoje, a Santíssima Trindade era: lugar de amor, ambiente de oração, referência constante do agir cristão, motivo de fé e de esperança; estímulo a caridade; fundamento de salvação.

Objeto de Amor: Na Santíssima Trindade não encontramos divisão e nem separação, pois o Pai está para o Filho, como o Filho está para o Pai; o Pai ama o Filho, como o Filho ama o Pai; o Pai e o Filho amam o Espírito; como o Espírito Santo ama o Pai e o Filho. Nenhuma das pessoas da Trindade age sozinha, isolada, pois na Trindade não existe solidão, egoísmo, pois tudo é comunhão de amor doado. A vida cristã tem o seu agir justamente na experiência da Santíssima Trindade, ou seja, ela é modelo, inspiração para a vida cristã, que não olha para si mesmo, mas um doar-se totalmente a Deus, nos irmãos até o martírio.

Lugar de Oração: Toda a vida cristã é vida de comunidade. Comunidade de amor, porque possui como modelo a Santíssima Trindade, que é comunidade Perfeita. Assim, toda a mística e toda espiritualidade e toda oração cristã é plenamente comunitária e centrada na Trindade. Toda e qualquer oração cristã acontece através, pela e na Trindade. Na fé cristã não existe oração solitária, porque é sempre comunitária, mesmo quando rezamos sozinhos.

Motivo de Fé e de Esperança: A Santíssima Trindade é a porta de entrada para a vida divina; motivo pelo qual somos batizados em Nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Na medida que progredimos no caminho da santidade e caminhamos para a pátria celeste, aprendemos com a Trindade a vida de amor no amor; a fim de contemplar e viver eternamente no Eterno, que é a fonte de vida. Através do Batismo nos tornamos santos e a cada dia trabalhamos para ser santo, como Deus é Santo.

Estímulo a Caridade: A Trindade como modelo de amor e serviço é para o cristão o principal ponto de referência. Na Trindade encontramos um esforço, um desejo, uma vontade imensa de criar, de salvar e de santificar. Criar, salvar e santificar quem? A mim, a ti a todos aqueles que são dignos de se chamarem Filhos de Deus; e nós o somos graças Aquele que nos amou e nos criou por seu amor, que nos salvou e nos santificou. Do mesmo modo aprendamos a amar, a criar e a santificar a vida onde a vida é roubada, onde a vida é desfigurada pela fome, pela violência, pelo abandono, pela injustiça. Recriemos no olhar das crianças abandonada, nos jovens drogados, na humanidade sofrida o olhar amoroso do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

 

Solenidade de Pentecostes 2022

Pe. Gilvan Leite de Araujo

            A solenidade é de origem judaica, chamada de Shavuot ou Semanas. A Festa de Shavuot ou Pentecostes é a segunda das três grandes festas de Israel. Da festa das primícias, Shavuot passou, ao longo da história, a celebrar a Aliança do Sinai, o “dom” da Torá, sem nunca perder o seu caráter agrícola, chegando ao universo cristão celebrando o “dom” do Espírito Santo.

A expressão hebraica Shavuot, ou seja, “Semanas” pressupõe o número sete, porque a Festa é celebrada “sete semanas” depois Páscoa: “…contareis sete semanas completas. Contareis cinquenta dias até o dia seguinte ao sétimo sábado” (Lv 23,15-16), motivo pelo qual se pode traduzir diretamente do hebraico como Festa das Semanas. A LXX traduzirá a expressão por Festa de Pentecostes, que será assimilada pela tradição cristã.

A Festa de Pentecostes possui um elo constitutivo com a Festa Páscoa, como descrevem os relatos do Pentateuco. Isto, também, será referencial no cristianismo. Apesar de estar vinculada a Páscoa, Pentecostes possuía um caráter exclusivamente agrícola. Agradecia-se a Deus pelos dons da terra. Seu caráter histórico não é claro e, ao longo da história, muitas vezes foi desconsiderada. Contudo, ela se configurava como a segunda festa de peregrinação. O processo historicização da festa judaica será por influência cristã.

O Livro de Rute, cujo relato acontece durante a colheita, era lido solenemente. Nos vilarejos se reunia um cortejo de peregrinos que subiam para Jerusalém a fim de oferecer os dons da colheita a Deus. Quando se aproximavam da cidade os sacerdotes e levitas vinham ao encontro dos peregrinos, guiando-os até o Templo, onde entravam em procissão, portando seus dons e entoando cantos de alegria. Os levitas entoam hinos de louvor. Em seguida as primícias eram entregues nas mãos dos sacerdotes e se pronunciava a solene gratidão ao Deus de Israel, repetindo as palavras de Dt 26,3-10:

Declaro hoje ao Senhor meu Deus que entrei na terra que o Senhor, sob juramento, prometera aos nossos pais que nos daria! [após a entrega das primícias prossegue o peregrino] Meu pai era uma arameu errante: ele desceu ao Egito e ali residiu com os egípcios, porém, nos maltrataram e nos humilharam, impondo-nos uma dura escravidão. Gritamos então ao Senhor, Deus dos nosso pais, e o Senhor ouviu a nossa voz: viu nossa miséria, nosso sofrimento e nossa opressão. E o Senhor nos fez sair do Egito com mão forte e braço estendido, em meio a grande terror, com sinais e prodígios, e nos trouxe a este lugar, dando-nos esta terra, uma terra onde mana leite e mel. E agora, eis que trago as primícias dos frutos do solo que tu me deste, Senhor.

Após esta solene prece os dois pães da primícia (cf. Lv 23,17) eram ofertados como primícias da nova colheita, como gratidão pela proteção de Deus no passado e no futuro, e porque Deus provê o bem do seu povo.

O Povo de Israel, tendo a consciência que tudo é criação do único Deus e que tudo está sob o seu domínio, também teve a consciência que tudo era um “dom” divino. A terra, a chuva, o fruto da terra são uma benção de Deus, principalmente para com o seu Povo Eleito. Por outro lado, a estiagem também era vista como castigo divino: “Eu também vos privei da chuva…” (cf. Am 4,7-8).

A Festa de Pentecostes era para o Povo de Israel o momento de dizer à Deus que tudo é obra sua e que o Povo da Aliança se sente agradecido por ter sido lembrado, ter sido tratado com carinho, ter dado a terra e a chuva:

Visitas a terra e a regas, cumulando-a de riquezas. O ribeiro de Deus é cheio d’água, tu preparas seu trigal. Preparas a terra assim: regando-lhe os sulcos, aplanando seus terrões, amolecendo-a com chuviscos, abençoando-lhe os brotos. Coroas o ano com benefícios, e tuas trilhas gotejam fartura; as pastagens d deserto gotejam, e as colinas cingem-se de júbilo; os campos cobrem-se de rebanhos, e os vales se vestem de espigas, tudo canta de alegria! (Sl 65[64],10-14).

O Sl 65 fornece uma imagem precisa da relação de Deus com seu povo, abençoando seus trabalhos, benção que é a própria ação divina, ou seja, Deus que trabalha com o homem, participando do suor e do trabalho humano. Se para os cananeus e demais povos vizinhos era necessário um culto de fertilidade, numa relação de subordinação às forças de uma divindade agindo através das forças da natureza, para o Povo de Israel, Deus participa ativamente do trabalho humano e, além disso, tudo era d’Ele e tudo tinha dado ao seu Povo Eleito e os cobria de bênçãos. Deste modo, oferecer os dons da terra e do trabalho humano era agradecer ao criador da terra que abençoa cada ano a sua criatura com os frutos da terra.

Para os cristãos, o dia de Pentecostes coincide com a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos:

Tendo-se completado o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do céu um ruído como o agitar-se de um vendaval impetuoso, que encheu toda a casa onde se encontravam. Apareceram-lhes, então, línguas como de fogo, que se repartiam e que pousavam sobre cada um deles. E todos ficaram repletos do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia se exprimirem. (At 2,1-4)

O relato da descida do Espírito Santo se relaciona diretamente com a revelação do Sinai (o vento, o fogo e as línguas). No evento da Pentecostes Cristã novamente Deus manifesta o seu amor, agora se abrindo a todos os povos. O bom fruto que é dado é o seu próprio Espírito, que vem estabelecer a Lei do Amor no coração da humanidade. Enquanto, a Aliança e a Torá conduziam o Povo de Israel para a Terra Prometida, tendo em vista que a Aliança a Torá e a Terra são dons preciosos, na Pentecostes Cristã, os que foram chamados por Jesus Cristo, deixam a Terra e se tornam peregrinos da humanidade, portanto os dons de Deus a cada pessoa humana, revestidos pelo precioso Dom do Deus, o Espírito Santo.

1ª Leitura: At 2,1-11

O livro dos Atos dos Apóstolos dedica um amplo espaço para o tema da Festa de Pentecostes, no qual apresenta o que antecede à vinda do Espírito Santo, o evento propriamente dito, e a consequência disto. Pode-se observar o seguinte esquema: 1. Promessa do Pentecostes (1,4-8); 2. Preparação para o Pentecostes (1,12-26); 3. As provas do Pentecostes (2,1-4); 4. As pessoas do Pentecostes (2,5-13); 5. A profecia do Pentecostes (2,17-21); 6. A pregação sobre o Pentecostes (2,22- 40); e, 7. A proposta do Pentecostes (2,41-47). Assim, com a Ascensão de Jesus, a primeira iniciativa dos Apóstolos é a de recompor o grupo dos doze com a escolha de Matias para o lugar de Judas Iscariotes. Após a reestruturação do grupo dos Doze, Lucas descreve o evento do Pentecostes (cf. At 2,1-13), seguida pela explicação de Pedro à multidão sobre o que ocorreu e o fenômeno das línguas a partir das tradições de Israel (cf At 2,14-36), seguida pela conversão de muitos (cf. At 2,37-41) e a consequência para a comunidade cristã (cf. At 2,42-47). Na narrativa lucana de At 1-2 o Pentecostes confere aos Apóstolos o Espírito Santo e, investidos da “força do alto” estes também recebem o “dom de línguas” capacitando-os para a pregação da Boa Nova aos povos de diversas línguas. Deve-se sublinhar, então, que ocorrem dois fatos: a efusão do Espírito Santo e a concessão do dom de línguas, ou seja, os Apóstolos, tendo recebido o Espírito Santo como dom, recebem, do próprio Espírito, o dom de línguas em vista da missão. Apesar de Lucas se basear na profecia de Joel sobre a promessa do Espírito Santo para os tempos futuros, permitindo àqueles que receberiam o dom de profetizar, o relato enfatiza o tema do testemunho, baseando-se na profecia de Isaías (cf. Is 43,3.10; 44,8; 32,10; 59,21).

2ª Leitura: 1Cor 12,3b-7.12-13

O Concílio Vaticano II ao tratar do tema “carisma” distingue dois conceitos diversos: a) dom extraordinário, dado por Deus de modo excepcional, e, b) dom qualquer, dado por Deus para a edificação da Igreja. O documento conciliar Lumen Gentium (capitulo1§4), falando da obra do Espírito na Igreja, expressa que: “A Igreja, que Ele conduz à verdade total (cfr. Jo 16,13) e unifica na comunhão e no ministério, enriquece-a Ele e guia-a com diversos dons hierárquicos e carismáticos e adorna-a com os seus frutos (cfr. Ef 4,11-12; 1Cor 12,4; Gl 5,22).”

Podemos perceber que o Documento salienta uma distinção entre dons hierárquicos e carismáticos. Igualmente no §7 que trata da Igreja como Corpo de Cristo, expressa em referência a 1Cor 12,1-11: “Assim como os membros do corpo humano, apesar de serem muitos, formam um corpo único, assim também os fiéis, em Cristo (cf. 1Cor 12,12). Também na edificação do Corpo de Cristo há diversidade de membros e de funções. Único é o Espirito que para bem da Igreja (cf. 1Cor 12,1-11) distribui os seus vários dons conforme as suas riqueza e a necessidade de cada ministério (cf. 1Cor 12,1-11)… Ele (Cristo) distribui continuamente ao seu corpo, que é a Igreja, os dons dos diversos ministérios”.

Também na construção do Corpo de Cristo vigora uma diversidade de membros e ofícios. Um é o Espírito, o qual distribui para a utilidade da Igreja a variedade dos seus dons segundo a sua riqueza e as necessidades dos ministérios (cf. 1Cor 12,1-11). Entre estes dons sobressai a graça (gratia) dos apóstolos, cuja autoridade o mesmo Espírito submete os carismas (carismáticos) (cf. 1Cor 14). Aqui se encontram três expressões diversas: dons, graça e carismas. A última frase pode sugerir que os apóstolos não façam parte dos carismas.

O §12 trata amplamente dos carismas e adota o substantivo “charismata”. Este parágrafo encontra-se no segundo capítulo [O Povo de Deus], logo após o parágrafo sobre do “sacerdócio comum”. O tema inicial do parágrafo é sobre o ofício profético do Povo de Deus. O discurso de Pedro no dia de Pentecostes (cf. At 2,16-21) proclama a atuação do oráculo de Joel, o qual anunciava que todos receberiam o Espírito de Deus e profetizariam (cf. 3,1-5). A LG não ressalta o aspecto real do Povo de Deus, como se pode perceber, apenas a dignidade sacerdotal e profética; é nesta dignidade (sacerdotal e profética) que vem anexado a presença dos carismas:

…o mesmo Espírito Santo não se limita a santificar e a dirigir o Povo de Deus por meio dos sacramentos e dos ministérios, e a orná-los com as virtudes, mas também, nos fiéis de todas as classes, ‘distribui individualmente e a cada um, conforme entende’, os seus dons (1Cor 12,11), e as graças especiais, que os tornam aptos e disponíveis para assumir os diversos cargos e ofícios úteis à renovação e maior incremento da Igreja, segundo aquelas palavras: ‘A cada qual se concede a manifestação do Espírito para utilidade comum’ (1Cor 12,7). Devem aceitar-se estes carismas com ação de graças e consolação, pois todos, desde os mais extraordinários aos mais simples e comuns, são perfeitamente acomodados e úteis às necessidades da Igreja.

Aqui também encontramos três temas: dons, graças especais e carisma. O Documento Conciliar específica a natureza dos carismas, que se trata de dons funcionais. Temos assim que, “atividade” e “serviço se relacionam e assumem a função de utilidade. Assim, o dom é concedido para a Utilidade da Igreja, conforme 1Cor 12,7, entendendo Igreja como Corpo de Cristo, Luz para o Mundo ou Sacramento de Salvação.

A novidade do Concílio é a distinção entre “administração ordinária da graça” e “iniciativas novas”. Por “administração ordinária”, o Espírito se serve dos sacramentos e dos ministérios institucionais, enquanto para “iniciativas novas”, se serve dos carismas.

Podemos dizer que o carisma é por natureza funcional, não implicando diretamente na santificação de quem o possui[1], subentendendo que esta utilidade não está exclusa. A utilidade para a edificação da comunidade é o critério para julgar se um carisma é mais ou menos importante.

1Cor 12 nos apresenta duas listas de dons e carismas, ambas são complementares. Contudo, São Paulo faz referência aos ministérios (diaconia) e modos de ação (energêmata) que são atividades do próprio Deus, através do Espírito, tendo Jesus Cristo como modelo (cf. vv. 4-6):

4Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo;

5diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo

6diversos modos de ação, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos.

Os dons dados pelo Espírito não são para a glória pessoal de quem o recebe, ou oportunidade de sobrepor-se aos demais, mas representam a oportunidade para o ministério ou para o serviço à comunidade e através desta o serviço à Deus. Todo serviço ou ministério parte de Deus e o resultado deste serviço converge para Deus.

Evangelho: Jo 20,19-23

O Evangelho para a Solenidade de Pentecostes é sempre a narrativa do encontro de Jesus Ressuscitado com os Apóstolos conferindo-lhes o Espírito Santo, como “dom” e com este, uma prerrogativa particular de Deus, ou seja, o de perdoar pecados. A partir desta dimensão, a remissão dos pecados passa diretamente para o ato sacramental. O próprio Jesus havia usado a prerrogativa do Pai de perdoar pecados gerando controvérsias entre os judeus e acusação de blasfêmia. Agora um atributo próprio de Deus é atribuído aos Apóstolos.

Em jogo está a novidade da ressurreição próxima da ideia da nova criação, na qual o homem redimido pode se tornar apto de Deus. Na tradição protestante entra a negação do ato sacramental e a ideia de ligação direta com Deus (Eu e Deus) junto com expor a realidade do pecado para a comunidade. A situação de pecado pode ser exposta ao público, mas não haverá remissão dos pecados e a matéria do pecado permanecerá sobre o pecador, algo que é anulado através do ato sacramental.

Levando em consideração que o Espírito Santo possui a missão de conduzir tudo e todos à Cristo e este ao Pai, o tornar a pessoa apta e o abrir o caminho e a possibilidade do seguimento e da atividade missionária, no qual o homem/mulher deixa de ser escravo do pecado para se tornar servo de Deus (cf. Rm 6) em favor da humanidade, o perdão dos pecados é a possibilidade que o próprio Deus oferece para que a pessoa possa efetivamente chegar à sua presença “sem impedimentos”.

A Solenidade de Pentecostes celebra o envio da Igreja ao mundo com a “potência” do Espírito Santo guiando-a e capacitando-a para a missão a ser realizada. Tendo ela sido gerada no chamado dos 12 Apóstolos, ao início da missão de Jesus na Galileia, e nascida no dia da Ressurreição, agora é enviada em missão, configurada ao seu Senhor e fortalecida pela ação do Espírito Santo.

Deve-se fazer menção, ainda, ao fato que o NT apresenta três experiências direta da manifestação do Espírito Santo. O Cristo transpassado na cruz, através do qual jorra sangue e água (Jo 19,31-37), O Cristo ressuscitado que sopra sobre os apóstolos (Jo 20,19-23) e a efusão por excelência, na qual o Cristo, tendo subido aos céus e estando a direita do Pai, efundem sobre a Igreja o Espírito Santo.

 



[1] O único dom de santificação pessoal é o da glossolalia (cf. 1Cor 14,4). Contudo, junto com o dom da profecia, o dom de língua “angélica” (≠ do dom de língua em At 2), é individual e possui órgão de controle, ou seja, só pode ser exercido o dom se autorizado por aquele que preside a assembleia e é o possuidor do dom do discernimento (cf. 1Cor 12,10; 14,26-32.39)

5º Domingo da Páscoa Ano C 2022

Pe. Gilvan Leite de Araujo

1ª Leitura: At 14,21b-27

A leitura deste domingo se insere na grande narrativa da 1ª Viagem Missionária de Paulo At 13,1-14,28. Durante esta primeira viagem, o grupo acompanhado por Paulo parte de Antioquia da Síria e passa por Chipe, Salamina, Pafos, Perge, Panfília, Antioquia da Psídia, Icônio, Listra e Derbe. A narrativa de hoje, situa Paulo na última parte da viagem, retornando para algumas cidades (Listra, Icônio e Antioquia da Psídia, Panfília, Perge e Atália) até chegarem ao ponto de partida, ou seja, a cidade de Antioquia da Síria, onde se reunião com a comunidade local para expor os resultados da viagem. Dos resultados surgem questões de prática pastoral que conduzirá ao Concílio de Jerusalém (At 15). A síntese principal é como Deus operou por meio deles, permitindo a evangelização dos gentios.

Digno de nota, que as pregações eram realizadas em dias de sábado nas Sinagogas. Portanto, este é o lugar privilegiado das pregações paulinas e muitas delas se tornaram comunidades cristãs. Além disso, para guiar as comunidades, Paulo institui presbíteros através da imposição das mãos. Estes se configurarão como bispos ou presbíteros.

A tradução para a língua portuguesa da palavra grega como ancião é equivocada. De fato, por ancião se compreende o mais velho dentro da tradição veterotestamentária. Para o cristianismo, o correto é a tradução por “presbítero”, pois pressupõe que possa ser o mais jovem e não necessariamente o contrário.

O eixo central da leitura é o fim da viagem missionário, seguido da partilha com a comunidade de Antioquia da Síria, local da origem da missão. A missão apresentará algumas questões pastorais que resultará no Concílio de Jerusalém (At 15). Além disso, as comunidades fundadas durante a missão são confiadas aos presbíteros, cujo ofício foi conferido via imposição das mãos, que serão responsáveis pelo zelo pastoral destas.

2ª Leitura: Ap 21,1-5a

O capítulo 21 do Livro do Apocalipse descreve as duas primeiras imagens da nova Jerusalém (21,1-8 e 21,9-27). A terceira narrativa encontra-se em Ap 22,1-15. Na narrativa de hoje, a nova Jerusalém é descrita em termos de uma escatologia descendente de transformação, ou seja, uma escatologia intermediária entre a escatologia judaica (descendente de restauração) e a petrina/paulina (ascendente de espiritualização). Portanto, trata-se de uma escatologia primitiva. De fato, a narrativa descreve uma nova Jerusalém descendente do céu e assumindo o lugar da antiga Jerusalém. Tal movimento é resultado da dinâmica pascal de Jesus Cristo, ou seja, por meio da paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo, tudo é transformado, se faz novo. Nesta, o mal não habitará, conforme é observável na lista de vício do v. 8 e a própria morte não mais existirá, pois Cristo a venceu.

Deus se apresenta como um pai amoroso que toma o filho nos braços e consola. De forma indireta, evoca Os 11,1-4, no qual Deus trata Israel como uma criancinha, cercando-a de carinho. Contudo, o contexto geral, é a apresentação do novo povo da aliança. Assim, como Deus morava no meio do seu povo por meio da Tenda do Deserto e do Templo de Jerusalém, agora ele habitará entre os seus cuidando pessoalmente de cada um com amor paternal.

O eixo central é a tipologia Nova Jerusalém e Igreja, como realidades espirituais a serviço e em favor dos homens.

Evangelho: Jo 13,31-33a.34-35

O tema da “glorificação” já tinha aparecido em 12,20-36 e vinculado ao tema do Filho do Homem. A perspectiva da glorificação é da sua universalidade (=gregos), agora, se aproxima do tema da paixão. Destaca-se a quíntupla repetição do verbo “glorificar” (v. 31-32), caso único em todo Novo Testamento:

1. Agora o Filho do Homem foi glorificado

2. e Deus foi glorificado nele

3. Se Deus foi nele glorificado

4. Deus também o glorificará em si mesmo

5. e o glorificará logo

O tema da glorificação entra no contexto intratrinitário. Neste sentido, a missão do Filho se realiza na missão do Pai. Isto evoca no tema do Êxodo. Como o Pai outrora libertou os hebreus da escravidão, agora o Filho liberta a humanidade da escravidão da morte. O tema da libertação, como processo de glorificação divina, tem o seu ápice, portanto, na paixão, morte e ressurreição do Filho. A palavra “agora”, que inicia o paralelismo, possui esta função. “Agora” aparece em 12,27 e 12,31. No Quarto Evangelho “agora” e “hora” habitualmente aparecem junta circunscrevendo o evento pascal (cf. 4,23; 5,25; 12,27) e sua consequência.

A narrativa termina com Lei Régia (cf. Tg 1,24; 2,8) ou seja, o tema do amor. O “amor” na Literatura Joanina se expressa através de ações concretas. Mais exatamente, “Deus é Amor” (1Jo 4,8.21), assim, o amor de Deus se expressa através de atos concretos não meras palavras ou sentimentos, o que pressupõe que o amor cristão é um “amor praticado”, ou seja, ele se expressa através de ações concretas, tendo como ápice, no caso, “doar a vida”. No capítulo anterior, mandamento e palavra foram relacionados ao tema do amor. Agora a perspectiva é ampliada para o amor uns aos outros, como possibilidade para a plena alegria. O doar a vida em favor do outro é a expressão máxima de amor, pois pressupõe gerar/garantir a vida do outro, como na proposta do Bom Pastor (Jo 10).

O eixo central, no entanto, é a missão da Igreja, cujo testemunho antes das Palavra é o amor concreto. A Igreja está no mundo, como realidade espiritual, a serviço da humanidade, anunciando a esperança da vida nova em Cristo Jesus Ressuscitado.

Síntese

Na liturgia deste 5º Domingo, o eixo eclesiológico norteia toda a reflexão. A Igreja (= Povo de Deus; lugar de culto) é estabelecida como sinal de esperança para a humanidade. Portanto, a atividade missionária da Igreja é abrir possibilidade para a o mundo. Como Cristo Ressuscitou, aqueles que o aderem pela fé, conquistam a possibilidade da eternidade. Toda esta dinâmica é realizada como ato de amor. Deus amou tanto o mundo que no deu seu Filho Amado; o Filho tendo amado, entregou a sua própria vida. A Igreja deve ser este sinal do amor para o mundo, testemunha do Ressuscitado.

2º Domingo da Páscoa Ano C 2022

Pe. Gilvan Leite de Araujo

O tempo pascal é iluminado por algumas características eclesiológicas próprias. A primeira tríade, que serve de referencial, é a visão da Igreja enquanto orante, diaconal e missionária. Este eixo referencial continua presente até os dias atuais. A liturgia do 2º Domingo da Páscoa começa a apresentar estas características.

A proposta das leituras deste domingo segue a cronologia evangélica, ou seja, a aparição de Jesus aos Apóstolos oito dias após a ressurreição. No aspecto orante, fica sublinhado o Primeiro Dia da Semana, como momento de reunião dos cristãos, sendo designado como Dia do Senhor e, para nós, o Domingo.

1ª Leitura: At 5,12-16

A primeira parte (Ciclo de Jerusalém) do Livro do Atos dos Apóstolos narra o início da missão da Igreja após o Pentecostes. Esta Igreja se apresenta como servidora, orante e missionária. Cada evento dos apóstolos narrado possui uma pequena conclusão do seu significado para a Igreja (1,42-47; 4,32-35 e 5,12-16…). Portanto, a 1ª Leitura de hoje é uma pequena conclusão da Generosidade de Barnabé (4,36-37) e da Fraude de Ananias e Safira (5,1-11), ou seja, modelos antagônicos de vida cristã. Barnabé confia nos Apóstolos, colocando seus bens em suas mãos, enquanto o casal Ananias e Safira, desconfia retendo parte do dinheiro como uma segurança. No conjunto, na verdade, está a confiança no Espírito Santo, que opera por meio dos Apóstolos, visibilizada nos numerosos prodígios descritos na 1ª Leitura. Além disso, os Apóstolos se comportam como homens de Deus, fiéis à missão, na simplicidade de vida e no zelo pelo Igreja.

2ª Leitura: Ap 1,9-11a.12-13.17-19

O esquema catequético do 2º Domingo da Páscoa é perfeito quando relaciona o Livro do Atos dos Apóstolos como o Apocalipse de João. O primeiro descreve a práxis da Igreja Primitiva, enquanto o segundo descreve a sua espiritualidade. Portanto, ambos se completam e não deveriam ser vistos separadamente, como muitos tentam fazer. Aliás, isto significa que o Apocalipse não é uma obra sobre o fim do mundo, mas sobre o início da Igreja, no qual descreve a vida mística e espiritual das comunidades cristãs.

A 2ª Leitura tem início com a descrição de João na ilha de Patmos. Nada diz que ele esteja encarcerado ou exilado, apenas narra que lá se encontra o vidente por causa da missão.

O ponto fundamental da leitura é a experiência mística que ocorre no Dia do Senhor. Portanto, o destaque está na dimensão orante, momento o qual ele recebe a missão de narrar por escrito o que lhe será revelado. A visão do vidente é do próprio Ressuscitado, com trajes reais (=dignidade do Senhor), que se manifesta a ele.

O Dia do Senhor fica relacionado com o momento litúrgico. A comunidade cristã que se reúne no Dia do Senhor, para celebrar o Ressuscitado. A mesma relação se encontra no Atos dos Apóstolos e nos evangelhos.

Evangelho: Jo 20,19-31

A moldura da narrativa é o Dia do Senhor, no qual se encontra a comunidade cristã reunida. Novamente o foco é a comunidade reunida no Dia do Senhor, no qual o próprio Ressuscitado se manifesta em meio a sua comunidade. A narrativa se desenvolve num intervalo de oito dia, fixando o tema do “primeiro dia da semana”.

O Ressuscitado se manifesta com as marcas da paixão. Não se trata de um fantasma, mas do corpo glorificado, capaz até de se alimentar. Na primeira aparição, o Senhor confere aos Apóstolos o Dom do Espírito Santo e, com este, o atributo do Pai, ou seja, o poder de perdoar os pecados. Isto é fundamental para a unidade da Igreja e para permitir que todos sejam aptos de Deus. A partir deste momento a absolvição dos pecados assume uma prerrogativa sacramental. Assim, a remissão só é possível por meio sacramental, outro meio seria um tentar a Deus.

A segunda aparição ocorre justamente oito dia após, ou seja, novamente no primeiro dia da semana. Desta vez, Tomé, ausente na primeira vez, agora é convidado pelo Senhor a confirmar a sua fé. Na teologia joanina, os apóstolos, discípulas e discípulas são testemunhas oculares. Agora, eles testemunharão por meio da palavra anunciada. A fé, assim, se dará por meio do anúncio.

A reação de Tomé é fundamental. Diante do Ressuscitado, ele reconhece o Senhor como o Deus de Israel, ou seja, Jesus é o “meu Senhor/Adonai” (=YHWH) e o “meu Deus” (=Elohim). Todas as tradições de Israel a respeito de Deus são aplicadas por Tomé à pessoa de Jesus. Portanto, quem é o Ressuscitado? Deus!

O autor do evangelho reafirma esta grande profissão de fé de Tomé dizendo que “Estes… foram escritos para crerdes que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome” (Jo 20,31).

No conjunto das leituras, o destaque é para a comunidade reunida para celebrar no Dia do Senhor. Evidencia-se o aspecto orante da comunidade e sua consequência, manifesta nos sinais e prodígios que derivam da liturgia cristã circunscrita no Cristo Ressuscitado.

 

Semana Santa Ano C 2022

Pe. Gilvan Leite de Araujo

O Domingo de Ramos

Na celebração do Domingo de Ramos converge a tradição jerosoluminatana da procissão de ramos, proveniente da Festa das Tendas, que se torna o pano de fundo para a Entrada Triunfal de Jesus em Jerusalém. Une-se a celebração a tradição romana que orienta os fiéis com a liturgia da palavra centrada no tema da Paixão do Senhor.

Leva-se em conta que o complexo festivo da Festa das Tendas será destrinchado nas celebrações da Semana Santa. Disto advém o costume da procissão de Ramos (domingo) junto com a prisão de Jesus no Monte das Oliveiras (Sexta-Feira Santa) que possuem a função de identificar que Jesus é de fato o Messias, segundo a profecia de Zc 9 e 14. O Salmo 118 serve de moldura para Semana Santa (Domingo de Ramos; Sábado-Santo; Domingo de Páscoa). Proveniente, ainda, da Festa das Tendas será a Benção do Fogo e a Benção da Água, durante a Liturgia do Sábado Santo. Á Festa Judaica das Tendas é importante no complexo da Semana Santa pelos seguintes motivos: a) é a festa da expectativa messiânica de Israel; b) possui contexto escatológico; c) é a festa da eternidade; e, acima de tudo, d) é a Festa de Deus por excelência, entre outras características.

Características do Domingo de Ramos

No Domingo de Ramos, a primeira parte consta do Evangelho que narra a Entrada de Jesus em Jerusalém (Lc 19,28-40), seguido da procissão em honra de Cristo Rei (cf. Sl 118).

 

Características:

Procissão Judaica de Ramos Momento da manifestação do rei-messias (Zc 14)
Monte da Oliveiras Lugar da Manifestação do rei-messias (Zc 14,4)
Jumentinho Indicação da dignidade real do rei-messias (1Rs 1,28-40; Zc 9,9)
Qualidades do rei-messias justo, vitorioso, humilde e guerreiro (Zc 9,9-10)

 

Na segunda parte da liturgia, narra-se o tema do Servo Sofredor na Primeira Leitura (Is 50,4-7), com o Salmo do Abandono na Cruz (Sl 21), a segunda Leitura é o Hino Cristológico de Fl 2,6-11 e a narrativa da Paixão (Lc 22,14-23,56). O Hino de Filipenses exalta o “comandante de tropas” que doa a sua vida para salvar o seu povo. Tendo “caído em batalha” ele recebe as honras e dignidades do “herói combatente”. Tal “vitória em batalha” é descrita na narrativa da paixão, que o apresenta a partir da imagem do Servo Sofredor de Isaías que portará consigo a vitória.

Segunda, Terça e Quarta-feira Santa

Mantem-se o caráter Cristológico da quaresma, seguindo a leitura das semanas anteriores. Leituras proféticas de Isaías e evangélicas de João, com exceção da Quarta, quando se narra a Traição de Judas, segundo Mateus (Mt 26,14-25).

Segunda Jo 12,1-11
Terça Jo 13,21-33.36-38
Quarta Mt 26,14-25

Missa Crismal – Quinta-Feira Santa

Habitualmente celebrada na Quinta-Feira, pela manhã, possui um caráter sacerdotal. Lê-se Is 61,11-3ab.6a.8b-9, sobre o Messias consagrado pelo Espírito; Ap 1,5-8 sobre a realeza de sacerdotes por Jesus Cristo A e W; Lc 4,16-21 sobre a missão de Jesus, ungido pelo Espírito, anunciando na Sinagoga de Nazaré.

Tríduo-Pascal

Quinta-Feira Santa: Missa do Lava-Pés

A Primeira Leitura (Ex 12,1-8.11-14) recorda o ambiente pascal no qual se desenvolverá a Ceia de Jesus e o caráter pascal de sua imolação. A segunda (1Cor 11,23-26) transmite o ensinamento Apostólico a respeito da Instituição da Eucaristia e o Evangelho de João introduz o tema da Caridade (Jo 13,1-15).

Sexta-Feira Santa: Celebração da Paixão

A estrutura atual, fruto de uma síntese de diferentes tradições pode ser justificada deste modo:

Paixão Proclamada Liturgia da Palavra
Paixão Invocada Orações Solenes
Paixão Venerada Veneração da Cruz
Paixão Comunicada Comunhão Eucarística

 

Após uma breve e austera procissão penitencial é proclamada a Paixão nesta perspectiva:

1ª Leitura: Is 52,13-53,12 – A Profecia do Servo de Javé

2ª Leitura: Hb 4,14-16;5,7-9 – Obediência do Filho

Evangelho: Jo 18,1-19,42 – Paixão de Jesus

Na Primeira Leitura lê-se a proclamação profética do Servo do Deutero-Isaías, realizada na Paixão de Jesus. Na Segunda Leitura a Carta aos Hebreus aborda, em perspectiva sacerdotal a obediência do Filho. João narra “a liturgia” da Cruz, onde Jesus Imolado aparece em sua exaltação sobre a Cruz, o Cordeiro Imolado e Rei.

Sábado Santo: Vigília Pascal

A Proclamação da Palavra de Deus acontece a Luz do Cristo Ressuscitado, centro do Cosmo e da História. A Leituras atuais possuem um tríplice caráter simbólico:

a) são Leituras progressivas da História da salvação;

b) possuem um caráter Cristológico e

c) estão em estreita relação com o batismo. A leitura segue o salmo ou cântico, a Oração da Igreja expressa o Sentido Tipológico da leitura.

Antigo Testamento:

1ª Leitura: Gn 1,1-2,2: Criação

Sl 104: As maravilhas da Criação

Oração: memória da criação e da recriação em Cristo

2ª Leitura: Gn 22,1-18: Sacrifício de Abraão

Sl 16: referências messiânicas a Cristo Ressuscitado

Oração: Da fé de Abraão à fé dos batizados em Cristo

3ª Leitura: Ex 14,15-15,1: Passagem do Mar, Páscoa de Israel (Obrigatória)

Cântico: Ex 15: Cântico de Moisés

Oração: Passagem do Mar figura do batismo cristão

4ª Leitura: Is 54,5-14: Fidelidade de Deus Criador e Redentor

Sl 30: Deus misericordioso e salvador

Oração: da paternidade de Deus à esperança da salvação

5ª Leitura: Is 55,1-11: vocação e uma Aliança Eterna

Cântico: Is 12,2.4.6: Deus é nossa Salvação!

Oração: Os Profetas anunciaram a salvação no Espírito

6ª Leitura: Br 3,9-15.32-4,4: No esplendor da Luz Sapiencial

Sl 19: Bondade e beleza da Lei do Senhor

Oração: A Igreja cresça com novos filhos

7ª Leitura: Ez 36,16-17a.18-28: Uma aliança Nova, um coração novo

Sl 42: Sede de Água Viva, do Deus Vivente

Oração: Hoje se cumpre estas promessas

Novo Testamento

8ª Leitura ou Epístola: Rm 6,3-11: Batismo, mistério pascal

Sl 118: A Vitória Pascal de Cristo. Este é o dia que o Senhor fez para nós

Evangelho: Ano C: Lc 24,1-12: Ressurreição

Domingo de Páscoa

A liturgia da palavra se estrutura partindo do Atos do Apóstolos, substituindo o Antigo Testamento, segundo o costume da Igreja Primitiva.

1ª Leitura: At 10,34a.37-43: os Apóstolos, Testemunhas da Ressureição

Sl 118: Este é o dia que o Senhor fez para nós

2ª Leitura:

Cl 3,1-4: Ressuscitar com Cristo

1Cor 5,6-8: Cristo nossa Páscoa foi Imolado

Evangelho:

Missa matutina: Jo 20,1-9: Ressurreição

Missa vespertina: Lc 24,13-35: Discípulos de Emaús

 

A missa matutina do Domingo de Páscoa apresenta o tema do testemunho da Ressurreição de Jesus Cristo. O Discípulo Amado, enquanto sacerdote, mesmo temendo (um levita não pode tocar num cadáver), mas tendo a afirmação de Pedro entra no túmulo, sinal de que este se encontra vazio. A 1ª Leitura confirma os Apóstolos como “Testemunhas” da Ressurreição a partir da pregação de Pedro cujo conteúdo se expressa na 2ª Leitura que converge para a ressurreição de todos que aderem Jesus Cristo pela fé.

A missa vespertina possui o foco sobre o tema do 1º Dia da Semana, como indicativo da identidade cristã, ou seja, reunir-se no 1º Dia da Semana que passa a ser compreendido como “Dia do Senhor” (=Domingo) em virtude da Ressurreição de Cristo.

 

 

5º Domingo da Quaresma Ano C 2022

Pe. Gilvan Leite de Araujo

1ª Leitura 2ª Leitura Evangelho

1º Domingo

Dt 26,4-10

Confissão de fé de Israel

Rm 10,8-13

Confissão de fé cristã

Lc 4,1-13

Tentação do Deserto

2º Domingo

Gn 15,5-12.17-18

Aliança de Abraão

Fl 3,17-4,1

Transformará nosso corpo

Lc 9,28b-36

Transfiguração de Jesus

3º Domingo

Ex 3,1-8a.13-15

“Eu Sou” Presença e Libertação

1Cor 10,1-6.10-12

O caminho de Israel

Lc 13,1-9

Chamado a conversão

4º Domingo

Js 5,9a.10-12

Páscoa na Terra Prometida

2Cor 5,17-21

Reconciliados com Deus em Cristo Jesus

Lc 15,1-3.11-32

O Filho Pródigo

5º Domingo

Is 43,16-21

Eis que faço nova todas as coisas

Fl 3,8-14

Corro para a meta que é Cristo

Jo 8,1-11

A Mulher Adúltera

 

1ª Leitura: Is 43,16-21

A profecia de Isaías anuncia a alegria do retorno. O tempo do castigo acabou. Deus usou de benevolência e proclama o retorno. Is 40 começa com tema próprio desta fase: “consolai, consolai, meu povo” (Is 40,1). Portanto, Is 40-55 é chamado de Livro da Consolação. Deus está suscitando Ciro, o Ungido, como instrumento de libertação.

Nova oportunidade, após a experiência do exílio da Babilônia está sendo dada aos judeus. O retorno para a Terra Prometida é uma nova oportunidade; é o recomeço de tudo.

Outrora, no Sinai, Deus e Israel estabeleceram uma Aliança e confirmaram através da Lei. Como parte do acordo, Deus ofereceu a terra e Israel a si próprio. Contudo, a parte que quebrasse o acordo perderia o direito. 1 e 2Reis avaliam justamente isto, Israel foi infiel e na sua infidelidade perderão a posse da terra. Irão para o exílio. Livro das Lamentações reconhece esta situação e vê o exílio como um tempo de castigo.

Agora, Deus está dando uma nova oportunidade. A culpa foi deixada de lado. É tempo de recomeçar.

2ª Leitura: Fl 3,8-14

Paulo proclama para os filipenses que aquilo que era realidade no passado, antes da conversão, ele considera como lixo. O importante é o novo em Cristo Jesus. Na realidade, Paulo anuncia a sua opção moral. Existe uma nova opção moral baseada em Cristo Jesus, que se torna o seu referencial.

Para o Apóstolo, o que foi outrora não conta mais, o importante é o agora, o tempo presente em Cristo, que o lança para o futuro, que o lança para o céu.

Evangelho: Jo 8,1-11

A narrativa da Mulher Adúltera, entra na liturgia a partir no foco na nova possibilidade que está sendo dado. Existe uma realidade de pecado, mas Jesus não aplica diretamente o juízo da lei, ele propõe uma nova possibilidade. O pecado foi cometido, mas a misericórdia é aplicada.

a) Introdução (7,53-8,2): uma multidão anônima e Jesus se separam para se encontrarem no dia seguinte. Jesus ensina;

b) Escribas, fariseus e Jesus (8,3-6a): os escribas e fariseus armam uma cilada contra Jesus;

c) Jesus, os escribas e fariseus (8,6b-9): Jesus inverte a situação;

d) Jesus e a mulher (8,10-11): Pela primeira vez a mulher assume papel ativo diante da pergunta de Jesus.

v. 2: O estar sentado é a posição própria daquele que ensina

O ensinamento de Jesus é interrompido pelos escribas e fariseus, que lhe apresentam um caso.

Uma mulher é posta no meio e indicada como “adúltera”, portanto, trata-se de uma mulher casada

Mulher Adultera = no meioCristo Crucificado = no meioÁrvore da Vida = no meio do jardim (Gn 2,9; Ap 22,2)

A parte envolvida (homem) no adultério não é descrita;

O lugar do flagrante também não é indicado;

A reação do marido da mulher também não é indicada;

v. 4: A acusação formal

v. 5: Exposição sobre o que a Lei de Moisés ordena a respeito desse tipo de caso

No Decálogo encontra-se um mandamento explícito sobre a questão do adultério (cf. Ex 20,14; Dt 5,18). Além disso, a Torá prevê sanções a respeito do adultério, com agravantes e atenuantes (Lv 20,10-21; Dt 22,22 v. 6a Jesus é posto diante de um dilema = fidelidade à Lei x Misericórdia Divina

v. 6b Jesus se abaixa e põe-se a escrever com o dedo no chão

O abaixar-se de Jesus pode indicar indiferença e recusa de participação numa questão que não lhe compete. Além disso, o escrever no chão com o dedo, pode evocar as seguintes possibilidades relacionadas a Deus:

Quando vejo o céu, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas que fixaste (Sl 8,4) = CRIAÇÃO

Yhwh deu-me então as duas tábuas de pedra, escritas pelo dedo de Deus (Dt 9,10) = LEI

De repente, apareceram dedos de mão humana que se puseram a escrever, por detrás do lampadário, sobre o estuque da parede do palácio real, e o rei viu a palma da mão que escrevia (Dn 5,5) = JUÍZO DIVINO

Contudo, o texto não informa o que Jesus escreve e, diante deste fato, não se pode afirmar o que ele escreve, mas apenas o ato, que o relaciona com Pai = tudo que o Pai faz o Filho o faz igualmente.

v. 7 com a insistência Jesus se levanta e indica uma ação:

Quem dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra!

A resposta de Jesus é estranha, tendo em vista que o público se encontra em Jerusalém para a Festa das Tendas e, ritualmente, se encontram puros, após terem participado da celebração de Yom Kippur (Dia do Perdão) que antecede a celebração. Por outro lado, alguns textos do AT expõe a questão comprometendo os acusadores:

…pelo contrário: deverás matá-lo! Tua mão será a primeira a matá-lo e, a seguir, a mão de todo o povo. Apedreja-o até que morra, pois tentou afastar-te de Yhwh teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão. (Dt 13,10-11)

…então farás sair para as portas da cidade o homem ou a mulher que cometeu esta má ação, e apedrejarás o homem ou a mulher até que morra. Somente pela deposição de duas ou três testemunhas poder-se-á condenar alguém à morte; ninguém será morto pela deposição de uma só testemunha. A mão das testemunhas será a primeira a fazê-lo morrer, e depois a mão de todo o povo. Deste modo extirparás o mal do teu meio. (Dt 17,5-7)

Em síntese: quem aplicar a condenação estando em pecado contra a Lei se torna diretamente réu da própria Lei. A mão que condena e aplica a pena deve ser pura, caso contrário incorrerá em crime contra a própria Lei, ou seja, quem exige uma aplicação rigorosa da Lei deve aplicá-la antes a si mesmo.

v. 8 Inclinando-se de novo, escrevia na terra.

v. 9 Eles, porém, ouvindo isso, saíram um após outro, a começar pelos mais velhos. Ele ficou sozinho e a mulher permanecia lá, no meio.

A indicação de que os mais velhos são os primeiros a retirarem do local remete ao ensino da Lei os quais eram responsáveis de ensinar aos mais jovens. Lógico que entra a questão sobre o que era ensinado. A pergunta de Jesus ao legista: “Que está escrito na Lei? Como lês?” (Lc 10,26). Esta é uma referência fundamental para um estudioso: como compreendo o que está escrito; porque disto provem a aplicação, que pode resultar em rigorismos, fundamentalismos, rubricicismos…

v. 10 Então, erguendo-se, Jesus lhe disse: “Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?

É a primeira vez que alguém dirige a palavra à mulher. A observação de que não tem mais ninguém em volta deles indica que a acusação foi retirada.

v. 11 Disse ela: “Ninguém, Senhor”. Disse, então, Jesus: “Nem eu te condeno. Vá e, a partir de agora, não peques mais!”.

A resposta de Jesus : “Vá e, a partir de agora, não peques mais!” (v. 11)

Mas quanto ao ímpio, se ele se converter de todos os pecados que cometeu e passar a guardar os meus estatutos e a praticar o direito e a justiça, certamente viverá: ele não morrerá. Nenhum dos crimes que praticou será lembrado. Viverá como resultado da justiça que passou a praticar. Porventura tenho eu prazer na morte do ímpio? – oráculo do Senhor Ywhw. – Porventura não alcançará ele a vida se se converter de seus cantinhos? Por outra parte, se o justo renunciar à sua justiça e fizer o mal, à imitação de todas as abominações praticadas pelo ímpio, poderá ele viver fazendo isto? Não! Toda a justiça que praticou já não será lembrada! Antes, em virtude da infidelidade que praticou e do pecado que cometeu, morrerá. Entretanto dizeis: “O modo de agir do Senhor não é justo”. Pois ouvi-me, ó casa de Israel: será o meu modo de proceder errado? Não será antes o vosso modo de proceder que não está certo? (Ez 18,21-25)

Síntese da Liturgia

O foco deste domingo é a nova oportunidade que está sendo oferecido. Assim, finalizando a catequese quaresmal encontrou-se os seguintes passos:

1º Domingo da Quaresma: Jesus é aquele que venceu o Diabo e que vencerá a morte;

2º Domingo da Quaresma: mas quem é este Jesus? Ele é o Filho, que se afirmar como o Senhor, o Eleito;

3º Domingo da Quaresma: Sabendo em quem deposito a minha fé estou pronto para receber os sacramentos da Iniciação Cristã: travessia do mar/Batismo; Maná do deserto/Eucaristia; água que sai da rocha/Crisma;

4º Domingo da Quaresma: recebendo os sacramentos, tendo assim retornado agora entro para a casa do Pai, me torno filho amado celebrado pela festa.

5º Domingo da Quaresma: Tendo sido acolhido por Deus, abandono o passado e avanço para frente, pois o importante, agora, é Jesus Cristo, o meu Salvador (tema das três leituras), o que passou não importa mais. Foi-me dado uma nova oportunidade.

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** A MULHER ADÚLTERA NO EVANGELHO DE JOÃO-Gilvan Leite de Araujo - em PDF

 

4º Domingo da Quaresma Ano C 2022

 

1ª Leitura 2ª Leitura Evangelho

1º Domingo

Dt 26,4-10

Confissão de fé de Israel

Rm 10,8-13

Confissão de fé cristã

Lc 4,1-13

Tentação do Deserto

2º Domingo

Gn 15,5-12.17-18

Aliança de Abraão

Fl 3,17-4,1

Transformará nosso corpo

Lc 9,28b-36

Transfiguração de Jesus

3º Domingo

Ex 3,1-8a.13-15

“Eu Sou” Presença e Libertação

1Cor 10,1-6.10-12

O caminho de Israel

Lc 13,1-9

Chamado a conversão

4º Domingo

Js 5,9a.10-12

Páscoa na Terra Prometida

2Cor 5,17-21

Reconciliados com Deus em Cristo Jesus

Lc 15,1-3.11-32

O Filho Pródigo

 

No 1º Domingo do Quaresma foi apresentado Jesus Cristo como o Redentor a medida que ele venceu o diabo e vencerá a morte (Domingo de Páscoa). Portanto, Ele é o Senhor e seu senhorio é proveniente do seu poder de dar a vida para depois resgatá-lo. Deste modo a fé cristã é depositada naquele que é capaz de vencer o diabo e a morte. Mas quem é este Jesus? O 2º Domingo da Quaresma o apresentou como o Eleito e como o Filho de Deus. Assim, Jesus é o continuador do trono eterno de Davi e, ao mesmo tempo, enquanto Filho é Deus. No 3º Domingo da Quaresma, consciente de quem é Jesus, a catequese apresentou o caminho batismal, através da vocação de Moisés e da vocação de Israel. Tendo atravessado o mar, os Hebreus se tornaram um povo (=Israel). Israel foi alimentado por um pão espiritual (=maná) e saciado a sede, por uma bebida espiritual (=água da rocha) e caminhavam no deserto sob a proteção de Deus (=nuvem). Contudo, se comportaram mal diante de Deus e, aqueles que saíram, não entraram na Terra Prometida: “Quarenta anos esta geração me desgostou, e eu disse: Sempre os corações errantes, que não conhecem meus caminhos. Então eu jurei na minha ira: jamais entrarão no meu repouso!” (Sl 95[94],10-11).

Os cristãos, são aqueles que foram batizados e, tendo deixado o pecado, entraram na vida da graça. Estes são alimentados pelo pão espiritual (=Corpo de Cristo) e são saciados pela bebida espiritual (=Espírito Santo). Mas, nos comportamos como murmuradores? A liturgia termina afirmando que ainda existe uma oportunidade: “Senhor, deixa-a ainda este ano para que eu cave ao redor e coloque adubo. Depois, talvez, dê frutos” (Lc 13,8-9).

1ª Leitura: Js 5,9a.10-12

O Êxodo possui o seguinte esquema: Egito, travessia do mar/Aliança-Lei; Caminho do Deserto; travessia do Jordão; Terra Prometida. Deste esquema, a narrativa de hoje descreve o momento que o Povo Eleito ingressa na Terra Prometida. É a transição entre a 1ª Páscoa na saída do Egito e a 2ª Páscoa na Terra Prometida. A 1ª Páscoa foi celebrada em meio a angústia e a esperança. A 2ª Páscoa na Terra Prometida é celebrada em meio a alegria e a esperança da vida nova.

No Egito não havia esperança, mas Deus veio em seu socorro e lhes concedeu nova oportunidade, nova vida. A entrada na Terra Prometida é a concretização desta promessa.

A 1ª Leitura foca a possibilidade do recomeço. Deixar o passado e abraçar o presente que vislumbra um futuro feliz. Aquele que libertou Israel, continua hoje realizando as suas maravilhas.

2ª Leitura: 2Cor 5,17-21

Paulo exorta da comunidade de Corinto a se deixar reconciliar, a acolher a libera graça de Deus. Internamente, a comunidade de Corinto está se comportando com os vícios de outrora (brigas, fofocas, falsas acusações…). Diante disto, Ele afirma não poder oferecer alimento sólido, pois a comunidade ainda se comporta como pessoas carnais e não espirituais.

Torna-se necessário um processo de conversão ao Evangelho. De fato, são cristãos, mas se comportam como pagãos. Tendo em vista toda esta realidade, Paulo convida a retornar para o Senhor, a se deixar reconciliar.

Evangelho: Lc 15,1-3.11-32

No capítulo 15 de Lucas, Jesus narra três parábolas que envolvem o tema da misericórdia: 1) a ovelha perdida; 2) a dracma perdido; e 3) o filho perdido. Na primeira parábola, entre cem ovelhas o pastor vai em busca daquela que se perdeu. A relação é 1/100. Na segunda parábola uma mulher possui dez moedas e perde uma. A relação é 1/10; e na terceira parábola o pai espera a volta do filho que se perdeu. A relação é 1/2. Percebe-se um crescente que vai de um centésimo, um décimo e cinquenta e um de dois. Portanto, a perda do filho possui um peso substancial na relação paterna. Além disso, o encontro da ovelha, da moeda e do filho é marcado pela alegria: “é preciso alegrar-se”. Nas três parábolas Jesus conclui com o tema da alegria celeste diante do pecador que se converte, pois, para este a salvação chegou e foi livre da morte.

Quanto a terceira parábola, ou seja, a do Filho Perdido, ele pode ser lido a partir do critério individual ou social.

Na perspectiva social, a parábola do filho perdido pode ser lida a partir da história do Povo Eleito. Após a morte de Salomão, o reino foi dividido em dois: Reino do Norte (=Israel) e Reino do Sul (=Judá). Os livros dos Reis (1 e 2Reis) narram a história do Reino do Norte e Reino do Sul, até a queda do norte (722 a.C.) e reino do sul (589 a.C.). Israel é concebido como o mais novo e Judá, como o mais velho. Aplicado à parábola, o filho mais novo (Samaria/Galileia) pecou, mas se abre para a misericórdia de Deus. O filho mais velho é Judá, ele acolherá a misericórdia?

Na perspectiva individual, a parábola apresenta dois filhos ingratos. O mais jovem, é egoísta e individualista. O importante é a sua realização pessoal. Ele enxerga o pai como alguém morto: “dá-me a parte da herança que me cabe”. O segundo filho enxerga o pai como um patrão ingrato a quem deve apenas obedecer: “Há tantos anos que eu te sirvo, e jamais transgredi um só dos teus mandamentos, e nunca me deste um cabrito para festejar com meus amigos”. Entre os filhos encontra-se um pai amoroso que respeita a liberdade dos filhos, mas é incompreendido pelos filhos.

No primeiro caso, a escolha errante do filho permitiu que ele reconhecesse quem de fato é o seu pai: “Quantos empregados de meu pai têm pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome!” E não somente isto, ele fará a experiência da sua misericórdia: “Ele estava ainda ao longe, quando seu pai o viu, correu e lançou-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos”.

Quanto a atitude do pai em relação ao filho mais novo: “Ide depressa trazei a melhor túnica e revesti-o com ela, ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés”. Jesus apresenta, num primeiro momento, três atitudes do pai: túnica, anel e sandálias. Seguira o cordeiro e a festa.

Túnica: indica condição moral ou social. Aqui pode se entender o perdão concedido pelo pai.

Anel: o pai restitui a dignidade de filho, não de empregado.

Sandálias: todos os bens perdidos são dados novamente ao filho. O uso de sandálias implica de posse, em sentido jurídico, conhecida como Lei do Levirato (cf. Dt 25,5-10), mas que se estende para posse de propriedade em geral (cf. Rt 4,7).

O filho mais novo age como alguém que se converteu: Ele confessa a sua culpa, sem rodeios: “pequei contra Deus e contra ti”. O não se justificar, mas o assumir a culpa está em relação com o final da 2ª Leitura, domínio sobre o pecado.

Jesus termina a parábola deixando uma pergunta no ar: o filho mais velho compreendeu e retornou ao pai? Possivelmente, Jesus tenha deixado aberta para todos nós, ou seja, somo aqueles que permanecemos “fiéis” a fé cristã, mas compreendemos Deus como um Pai bondoso e misericordioso e nele confiamos verdadeiramente? Esta questão entra em contato com a 2ª Leitura, uma comunidade cristã, mas que se comporta com atitudes carnais e não espirituais.

 

 

2º Domingo da Quaresma Ano C 2022

Pe. Gilvan Leite de Araujo

1ª Leitura 2ª Leitura Evangelho

2º Domingo

Gn 15,5-12.17-18

Aliança de Abraão

Fl 3,17-4,1

Transformará nosso corpo

Lc 9,28b-36

Transfiguração de Jesus

 

1ª Leitura

Após a Aliança de Deus com Noé, esta é a segunda Aliança que Deus estabelece. Na primeira Aliança Deus promete à Noé não mais destruir a terra por meio das águas. A segunda Aliança, estabelecida com Abraão, segue cinco promessas de Deus à Abraão por sua fidelidade demonstrada através dos seus atos.

A Aliança de Deus com Abraão compreende, portanto, estas cinco promessas: 1) genealogia; 2) descendente; 3) terra; 4) presença e 5) bênção (cf. Gn 15-17). Assim, alinhado com Abraão, tais promessas se estende aos seus descendentes. Em primeiro lugar à Isaac, Jacó e José. De José para os filhos de Israel e, dos filhos de Israel, para todos os povos, por meio de Jesus Cristo, o Filho Eleito.

Leva-se em conta que Abraão é anterior à Aliança estabelecida com Moisés, considerada a Aliança por excelência, até a plenitude dos tempos, no qual, uma Aliança plena e eterna será estabelecida através de Jesus Cristo.

Aproximando a Nova Aliança, realizada por meio de Jesus Cristo, à Aliança estabelecida com Abraão, a catequese que afirmar que a Nova Aliança se abre, de fato, a todos os povos, línguas e nações, tendo em vista que Abraão se configura como pai da fé e dos povos, ou seja, enquanto as promessas feita por Deus a Abraão assume uma abrangência universal. Tal universalidade se realiza na pessoa de Jesus Cristo, hoje, na liturgia, apresentado como o Filho e o Eleito. Portanto, o foco da leitura é a universalidade.

2ª Leitura

Uma colônia formada por legionários romanos tinha como base os princípios da hierarquia militar, o qual pressupõe a organização e a observância de ordens superiores. Paulo convida os filipenses e terem como referencial Jesus Cristo, a quem ele mesmo se tornou imitador e obediente.

As ideias de disciplina militar, treino para a batalhar, o moral e a coragem são agora transferidas para a pessoas de Jesus, o herói que derramou seu sangue em batalha (Fl 2,5-11), salvando os seus e garantido a paz. Jesus se torna o modelo a ser seguido, Paulo é o “valente” observador que se torna referência para os demais. Como evangelizador ele está pronto para a missão, assim como um soldado deve estar pronto para a batalha.

Nesta batalha, se encontra aqueles que se comportam como “inimigos da cruz de Cristo”, cuja derrota já esta anunciada. Os cristãos, no entanto, se comportam, aqui na terra, como cidadãos do céu, porque batalham como coragem aguardando o Salvador que tornará seus corpos semelhantes ao seu corpo glorioso, ou seja, o cristão espera a feliz ressurreição, reservada para aqueles que lutam com coragem neste mundo, sem jamais perder a esperança da vitória definitiva.

Evangelho

Jesus, enquanto Filho fora apresentado no batismo (3,21-22: “…no momento em que Jesus, também batizado, achava-se em oração, o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre ele em forma corporal, como pomba. E do céu veio uma voz: Tu és o meu Filho; eu, hoje, te gerei!”) e na tentação do deserto (4,1-13: “Disse-lhe, então, o diabo: Se és filho de Deus, manda que esta pedra se transforme em pão… Se és Filho de Deus, atira-te para baixo”). Contudo, o contexto da narrativa da transfiguração é superior em dois aspectos: 1) Não se trata da revelação do Filho, mas da manifestação da sua Glória e 2) a filiação é garantida diante da profecia da paixão.

Na tentação do deserto o diabo induzia Jesus a manifestar a sua glória em termos de poder divino: “Conduziu-o depois a Jerusalém, colocou-o sobre o pináculo do Templo e disse-lhe: Se és Filho de Deus, atira-te para baixo, porque está escrito: Ele dará ordem a seus anjos a teu respeito, para que te guardem. E ainda: E eles te tomarão pelas mãos, para que não tropeces em nenhuma pedra” (Lc 4,9-11). Na transfiguração a glória de Jesus é manifesta em termos de poder para entregar a vida = paixão/ressurreição, portanto, o anúncio que acompanha a transfiguração: “É necessário que o Filho do Homem, seja rejeitado pelos anciãos, chefes dos sacerdotes e escribas, seja morto e ressuscite ao terceiro dia” (9,22). Entre a proposta do diabo e a proclamação de Deus, através da proclamação de Jesus, se estabelece uma inversão do conceito de Glória que manifesta Jesus enquanto “Senhor”. O poder de Jesus não se expressa em termos de autoritarismo pessoal, mas em termos de poder diaconal: dar a vida em favor de muitos. A soberania do Senhor é em favor do mundo, não de dominação.

Este conceito retorna na narrativa dos discípulos de Emaús, no qual Jesus afirma aos discípulos “não era preciso que o Cristo sofresse tudo isso e entrasse em sua glória?” (24,26). Na perspectiva lucana a glória do Filho se manifesta no evento pascal: paixão, morte e ressurreição.

A transfiguração lucana equipara Jesus à Moisés (cf. Ex 34,29s), não somente enquanto o “novo Moisés”, mas pela experiência que ele faz diante de Deus no Monte: “Quando Moisés desceu da montanha do Sinai, trazendo nas mãos as duas tábuas do Testemunho, sim, quando desceu da montanha, não sabia que a pele de seu rosto resplandecia porque havia falado com ele. Olhando Aarão e todos os filhos de Israel para Moisés, eis que a pele de seu rosto resplandecia; e tinham medo de aproximar-se dele” (Ex 34,29-30).

Em Lc 9,27 Jesus diz “Eu vos digo… que alguns dos que aqui estão presentes não provarão a morte até que vejam o Reino de Deus”. Na sequência é dito que “Pedro e os companheiros estavam pesados de sono. Ao despertarem, viram sua glória e os dois homens que estavam com ele” (9,32), enquanto anteriormente “Herodes… disse: A João, eu o mandei decapitar. Quem é esse, portanto, de quem ouço tais coisas? E queria vê-lo” (9,9). No contexto lucano, os “homens de boa vontade” estão abertos a escutar e ver Jesus (2,14), enquanto outros não. De fato, “Herodes ficou muito contente; havia muito tempo que queria vê-lo… Herodes, juntamente com a sua escolta, tratou-o com desprezo e escárnio; e, vestindo-o com uma veste brilhante, remeteu-o a Pilatos” (23,8.11). Curiosamente, Jesus, diante do Pai, é transfigurado e suas roupas ficaram “fulgurantes de brancura”, enquanto Herodes revesti-o com uma “veste brilhante” (23,9). Além disso, o Pai proclama que Jesus é o Filho o Eleito (9,35), enquanto Herodes o trata com desprezo e escárnio (23,11).

Diante do Pai, Jesus é exaltado e diante de Herodes e Pilatos é humilhado. Mas, no conjunto da transfiguração, Jesus, Moisés e Elias “falavam do seu êxodo que iria se consumaria em Jerusalém” (9,31). Portanto, a transfiguração está em vista do evento pascal. Além disso, Moisés e Elias são descritos na tradição veterotestamentária como os “porta-vozes” de Deus. Israel deveria escutar Moisés. Agora, Deus afirma que ele fala por meio do seu Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas. Israel é, assim, convidado à ouvir o Filho

 

Leva-se em conta, ainda, a ação de Pedro, que é importante na narrativa. De fato, ele vê na transfiguração o início dos tempos messiânicos que teria como momento justamente durante a Festa das Tendas, o que o leva a sugerir a construção das tendas festivas que abrem a solenidade. Por outro lado, Jesus expressa que a sua messianidade se manifestará na paixão-ressurreição. Assim, se torna compreensível outro rito da Festa, ou seja, a Entrada Triunfal de Jesus em Jerusalém, que ocorre justamente durante a Festa das Tendas (Lc 19,28-38), tendo o jumentinho a evocação da realeza do Messias, portanto, trata-se de um messias real, outro Davi (cf. 1Rs 1). Assim, Jesus é o Eleito como Davi é o Eleito: “Fiz uma aliança com meu eleito, eu jurei ao meu servo Davi: estabeleci tua descendência para sempre, de geração em geração construo um trono para ti… Encontrei o meu servo Davi e o ungi com meu óleo santo… Ele me invocará: Tu és meu pai, meu Deus e meu rochedo salvador! Eu o tornarei meu primogênito o altíssimo sobre os reis da terra” (Sl 89,4-5.21.27-28)

Síntese

A 1ª Leitura nos coloca na linha de “herdeiros da promessa” que se realiza por meio de Jesus Cristo, o Filho Eleito. A Promessa feita à Abraão como a Nova Aliança estabelecida por meio de Jesus Cristo possuem contexto Universal. O Filho Eleito concretiza tal eleição levando a plenitude a obra criadora e libertadora do Pai (Evangelho) e se tornando o modelo e a esperança para todos os povos (2ª Leitura).

 

1º Domingo da Quaresma Ano C 2022

 

1ª Leitura 2ª Leitura Evangelho

1º Domingo

Dt 26,4-10

Profissão de fé de Israel

Rm 10,8-13

Profissão de fé cristã

Lc 4,1-13

Tentação do Deserto

A fé de Israel // a fé em Cristo; Jesus tentado e vencedor;

 

 

1ª Leitura: Dt 26,4-10

A 1ª leitura proposta para o 1º Domingo da Quaresma apresenta a Liturgia da Festa de Pentecoste (Shavuot).

A Festa Judaica de Pentecoste possui um elo constitutivo com a Festa da Páscoa, como descrevem os relatos do Pentateuco. Tal vínculo também é verificável no ciclo pascal cristão. Apesar de estar vinculado a Páscoa, Pentecoste permanecerá, ao longo da história de Israel, uma solenidade tipicamente agrícola. Agradecia-se a Deus pelos dons da terra. Seu caráter histórico não é claro e, ao longo da história, muitas vezes foi desconsiderada. Contudo, ela se sempre se configurou como uma festa de peregrinação como Páscoa de Tendas, cuja tríade (Páscoa, Pentecoste e Tendas) possuíam origem agrícola e se tornarem festas que faziam memória do Êxodo.

Assim, a festa conserva o seu caráter agrícola de festa de colheita das primícias, mesmo após ser historizada, pelo cristianismo, como uma solenidade que celebrava a Aliança e a Lei. O Livro de Rute, cujo relato acontece durante a colheita, era lido solenemente. Nos vilarejos se reunia um cortejo de peregrinos que subiam para Jerusalém a fim de oferecer os dons da colheita a Deus. Quando chegavam as portas da cidade, os sacerdotes e levitas vinham ao encontro dos peregrinos, guiando-os até o Templo, onde entravam em procissão, portando seus dons e entoando cantos de alegria. Os levitas entoam hinos de louvor. Em seguida as primícias eram entregues nas mãos dos sacerdotes e se pronunciava a solene gratidão ao Deus de Israel, repetindo as palavras de Dt 26,3-10:

Declaro hoje ao Senhor meu Deus que entrei na terra que o Senhor, sob juramento, prometera aos nossos pais que nos daria! [após a entrega das primícias prossegue o peregrino] Meu pai era uma arameu errante: ele desceu ao Egito e ali residiu com os egípcios, porém, nos maltrataram e nos humilharam, impondo-nos uma dura escravidão. Gritamos então ao Senhor, Deus dos nosso pais, e o Senhor ouviu a nossa voz: viu nossa miséria, nosso sofrimento e nossa opressão. E o Senhor nos fez sair do Egito com mão forte e braço estendido, em meio a grande terror, com sinais e prodígios, e nos trouxe a este lugar, dando-nos esta terra, uma terra onde mana leite e mel. E agora, eis que trago as primícias dos frutos do solo que tu me deste, Senhor.

Após esta solene prece os dois pães da primícia (cf. Lv 23,17) eram ofertados como primícias da nova colheita, como gratidão pela proteção de Deus no passado e no futuro, e porque Deus provê o bem do seu povo.

A importância desta narrativa da Festa de Pentecoste na liturgia de hoje é a Profissão de Fé de todo judeu que subia anualmente para o Templo de Jerusalém, a fim de participar da solenidade. Proclamando o Credo de Israel, todo judeu fazia memória do Êxodo e de como Deus agiu em se favor e continuará ao longo da sua história.

2ª Leitura: Rm 10,8-13

A primitiva profissão de fé cristã, como verificável na Carta aos Romanos destaca os temas do Senhorio e da Ressurreição de Jesus. Reconhecer Jesus enquanto “Senhor” (ku,rioj) possui valor messiânico. Fala-se aqui de um messianismo real. Portanto, proclamar Jesus como Senhor é reconhecer a sua soberania. Mas, de onde advém a sua soberania? Justamente do se ato soberano de doar a vida livremente para depois resgatá-la, que o configura como “Salvador” e, principalmente, “Redentor”.

As narrativas neotestamentárias aproximam “Senhor” com “Salvador”. Tal vínculo que sublinhar o exposto acima sobre o poder soberano de Jesus para salvar dando a própria vida.

Evangelho: Lc 4,1-13

Enquanto Messias, Jesus deverá, entre algumas missões, as seguintes: a) saciar a fome dos povos; b) estabelecer o Reinado do Pai; e c) manifestar a Glória de Deus. O diabo propõe facilitar as coisas e usar em proveito próprio, ou seja, a) saciar a fome de Jesus; b) estabelecer o reinado de Jesus; e, c) Manifestar a glória de Jesus.

As diversas correntes messiânicas possuíam estruturas própria. O Messianismo Real Davídico se dividia entre um descente de Davi, portanto, via genealogia, e um novo Davi. Este messianismo se baseava nos feitos de Davi: a) proteção territorial da Terra Prometida contra invasões estrangeiras; b) unificação da Terra Prometida; c) resgate das tradições culturais e espirituais de Israel; d) resgate e fortalecimento dos juízes de Israel, enquanto conselho de estado; e) resgate e fortalecimento do sacerdócio de Yhwh; f) criação da Cidade de Davi / Jerusalém. Todas estas prerrogativas serão aplicadas ao futuro Ungido. Tecnicamente, o Messias deverá a) reestabelecer o Reinado de Deus; b) Manifestar a Glória Divina; e c) Saciar a fome do povo = sobriedade.

A Tentação do Deserto está em vista da missão de Jesus. Enquanto Messias (Cristo) ele deverá cumprir uma missão inerente ao messianismo. O diabo se apresenta como o facilitador, mas o contexto é a individualização e não o comunitário como pressupõe a missão de Jesus, ou seja, não está em vista dele, mas do mundo.

Na tentação de Adão e Eva, o diabo coloca em dúvida a palavra de Deus, ou seja, ele confunde a pessoa. Apresenta Deus como alguém repressor, que tira a liberdade e que não quer o bem da pessoa, apenas oprimi-la.

Assim, o diabo não apenas tenta “facilitar” a missão de Jesus, mas colocá-lo em oposição ao Pai, em proveito próprio.

O tema da Tentação do Deserto se aproxima do tema do Pecado Original, que possui a seguinte estrutura: a) o diabo apresenta o pecado como algo bom para o indivíduo; b) tendo pecado, o diabo passa a acusá-lo; c) pecando, a pessoa se isola e começa a condenar o outro como culpado pelo pecado. Esta é a estrutura do pecado que Paulo trabalhará, por exemplo, em Rm 6. Na base do pecado esta o fechamento da pessoa em si mesmo, o outro não importa, é uma ameaça. Esta estrutura é o que Paulo chama de “corpo do pecado”. Qual é a eficácia da cruz diante deste esquema? Jesus, que não cometeu pecado, se faz corpo do pecado e o destrói na cruz. Jesus não se justifica, mas assume o pecado. Sua eficácia é o silêncio da cruz: silêncio do Filho e silêncio do Pai.

O diabo apresenta o pão; os reinos e a glória como algo bom para Jesus, excluindo o Pai e o mundo; o importante é Jesus, o resto não importa. Isto está muito presente nas pregações cristãs atuais, no qual o foco é o indivíduo: o importante é que a pessoa seja feliz, o resto não importa. O Senhorio de Jesus se manifesta quando ele demonstra que não veio realizar as suas vontades, mas servir o Pai em favor do mundo. O centro da sua missão não é a sua autorrealização, mas cumprir a vontade daquele que o enviou. Isto vai diretamente contra à proposta do diabo.

Cumprindo a vontade do Pai, na liberdade, Jesus se doa livremente, com plena capacidade de doar a vida para depois resgatá-la, bem como, tornar possível a todas as pessoas humanas, por meio dele, se tornarem filhos e filhas de Deus.

Síntese

A liturgia do 1º Domingo da Quaresma sublinha o tema da Profissão de Fé. Neste sentido, o que levaria alguém a proclamar a sua fé na pessoa de Jesus. O tema da vitória se destaca, ou seja, aquele que venceu o diabo será o mesmo que vencerá a morte.

Na perspectiva da Carta aos Romanos, o salário do justo é a vida eterna e o salário do pecador é a segunda morte. Jesus inicia vencendo o diabo, preanuncio daquilo que será maior, ou seja, a vitória sobre a morte. No contexto litúrgico, o cristão professa a fé naquele que é capaz de salvá-lo, pois venceu o diabo (abrindo a Quarema) e venceu a morte (abrindo o tempo pascal). Portanto, ele é o Senhor no qual se pode depositar toda confiança, pois só ele é capaz de salvar. Assim, é nele que se encontra a nossa salvação. A Profissão de Fé cristã não se realiza numa possibilidade, em algo incerto, mas numa absoluta certeza: “Cristo Ressuscitou e nós somos testemunha” (At 10,39: 1ª Leitura do Domingo de Páscoa [At 10,34-43]).

 

Tempo da Quaresma Ano C 2022

 

1ª Leitura 2ª Leitura Evangelho

1º Domingo

Dt 26,4-10

Confissão de fé de Israel

Rm 10,8-13

Confissão de fé cristã

Lc 4,1-13

Tentação do Deserto

2º Domingo

Gn 15,5-12.17-18

Aliança de Abraão

Fl 3,17-4,1

Transformará nosso corpo

Lc 9,28b-36

Transfiguração de Jesus

3º Domingo

Ex 3,1-8a.13-15

“Eu Sou” Presença e Libertação

1Cor 10,1-6.10-12

O caminho de Israel

Lc 13,1-9

Chamado a conversão

4º Domingo

Js 5,9a.10-12

Páscoa na Terra Prometida

2Cor 5,17-21

Reconciliados com Deus em Cristo Jesus

Lc 15,1-3.11-32

O Filho Pródigo

5º Domingo

Is 43,16-21

Eis que faço nova todas as coisas

Fl 3,8-14

Corro para a meta que é Cristo

Jo 8,1-11

A Mulher Adúltera

 

Leitura Vertical:

1ª Leitura: episódios progressivos da história da salvação vividos por meio da fé’

2ª Leitura: catequeses progressivas relacionando o Evangelho com as 1ªs Leituras.

Evangelho: Cristo chama a conversão e perdoa.

Leitura Horizontal:

1º Domingo: A fé de Israel // a fé em Cristo; Jesus tentado e vencedor;

2º Domingo: Fé de Abraão e Aliança; Convite a transfigurar nossos corpos; Cristo transfigurado revela o Pai, fundamento da nossa fé;

3º Domingo: Um Deus que se revela como libertador; os cristãos são chamados à fazer o caminho do deserto; chamado à conversão;

4º Domingo: A Páscoa na Terra Prometida – a Aliança se renova; chamados para a reconciliação em Cristo Jesus; Deus Pai espera a conversão do filho;

5º Domingo: Deus faz nova todas as coisas; chamados a ressuscitar; o perdão da adúltera.

 

 

 

 

 

 

** PASCOA-ou-PASCOAS-JUDAICAS-Gilvan em PDF

** ESSE NÃO mas BARRABÁS – Jo 18,40 – Gilvan Leite de Araujo - em PDF

** A festa da DEDICAÇÃO em Jerusalém – Jo 10,22 – Gilvan Leite de Araujo - em PDF

** MARIA MADALENA – Gilvan Leite de Araujo - em PDF

** A MULHER ADÚLTERA NO EVANGELHO DE JOÃO-Gilvan Leite de Araujo - em PDF

** Semana da Fraternidade Formação Diocesana Campanha da Fraternidade 2022 Palestrante: Pe. Dr. Gilvan Leite Tema: “Jesus Educador” : A MULHER ADÚLTERA (Jo 8,1-11) - Diocese de Osasco

 

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